NOTA DO CRÍTICO
Na ativa desde 2017, o quarteto Samba De Colher, natural de Juiz de Fora (MG), surgiu com a intenção de festejar o pagode dos anos 90. Porém, logo ele tomou um corpo diferente e se enveredou para o campo da música autoral. Assim, seis anos após a sua concepção, o grupo dá origem a Pagar Pra Ver, seu EP de estreia.
Que doçura e que suavidade. Com uma maciez contagiante e convidativa como se estivesse em uma roda de amigos, a melodia resultante da mistura entre samba e pagode surge floral e adocicada não somente por conta da agudez típica da cuíca de Almin Bah, mas também pela forma com que o violão de Tamires Rampinelli, o cavaco e o banjo de Alessandra Crispin se combinam na formação da base sonora introdutória. Com um primeiro verso de estrutura fixa em um pagode ensolarado, é possível, curiosamente, ver na cadência vocal de Alessandra, com seu timbre de veludo com toques ríspidos, semelhanças com aquele adotado por Seu Jorge no seu single Amiga Da Minha Mulher. Com auxílio do vocal de timbre equilibrado entre doçura e grossura de Isabella Queiroz, a canção evolui para um refrão regido por um vocal de timbre mais aveludado de Mariana Assis. É assim que, com o piano de Pablo Garcia entregando frescor no pré-refrão e com a flauta de Amanda Veiga pincelando dulçor no seu ápice, a faixa-título dialoga sobre a busca pelo amor associada à relação com as inseguranças, com experiências passadas e, claro, com o prazer da reciprocidade.
Curioso como de uma alegria festivamente estonteante, o Samba De Colher passa a convidar ouvinte a caminhar por um ambiente imerso em melancolia. E nesse sentimentalismo tristonho, não é só o piano que faz o Sol se esconder por grossas camadas de uma nuvem cinzenta. A bateria de João Cordeiro, com sua levada intimista e dramática, representa véus de lágrimas escorrendo pelo seio da face do personagem lírico. Acabou é uma canção que dialoga sobre decepção, luto, traição e, principalmente, superação frente a dor do coração partido. Ainda assim, o enredo melódico entrega suavidade e sonoriza um ombro amigo na tentativa de reconfortar e recolocar o ferido novamente nos eixos. E nesse aspecto, a guitarra de João Lanini entra com uma afinação que acaba funcionando como um filete de água metaforizando a continuidade da vida e o encerrar de um capítulo desgostoso.
Enquanto o cavaco e o violão se completam na construção de uma sonoridade cabisbaixa e reflexiva, o pau de chuva combina frescor e suavidade, enquanto o agogô surge em seu tilintante processo de estruturação do compasso rítmico como elemento que recobre a consciência. Água Pra Rolar surge como uma música motivacional e de incentivo à esperança, à perseverança e à aquisição de forças para continuar enfrentando os percalços da vida. Água Pra Rolar é, então, a dança da superação e o molejo do estanque da tristeza dolorida.
O cavaco surge malandro e com toques de uma provocação cômica enquanto o surdo e o agogô vão desenhando uma cadência rítmica de estrutura no pancadão carioca. Nesse ínterim, quem dá o tom do enredo é uma voz de timbre agridoce trazida por MC Xuxu que, com pouco, faz de Um Beijo/Liberdade uma ode malemolente de igualdade e da união das pessoas ante a segregação sexista.
Um som metálico coloca toques ácidos em torno da suavidade contagiante e animada de um samba pagodado de tom festivo. Surpreendentemente, a canção possui uma sensualidade tipicamente brasileira impressa a partir doo groove do baixo de Preto Vivo que, acompanhado do beat de Thiago Lazzarini no primeiro verso, dá vazão para linhas vocais rappeadas que fazem de Vem Com A Gente uma ode e uma enaltação do poderio unificante emanado pelo Samba De Colher.
De uma nostalgia lacrimal, Madrugada surge embebida em uma base MPB que oferece sustento para que o personagem lírico desabafe sobre suas inquietações emocionais. O desconforto do término, a negação do luto. Madrugada é aquela canção em que o personagem tem de lidar pela unilateralidade do sentimento enquanto tem de superar e assumir que mais um capítulo se encerrou. São as memórias reconfortando a dor de algo não mais existente.
Doce, animado, fresco, contagiante. Alegre. Interessante notar como, a cada nota oferecida, Pagar Pra Ver ofereça uma paisagem ensolarada e sorridente difícil de fazer até os mais sisudos resistirem. Esse é um bom feito do Samba De Colher: trazer o sorriso, o calor, o Sol e, principalmente, o senso de união através de ritmos alegremente brasileiros.
Claro que, em se tratando de pagode, um dos gêneros em destaque no EP, o grupo mineiro não fugiu de certos estereótipos. A temática de relacionamentos e suas associações, que vão desde a superação do término, a decepção, a relação com o luto, a nostalgia e, sim, também a felicidade da união, é o inegável carro-chefe de Pagar Pra Ver.
E nesse aspecto, foi Kasron Rodrigues, com sua mixagem, que conseguiu unir samba, pagode e sopros de rap de uma forma a soar convidativo e festivo como as cantoras, em suas interpretações, desejaram. Foi assim que o som do EP de estreia do Samba De Colher conseguiu emanar frescor em toques MPBs.
Encerrando o escopo técnico de Pagar Pra Ver, vem a arte de capa. Assinada por Camila Matheus, ela desperta todas as sensações transpassadas desde o primeiro acorde. Com suas cores vivas, ela traz uma essência tropical e praiana que, além de fazer o ouvinte inconscientemente se ver banhado por um Sol de verão, consegue passar um bom senso de união e, claro, confraternização.
Lançado em 31 de março de 2023 de maneira independente, Pagar Pra Ver é festa, é Sol, é alegria. É brasilidade. É um material que exala a igualdade, bane o sexismo e a segregação e faz qualquer um que opte por ouvi-lo se perceber com um largo sorriso no rosto mesmo após canções mais melancólicas. Um material tão fresco quanto o espírito de parceria e amizade que transpassa os quatro cantos femininos do Samba De Colher.