NOTA DO CRÍTICO
Vindo de Brasília, Ryck alcança grande passo na carreira após oito anos desde que subiu em um palco pela primeira vez. Com idade de 21, o cantor escolheu o meio do segundo trimestre para se lançar oficialmente no mercado musical brasileiro apoiado ao anúncio de Criatura, seu EP de estreia.
“I’ll tell you what freedom means to me”, diz uma voz que ecoa por um ambiente transcendental e amorfinado. Desembocando em uma melodia com base na música africana, com seu swing percussivo categórico, Onirê é como um mantra reenergizante que funciona como um perfeito interlúdio de Criatura.
Uma voz aguda e com raspas de um ameno grave puxa a introdução sem espaço para o solar instrumental. É Ryck proporcionando, sem delongas, a cadência ensolarada do samba. Ao seu lado, sons agudos e pontuais trazem pitadas pops que remetem à melodia introdutória de Shape Of You, single de Ed Sheeran. Banhada pela claridade do dia, Aconchego é uma canção de lirismo que motiva e estimula a força nas pessoas, força para seguir seus caminhos, forças para enfrentar qualquer adversidade. Forças para se manter de cabeça erguida. Tudo apoiado na base da companhia da fé que, aqui, se dá através da figura de Ogum. Eis a morada do próprio título da canção: aconchego. Ogum não dá apenas força e motivação. Dá aconchego ao proporcionar, tanto ao eu-lírico quanto ao espectador, a certeza de não estar sozinho e de sempre ter um ser onipresente zelando pelo seu bem-estar.
A maciez e o swing do blues surpreendem o ouvinte ao amanhecer da melodia. Minimalista e puxada pelos golpes ocos do bumbo que parecem simular os batimentos cardíacos, ela emana tranquilidade e sensualidade enquanto o enredo que vai se desenhando como uma ode à liberdade, à tranquilidade de poder assumir a própria identidade sem ser alvo de julgamentos de terceiros. A liberdade do poder agir como se quer, vestir o que se quer, dizer o que se quer. A nudez da essência. Trazendo a noite como momento libertador, Nudez é uma canção que defende a originalidade, a autenticidade e a coragem de ser quem se é. Tudo sob uma base rítmica que traz ao ouvinte memórias de melodias estruturadas por Amy Winehouse em suas respectivas canções.
Notas graves e espaçadas do piano surgem como pinceladas firmes em um quadro em branco. As cores são lançadas sem coreografia. Apenas com o ímpeto de pressionar o pincel o mais forte possível sobre a tela proporcionando contornos disformes que são carregados de uma tristeza dolorida. Isso é o que se tem a partir da dramática introdução repleta de momentos de respiro. Não à toa, a faixa-título dialoga com instintos depreciativos que são motivados pela falta de aceitação social, pela ausência de pertencimento e, inclusive, sobre solidão. Aumentando a dramaticidade, a melodia recebe a profundidade chorosa das notas do órgão que vão introduzindo uma forte melancolia entre o pré-refrão e o refrão. Uma faixa emocional para quem ouve. Dolorida para quem a compôs.
A energia do reggae agracia o ouvinte logo na introdução. Com leveza e um swing contagiante, tal melodia vai acompanhando Ryck, cuja cadência vocal acelerada cria um interessante contraponto em relação à macia e espaçada sonoridade, em um enredo que, inicialmente, parece tratar da intensidade da vida. De lirismo rappeado e coloquial, o cantor vai imergindo, por entre versos rimados, sobre sua própria realidade. A verdade da exploração e a consciência da convivência por segundos interesses. Contudo, quando a canção recebe a participação do timbre quase metálico de Medro em uma ponte de ascensão da roupagem reggae e, principalmente, com os versos propriamente rappeados de Mano Dáblio, Piggybacking é uma canção que mostra a construção da identidade a partir dos desafios da vida. O fortalecimento, a autovalorização e a autoconfiança são outros assuntos intrínsecos a um cenário de construção puramente vil e de relações canibalescas.
Macia e fluída como as ondas do mar. Contagiante como o calor do Sol em um dia de verão. Tão convidativo quanto uma casa cheia de amigos. É assim que a melodia se apresenta ao ouvinte, com um swing praiano penetrante. Contudo, ao mesmo tempo que se sente uma embrionária alegria, existe, no cerne sonoro, uma energia melancólica que por vezes chega à superfície e pega o ouvinte desprevenido. Enquanto o violão se funde com o catedrálico som do órgão, Fada vai ganhando ares folclóricos com um enredo fantasioso que descreve o encontro com uma fada após andar por uma floresta. Interessante perceber que a fada é em si uma figura que o eu-lírico encontrou e entendeu ser capaz de realizar desejos. Sob a face profunda, a fada simboliza a fé e a força interna de, no contexto, buscar o autoconhecimento e se desvencilhar de infelicidades amorosas. Fada é o processo da busca pela compreensão de si mesmo, mas sem perder a essência.
A sonoridade construída pelo violão cria um movimento que conota uma singela semelhança com a melodia desenhada pela cadência vocal de Elton John em seu single Rocket Man. Tal impressão se esvai como um sopro de vento ao passo que a canção vai assumindo ares MPBs conforme Ryck vai inserindo um lirismo narrado por um tom suave que descreve a fuga da dor e a assumição do espírito festivo carnavalesco. É então que, quando Carnaval entra em seu pré-refrão, o samba invade o ritmo com percussões bem marcadas e o sobrevoo agudo da cuíca que dá ainda mais alegria à canção. Apesar de ter começado em um tom sutilmente melancólico, Carnaval engata um encerramento melodicamente festivo que enaltece a graça do destino.
Um EP sensível, emocional e de ares autobiográficos. Criatura é um trabalho que desenha a construção interior do indivíduo e como a vida pode moldar a forma de agir de cada um. Principalmente, o trabalho de estreia de Ryck traz uma musicalidade guiada pela fé. Uma fé não apenas por dias melhores, mas uma fé que guia cada passo da vida a partir de um estimulante e largo sorriso.
Entre pop, blues, rap, MPB e samba, Criatura dialoga com os desafios da vida, as tristezas, as felicidades, os imprevistos e os previstos. Entre lágrimas e sorrisos, Ryck narra processos íntimos de autoconhecimento, solidão e necessidade de pertencimento, sentimentos e situações que aproximam a narrativa do EP a todos os ouvintes.
Fazendo com que ele seja um produto terapêutico e propriamente sensível, Christian Frasão, à frente tanto da mixagem quanto da produção, proporcionou uma sonoridade limpa e completa em que todos os instrumentos e sons são ouvidos tanto individualmente quanto em coletividade. De outro lado, sua produção serviu como um personagem onipresente sintetizando todas as emoções de Ryck ao passo que serviu como guia para quais as melhores interpretações líricas.
Fechando o conteúdo de Criatura vem a arte de capa. Assinada em conjunto entre Tuca Freitas e Erys, ela traz Ryck como um ser angelical, puro e onipresente. Tal imagem representa a própria essência de do EP, que é a de ter alguém sempre por perto zelando em prol de cada indivíduo.
Lançado em 27 de maio de 2022 via Warner Chappell, Criatura é um EP que defende os interesses e representa a comunidade LGBT com narrativas realistas, emotivas e contagiantes. Com doçura e humildade, o EP é como um diálogo cuja mensagem final é simplesmente: você não está sozinho. E é isso o que o torna tão acolhedor.