NOTA DO CRÍTICO
Seguindo os traços cronológicos padrões, Adele se separa da primeira fase da adultecência e chega na maturidade da segunda idade. É assim que nasce 30, um disco que, apesar de ser lançado com a cantora já com 33 anos, teve início de produção em 2018, ano em que a inglesa tinha 30 anos. Como novo disco, 30 marca o quarto lançamento da discografia de estúdio de Adele.
Um som doce como o amanhecer após uma noite turbulenta. Como a luz morna abraçando o gramado depois de uma tempestade. Esse efeito sensitivo-imaginativo é obtido graças às notas do rhodes de Ludwig Göransson. É ele quem dá passagem para o vocal aberto, grave e potente tão característico de Adele, que entra cintilante como se estivesse bailando por entre uma brisa de aconchego que caminha livremente pelo ambiente. Com imersão sutil no campo do R&B, Strangers By Nature traz uma importante assinatura das músicas da cantora que é o minimalismo melódico. Com ele, a voz propagada por Adele traz uma cadência que beira o lúdico de trilhas sonoras presentes em contos de fadas da Disney, ao passo que vai ganhando toques de um dramático sem sofrimento trazido pelos arranjos de cordas de Serena Göransson conduzidos por David Campbell. E de fato não há sofrimento. As palavras, as vogais e os suspiros carregam a reflexão sobre a forma como se enxerga a vida e os degraus que ela oferece. É como a trajetória de uma queda. Quando se está ao chão, precisa levantar. Essa é a conquista final da faixa, que acontece quando o eu-lírico extravasa “Alright then, I’m ready!”.
Traços de uma melancolia reconfortante surgem no horizonte como uma brisa de perfumes primaveris com notas de veludo. Ao lado das notas sincrônicas do piano, Adele traz um vocal mais introvertido a ponto de trazer consigo o grave e o rouco tão característicos de seu timbre. Sentimental, sofrida e minimalista, a melodia construída a partir da união voz-violão consegue, por si só, arrancar arrepios e deixar os olhos do ouvinte marejados tamanha a delicadeza com que Easy On Me se apresenta. Rodeado de melismas, o lirismo parece carregar consigo um desabafo reflexivo-melancólico a respeito do efeito repentino da fama na vida de uma pessoa que ainda exalava inocência. É como a própria cantora pedindo para que os efeitos do estrelato súbito viessem com calmaria para não afetar sua personalidade e sua identidade. É como o próprio refrão esclarece: “go easy on mе. Baby I was still a child. Didn't get the chance to feel thе world around me”.
Maciez na forma de notas de piano. Veludo através das sobreposições vocais em melismas sincronizados. Ao mesmo tempo, a união da bateria suave de Chris Dave com o baixo encorpado de Greg Kurstin cria uma sensualidade calma que atrai, contagia e conforta o ouvinte. Nos moldes melódicos do soul, o que Adele traz em My Little Love é um sincero pedido de desculpas a seu filho Angelo Adkins pela sua ausência. Ausência aqui não no sentido físico, mas no sentido emocional. É uma canção cujo artifício emocional é entregue, principalmente, pela participação do próprio Adkins expressando seu amor pela mãe. O trecho em questão é estruturado de maneira a soar ecoante, o que proporciona uma ambiência psicodélica que se soma à sensualidade fixada como base da sonoridade de My Little Love, uma balada honesta e sincera que representa as dores e angústias de um sair de relacionamentos.
A voz está com efeito eletrônico e sobreposto. O piano traz notas concisas e pontuais. Quando a guitarra e o baixo entram em cena mesmo que momentaneamente, a sonoridade formada traz à tona o reggae e seu swing característico. É então que, na entrada do primeiro verso, o reggae se mistura com o R&B criando uma atmosfera mista de swing tropical e veludo. Curiosamente, por trás desse ânimo swingadamente aveludado esconde o sombrio e o denso. Esses atributos estão presentes na letra de Cry Your Heart Out, uma canção que trata pura e simplesmente de depressão de maneira a assumir a forma de antecessora do enredo presente em My Little Love. Afinal, o rompimento em questão diz respeito ao relacionamento existente entre Adele e Simon Konecki, pai de Angelo Adkins. Versos como “when will I begin to feel like me again?”, “my skin's paper-thin, I can't stop wavering” e “I've never been more scared” traduzem bem a aflição e o temor sentidos por Adele durante o período em que se viu imersa em depressão.
Com estrutura ainda não experimentada nas músicas anteriores, em Oh My God é o bumbo seco quem entrega o compasso da faixa. Adele, por sua vez, entrega mais vivacidade e velocidade ao ritmo que, ao receber a presença de palmas auxiliando na marcação do tempo, invade o cenário pop. Diferente da dobradinha My Little Love e Cry Your Heart Out, Oh My God traz uma Adele corada, cheia de vida e experimentando uma realidade de desprendimento e despretensão. A alegria de ter o controle da própria vida e a possibilidade de poder aproveitar as coisas boas que ela tem a oferecer. O verso “I am a grown woman and I do what I want to do” explica por si só o enredo da faixa.
Os primeiros sonares de Can I Get It trazem, graças ao riff do violão oferecido por Shellback, um misto de referências que vão desde Wonderwall a Lucky Man, singles do Oasis e The Verve, respectivamente, o que por si só dá à canção uma ambiência indie alternativa típica do final dos anos 90. Ao mesmo tempo, existem reflexos folks no ritmo da canção que se misturam ao pop do pré-refrão e refrão que deliberam uma atmosfera melódica diferenciada. No entanto, o que faz Can I Get It o primeiro single contagiante e animado de 30 é o assobio que faz a vez de canto no refrão. Trazendo um lirismo que busca por um amor verdadeiro, a canção ainda tem a presença do cowbell contando o tempo e inserções de sopros de trompete que alimentam a melodia.
As notas do piano oferecem uma cadência nova baseada no blues setentista. Alegre e vagamente mais acelerada, a canção, em união ao vocal, cria uma estrutura rítmico-melódica que facilmente poderia torná-la apta a ser inclusa na track list de álbuns de Amy Winehouse. Sarcástica e até mesmo zombeteira, I Drink Wine possui flertes melódicos com o soul e um lirismo que trata do ego como um personagem onipresente capaz de fazer com que a identidade de cada um mude por completo. Outro ponto interessante de I Drink Wine é que não existem mesmos refrães. Cada ápice melódico possui sonoridade e lirismo diferentes, tornando a canção estruturalmente a mais ousada de 30 até então.
Trazendo uma ambiência cinquentista, o piano de Erroll Garner oferece uma melodia que, curiosamente, remete ao ouvinte a sonoridade do refrão de Eu Sei, single do Papas da Língua. Ao mesmo tempo, o beat fornecido por Joey Pecoraro imprime uma sensualidade ao estilo Mariah Carey que eleva o veludo presente de All Night Parking, um interlúdio que, assim como Oh My God, traz uma Adele experimentando o gozo da vida, a possibilidade de se relacionar com outras pessoas e sentir novas sensações.
O violão solitário traz uma atmosfera introspectiva e até mesmo com notas de melancolia. A estrutura acústica se fixa na base melódica que é preenchida por uma bateria de levada singela que se funde às referências do flamenco trazidas timidamente pelo violão de Inflo. No entanto, por trás dessa calmaria interpretativo-melódica, Adele traz em seu lirismo desabafos sobre o término de seu casamento. Não desabafos entristecidos, mas desabafos raivosos e reflexivos que elencam, na visão dela, as razões para o casamento não ter dado certo. Versos como “I know that you've been hurt before. That's why you feel so insecure” e “it is so sad a man likе you could be so lazy” traduzem bem esse cenário. Ao mesmo tempo, Woman Like Me é o momento em que Adele descobre sua força e seu potencial como mulher, responsável por ter mantido o relacionamento nos eixos e capaz de encontrar outra pessoa para entregar o amor que seu ex-companheiro não quis receber.
Com uma voz angelical e estendida, Adele entra em cena acompanhada de notas igualmente doces do piano. Mesmo ouvido com um efeito que comunica distância, o cintilar de sua voz, por sinal, já traz consigo uma bagagem que mescla o soul com o gospel. Quando a voz da cantora se pronuncia em primeiro plano é o momento em que Hold On tem seu fidedigno despertar. Caminhando por um tema já conhecido em 30, o que o lirismo traz é um ponto de vista didático sobre o amor. O aprender a se relacionar com esse sentimento é não apenas o foco e a análise, mas também o desejo do eu-lírico. Ao mesmo tempo, a busca pelo entendimento do amor é o caminho do autoconhecimento da própria personalidade da personagem, algo também intensamente abordado entre os lirismos das faixas do disco. Melodicamente, o acompanhamento dessa narrativa é minimalista e com toques extremamente sutis de dramaticidade. Com direito a um coral de vozes formado por amigos da cantora, a canção ganha força no desenho sonoro gospel.
É como o cair de cortinas em uma peça teatral ou uma simples vinheta de mudança de cena. O fato é que as notas do piano de Tobias Jesso Jr. dão a impressão de uma surpresa, um novo horizonte, uma nova experiência. Imersa no universo do soul, Adele traz consigo uma interpretação lírica introspectiva e reflexiva sobre a vida. Uma reflexão que avalia o que de fato importa na vida, as escolhas feitas e o que deve ser valorizado. To Be Loved é nada mais que uma balada introspectiva e reflexiva em que o eu-lírico busca pelo que realmente é motivador na vida.
Assim como Strangers By Nature a introdução de Love Is A Game traz uma ambiência lúdica de conto de fadas a partir dos violinos de Steve Churchyard em sua introdução. Ao fundo o Hammond é ouvido entregando suspiros de soul que entregam notas florais à valsa de cordas que acompanha o vocal. Dando a ideia de tratar meramente sobre sentimentos depreciativos, o que Adele traz em Love Is A Game é a contestação de que ela está buscando se conhecer ao mesmo tempo em que percebe o quão frágil é enquanto em um relacionamento. Por isso que ela chega à conclusão de que “now that I see that love is a game for fools to play” e o mais importante, de que “and I ain’t fooling”.
Cheio de aromas, de texturas e de diferentes formas de abordar o tema relacionamento. Isso é o que se pode de início prover a respeito de 30. Assumindo a forma de um trabalho que comunica raiva, nostalgia, melancolia, ódio, vivacidade, êxtase, o disco nada mais é do que a busca mais honesta de Adele rumo ao autoconhecimento.
Um estudo de si mesma com direito à lágrima, alegrias, diversão e o mais importante, o tão visado encontro da verdadeira identidade de quem de fato é Adele. Uma mulher que, como foi comunicado principalmente em Woman Like Me, é forte e resistente. Uma mulher que, como trazido em Love Is A Game, não é tola.
E para dar peso a essa trajetória lírica, o que surpreende em 30 é que Adele se apoiou em diferentes roupagens para expressar seus sentimentos. No disco existe o soul, o gospel, o R&B, o blues e até mesmo o reggae. Claro que sem deixar de inserir entre as narrativas o pop.
A comunicação entre gêneros musicais tão diferentes entre si foi possível, principalmente a ampla gama de produtores que trabalharam no álbum. Göransson, Inflo, Jesso Jr., Kurstin, Shellback e Max Martin, que tocou piano e teclado em Can I Get It, além de emprestarem suas habilidades como músicos, entregaram uma produção lapidada a ponto de capturar a essência do álbum.
Nesse aspecto entra também a mixagem, trabalho responsável por deixar que as notas de cada instrumento exortem por si só as emoções passadas pela cantora. Isso foi alcançado graças à união de Tom Elmhirst e Serban Ghenea.
Como resultado final, 30 não é um álbum totalmente dramático tal como canções icônicas de Adele como Someone Like You ou Hello. É um álbum pura e simplesmente de superação emocional que traz, ainda, Angelo Adkins como um artifício emocional importante nesse processo.
Tal mensagem foi, inclusive, captada na foto que estampa a capa de 30. Clicada por Simon Emmett, ela foge do classicismo das fotografias de 19 e 21 ao mesmo tempo que se desprende da temática preta e branca de fotos como as usadas em 25 e 21. Colorida, o que Emmett comunica na presente capa é uma Adele de perfil com olhar penetrante olhando para frente como se estivesse focando no futuro e deixando o passado. Ainda assim, existe uma atmosfera barroca que embeleza a concepção artística.
Lançado em 19 de novembro de 2021 via Columbia Records, 30 é um disco sobre superação com dramaticidade melódica que se mistura por diferentes roupagens. É um trabalho biográfico-sentimental em que Adele se reconhece como pessoa e apresenta novas facetas musicais desta mulher batizada Adele Laurie Blue Adkins.