NOTA DO CRÍTICO
Iniciando um novo capítulo nessa história que remota uma Los Angeles de 1983, o Alcatrazz apresenta não somente seu quinto disco de estúdio, mas também uma nova formação. Intitulado V, o novo trabalho do quinteto é também o primeiro em que o microfone é apossado por Doogie White.
Uma melodia explosiva que flerta com o progressivo, abraça a psicodelia e oferece um sabor ácido. Rápida e com uma cadência guiada pelos insistentes bumbos duplos de Nigel Glockler, convidado vindo do Saxon, é possível sentir, também, o aroma e o palato do power metal a partir da afinação e velocidade com que o riff da guitarra de Joe Stump se pronuncia. Ainda assim, as notas cítricas do teclado de Jimmy Waldo são o principal ingrediente para colocar a canção sob uma ambiência setentista e em uma estética psicodélica latente. Eis então que uma voz de timbre nasal e inferior se insere na melodia. É Doogie White imprimindo um enaltecedor de sabor que, consequentemente, acaba levantando o vigor da canção. Guardian Angel é uma faixa que trata da relação com o passado e as frustrações ao mesmo tempo em que a esperança perante o amanhã sugere um positivismo contagiante. Com refrão enérgico e swingado, o refrão traz consigo uma estética contagiante que beira a melodia chiclete. É interessante pontuar que, para um álbum de tamanha significância para a história do quinteto, o Alcatrazz foi muito feliz com a escolha de Guardian Angel como abertura de V, pois ela é melódica, enérgica, excitante, swingada e de ambiências rítmicas plurais. Um single poderoso.
Assim como fez o Trend Kill Ghosts em Marching To The Light, faixa que introduz Until The Sun Rise Again, o quinteto angelino se utilizou de um coro catedrálico que pode ser ouvido ao fundo dando um ar de suspense à introdução, fator que é amplificado pelas notas doces e graves do teclado. O tilintar do sino indica que algo está próximo. O inevitável chegou. É então que Nightwatch tem seu verdadeiro despertar através de uma guitarra aguda, aveludada e rápida acompanhada do bumbo novamente em duplos e precisos golpes indicando o compasso rítmico de algo que já mostra ter ingredientes do heavy metal misturados com o power metal. Ainda mais excitante e enérgica que Guardian Angel, a presente faixa tem a preponderância do sal ante o açúcar e uma estrutura dominada pela guitarra azeda e linear que oferece ao ouvinte uma adrenalina impiedosa. Soma-se a isso o fato de o refrão ter maior apelo popular ao trazer uma melodia macia com a presença de backing vocal que fazem com que a harmonia seja mais facilmente penetrável na memória do ouvinte. Trazendo metáforas que insinuam a mitologia do lobisomem, Nightwatch é uma canção que ilustra a sede pela vida ante o deprimente da escuridão. Mostra que, apesar de existirem aqueles acomodados na tristeza e melancolia, há também os que seguem firmes rumo aos objetivos particulares. Dessa forma, Guardian Angel passa a ser um single cult e lado b ao passo que, pela estruturação mais popular, Nightwatch assume o posto de primeiro e importante single radiofônico de V.
Sexy é a palavra que melhor descreve os primeiros instantes sonoros. Swingada e macia, a canção se apresenta como uma forasteira em um Sunset Strip oitentista, mas com um sangue fervente pela selvageria. Através de um hard rock agressivo e de flertes intensos com a acidez setentista, Sword Of Deliverance é uma canção que, na base de seu iceberg lírico, traz consigo uma análise dos impulsos da sociedade. “Bring me the sword of deliverance, give me the sword of war and the truth will prevail”, diz White trazendo a reflexão sobre qual a verdade que guia a população atual. Seria ela a agressividade, impunidade e extremismo ou a liberdade incondicional? A resposta cada um chegará a partir de suas próprias autoanálises. Com uma fusão sonora de Deep Purple, Whitesnake, Scorpions e Rainbow, Sword Of Deliverance se torna uma canção sensualmente crescente e enérgica cujo hard rock pende para uma roupagem europeia se firmando nos Estados Unidos. Mesmo vinda de fora de Los Angeles, a canção proporciona uma versatilidade ao açúcar preponderante do hard rock selvagem vendido pela cidade.
Apesar de parecer vinda das mãos de Zakk Wylde para uma faixa de autoria de Ozzy Osbourne, a guitarra agressivamente metalizada e sensual serve de vitrine para outra perspectiva sobre o hard rock. Com mais pressão e velocidade, a canção traz consigo um sabor mais agridoce que, em alguns momentos, beira a rispidez. De pré-refrão melódico e de aromas poéticos, Turn Of The Wheel segue o caminho de Sword Of Deliverance ao trazer um hard rock europeu de maneira a ter uma sonoridade semelhante àquela executada pelo Pink Cream 69. Refletindo sobre a divisa entre verdades e mentiras, a faixa traz a mensagem do viver o agora sem se afetar por eventos passados. Afinal, eles podem guardar mistérios e desejos que, por vezes, nunca se concretizarão. Como o próprio White diz, “yesterday is gone, so let it burn”.
Melódica e sem a explosão do bumbo duplo. A introdução de Blackheart vem moldada em uma estrutura cuja sonoridade muito lembra aquela executada pelo Iron Maiden. De ritmo macio e repleto de backing vocals pronunciando ‘hey, hey’, a canção constrói uma ambiência escocesa levemente medieval cuja harmonia beira a celebração. Ao mesmo tempo, o que Blackheart traz ao ouvinte de conteúdo lírico é um enredo que casa com a atmosfera melódica, pois explora a necessidade de revolução como necessidade do homem.
Macia, melódica e fluida, o despertar é como a sensação de veludo caminhando pela pele. Essa impressão passa como um sopro quando a faixa passa para um verso cujo riff da guitarra traz uma tensão que exorta a insegurança, o incerto, o imprevisível. Grace Of God é uma música que caminha por uma textura branda proporcionada pela guitarra ao mesmo tempo em que divide espaço com uma acidez estridente vinda do teclado, instrumento que possui liberdade de proporcionar um duelo de solo com a guitarra. Há também uma corpulência vinda do baixo de Cliff Evans, convidado vindo da heavy metal inglesa Tank. Do lado lírico, a canção é ambientada no contexto bélico como meio de assegurar a liberdade e de metaforizar a insistência na vida.
Uma ritmada obscuridade árabe ganha seus primeiros contornos. O heavy metal aqui presente é mais grave, mais bruto e mais soturno. De acidez generalizada, a canção é quase como o relampejar amplamente luminoso sob um céu escuro e sombrio. Trazendo um enredo cujo eu-lírico busca por redenção, Return To Nevermore é uma canção cujo caos é avistado, mas não alcançado. É uma música de melodia mais precisa, mais persistente, mais forte e de uma dramaticidade evidente.
Energia, combustível, cadência, compasso. O metal fundido ao heavy metal. O swing presente nos moldes de um quadro ainda em estruturação. Target é uma canção que retoma a presença do pedal duplo em uma atmosfera macia, mas ao mesmo tempo precisa. “Sing your song, and never be wrong” é um verso que carrega muito da mensagem de Target, que é a de fazer prevalecer a essência do indivíduo por mais que não existe incentivo na defesa da personalidade.
Assim como Blackheart, Maybe Tomorrow possui uma melodia introdutória que muito lembra a sonoridade do Iron Maiden em virtude da afinação da guitarra e da forma como Mark Benquechea se desenvolve no comando das baquetas. Fazendo surgir uma ambiência rítmica dramático-melancólica, a canção assume um compasso em 4x4 que destoa sutilmente com a voracidade típica da sonoridade do Alcatrazz, significando que Maybe Tomorrow assume a função de ser um pé no freio da rapidez e da metalização. Trazendo a mensagem de cunho mais sentimental e reflexiva, Maybe Tomorrow discute o legado que será deixado às próximas gerações. “Surely a better place where they can live and love and dream in the mists of a life filled with wonder” é a conclusão a que se chega White e companhia. Isso faz de Maybe Tomorrow a balada mais intimista e introspectiva de V, uma canção capaz de encantar pela reflexão desejavelmente positivista.
Enfim o swing nos moldes de Sword Of Deliverance ressurge. Sexy e com traços de uma selvageria provocativa, House Of Lies chega dominada por uma guitarra distorcida e uma bateria em 4x4 de compasso sujo. É curioso que, mesmo com um groove mais amaciado, a faixa tem algumas nuances que a fazem parecer com Solar Fire, faixa de Smith/Kotzen. Precisa, enérgica e excitante em uma melodia que exorta a pura leveza do descompromisso, a faixa retoma um enredo leve longe de aspectos bélicos ou místicos. É a simples fuga da mentira e a busca pela honestidade.
Medonha, assombrosa e cheia de tensão apavorante. A guitarra é a responsável pelo feito por conta de seu riff grave, distorcido e áspero. Recebendo um ritmo de cadência trotante com grande participação do baixo de Gary Shea na criação de uma estrutura compassada e precisa, Alice’s Eyes é uma canção em que até o lirismo é nebuloso, pois traz o olhar de Alice como o verdadeiro protagonista do enredo. Um olhar que esconde medos, pavores. Um olhar de reflete uma mente perturbada por desconfortos e inseguranças. Ao mesmo tempo, é uma canção em que mostra o desejo de um personagem onipresente e não-identificado em acalmar o sofrimento de Alice, algo que fica claro no verso “If I could walk through Alice’s dream, maybe I could calm the scream”. Para amplificar essa ambiência tenebrosa, Alice’s Eyes é uma faixa cuja melodia é mais áspera de maneira a abraçar elementos do thrash metal.
Melancólica e com pingos de drama. O modo como a dupla teclado-vocal baila cria uma harmonia que recria a ambiência de This I Love, single do Guns and Roses. Afinal, Dark Day For My Soul é sentimental e visceral. Com fortes contornos do soul nos traços melódicos, a faixa traz consigo um enredo romântico de um amor doentio e perigoso. Um relacionamento capaz de ferir e ludibriar. Um evento sentimental sem reciprocidade positiva que possui uma explosão dramático-metalizada no refrão de maneira a levantar a energia sensitiva presente em Dark Day For My Soul.
Como primeiro álbum desde Dangerous Games a ter Jimmy Waldo e Gary Shea, duas peças importantes do line-up original do Alcatrazz, V é um produto metalizado que exala swing, oferece o áspero, destrincha excitação e que possui uma energia tão vivaz como quando o quinteto veio ao mundo, em 1983.
Não só marca o retorno desses membros na estrutura sonora do grupo como também representa o disco de estreia de Doogie White no microfone. Previsível ou não, a química criada entre ele e os outros integrantes soa tão natural que parece que ambos se conhecem e trabalham juntos há anos. Afinal, existe uma sincronia e uma harmonia melódica que casou com a sonoridade do Alcatrazz.
É claro que existem faixas mornas emaranhadas pelo setlist, mas a verdade é que V é representado majoritariamente por faixas enérgicas e potentes como a trinca introdutória Guardian Angel-Nightwatch-Sword Of Deliverance, House Of Lies, Blackheart, Maybe Tomorrow e Alice’s Eyes. São faixas que apresentam swing, leveza, frescor e uma autonomia tanto ao hard rock quanto ao heavy metal por misturar ambiências europeias e estadunidenses. São faixas que promovem a interação da tensão, do sombrio e da melancolia com o colorido e o estimulante.
Esse feito é resultado de uma produção sincrônica entre Giles Lavery e Waldo além de uma sensitiva mixagem executada por Andy Haller. Esses exercícios fizeram com que V soasse da maneira como a comunidade do heavy metal precisa: forte, potente, limpo e regado de lirismos de temas que vão desde guerra à mitologia.
Contando com ainda com mais a presença de Donnie Van Stavern imprimindo sua sabedoria no groovar do baixo em faixas como Guardian Angel, Nightwatch e Target, V é um disco que consegue transitar por diferentes ambientes como o próprio heavy metal, mas também o hard rock, a psicodelia, o thrash metal e o soul.
Lançado em 15 de outubro de 2021 via Silver Lining Music, V é um disco forte e potente ao mesmo tempo em que consegue ser ácido, sexy e fresco. É o capítulo que afirma e registra o aguardado e oficial renascimento do Alcatrazz. O heavy metal californiano enfim voltou.