Liam Gallagher - C'mon You Know

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Foram três anos de hiato, mas esse intervalo enfim acabou. No meio do segundo trimestre, o inglês Liam Gallagher retoma os holofotes para si com o anúncio de um novo material. Intitulado C’mon You Know, o álbum é o sucessor de Why Me? Why Not e completa a primeira trilogia de discos em carreira solo do cantor.


Um coro de 16 vozes infantis surge como o alvorecer de um dia cuja luz do Sol rompe a densa camada de neblina e aquece o gramado ainda úmido pela geada noturna. Com respaldo do violão de Andrew Wyatt na criação rítmica, a melodia que se constrói consegue reproduzir aquele estado híbrido de melancolia e aconchego que a sonoridade do Oasis consegue elaborar. Conforme a conjuntura melódica vai crescendo, a canção vai adquirindo ares profundos e dramáticos com a entrada das notas graves e levemente adocicadas do piano. É curioso perceber que, próximo da segunda divisão, a melodia que se tem sopra uma singela semelhança com aquela desenhada por AJ Dunning em Colorful, single do The Verve Pipe. E é justamente nesse momento que o ouvinte enfim recebe a presença de um timbre anasalado, ácido e doce bastante familiar. É Liam Gallagher respaldado de um som vocálico angelical vindo do coro e de golpes secos no bumbo provenientes da programação de Emile Haynie. Altamente emocional e tocante, More Power é uma canção que dialoga sobre o perdão de maneira a ser direcionada às figuras materna e paterna. A saudade e a vontade de adquirir uma essência mais resiliente são outras questões bastante intrínsecas nos devaneios do eu-lírico. More Power ainda guarda ao ouvinte uma ponte de grande teor emotivo.


Chiados. Golpes estridentes na caixa da bateria. Uma guitarra em riff gordo, distorcido e macio completa a estrutura introdutória ao passo que oferece uma singela semelhança com aquela estrutura desenhada por Alex Turner no amanhecer de Do I Wanna Know?, single do Arctic Monkeys. Não à toa, o que se tem é uma mistura de rock alternativo com indie rock de maneira a promover uma suave e contagiante estrutura rítmica. Fica à cargo da cadência vocal, portanto, elaborar um contraponto com a estrutura rítmica, o que favorece um enaltecedor de sabor. Em Diamond In The Dark existe novamente um diálogo nostálgico que se insere em um contexto de perda de inocência e da dor da saudade propriamente dita. 


Quase como um efeito fade in, o som da distorção da guitarra de Mike Moore vai crescendo gradativamente até a chegada da companhia de um som agudo vindo do sintetizador. Eis o momento em que a introdução atinge sua completa estrutura rítmica de maneira a, junto da bateria de Dan McDougall, proporcionar uma levada folkeada cativante. Com uma linearidade curiosamente enérgica e penetrante, Don’t Go Halfway é uma canção que, com um personagem marcante, trata da depressão de maneira a soar como uma forte motivação para se desviar e se libertar dos pensamentos depreciativos. Don’t Go Halfway se mostra, então, como uma música de ritmo e letra marcantes, o que o torna um grande candidato a single de C’mon You Know.


Um som eletrônico surge vindo do mellotron e impulsionando um crescente instrumental de teores estimulantes e curiosamente enérgicos. É verdade que, mesmo sendo formada por uma intensa linearidade melódica, a faixa-título atrai, encanta e cativa o ouvinte por conta de sua atmosfera reenergizante. Na forma de um indie rock com rompantes de um coro gospel, a faixa-título vem como um hino sobre gratidão, felicidade e sentimentalismo. É sobre assumir a própria essência, aproveitar cada momento e ser agradecido pelo que se tem. É simplesmente uma ode à vida. Ao lado de Don’t Go Halfway, a faixa-título certamente também se insere no time de singles do álbum.


O piano de Christian Madden surge com uma dramaticidade com um misto estilístico entre Beatles e Leonard Cohen. Estruturada sob uma introdução à capela, Too Good For Giving Up já se mostra uma canção com grande capacidade emotiva que é capaz de arrancar lágrimas do ouvinte enquanto este se sente profundamente tocado pelas palavras motivacionais versadas por Gallagher. Com a chegada da segunda estrofe, o nível emocional da canção dá uma visível guinada com a entrada de um dodeceto de violinos, o qual funciona como um abraço caloroso, uma mão amiga que guia o indivíduo durante tempos difíceis. Com direito ainda a um quarteto de violas que dá um dulçor extasiante à melodia, Too Good For Giving Up se une a faixas como Don’t Go Halfway e a faixa-título no que tange a obtenção de lirismos motivacionais, esperançosos e acolhedores. Aqui, novamente Gallagher mergulha em um contexto de submergir das profundezas da depressão, de enxergar uma saída, de se sentir pertencente a um espaço e de, simplesmente, continuar vivendo. Nesse sentido, existe uma coleção de versos marcantes que enfeitam a canção com mensagens fortes que bloqueiam qualquer pensamento e sentimento depreciativo. São eles “reclaim your shame and dress it up in love”, “step out of the darkness unafraid” e o verso periódico “remember you belong here as much as anyone, even when you're just about to break”.


É com leveza que a melodia se inicia. Formada pela união de voz e violão, ela apresenta, inclusive, uma singela semelhança com a sonoridade inicial de Imitation Of Life, single do R.E.M. de maneira a promover uma ambiência melancólica quase transcendental. It Was Not Meant To Be fala sobre um personagem de uma bondade que beira a inocência, mas cuja essência foi perdida em algum momento. Curta em duração e em versos letrados, a faixa traz como principal mensagem a de não se isolar ou de não achar que determinados sentimentos devem ser guardados, sem dividi-los de maneira a suavizar as emoções e as dores.


O baixo de Greg Kurstin surge marcante, elétrico, estridente, rápido. Excitante. Crescente, a guitarra surge com repentes que enaltecem a presença de um amanhecer enigmático que vende a ideia do surpreendente. Quando a bateria de groove preciso e linear de Dave Grohl entra em cena, Everything’s Electric assume um caráter britpop incandescente, mesmo tendo uma estrutura melódica linear. Dialogando sobre sentimentos superficiais em uma alusão ao comportamento social de falsidade, a canção possui um lirismo que nega e rechaça esse tipo de atitude ao passo que é agraciada por um refrão chiclete sem apelação.


O compasso do bumbo em união à adocicada e agudez estridente da gaita, a melodia que se forma é de uma levada folk tradicional e contagiante. Curioso notar que, aqui, o vocal de Gallagher se assemelha, em alguns instantes e devido ao sonar agridoce, com  o timbre de Scott Weiland. World’s In Need é simplesmente uma canção que narra, como o próprio nome sugere, um mundo em necessidade. Necessidade de se reencontrar, de recriar harmonia, de se tornar novamente uma comunidade depois do grande impacto causado pela pandemia. Não por menos, a canção ainda faz menção às diversas e falsas indicações de remédios milagrosos que são eficazes contra a Covid-19, como é o caso da dupla periódica de versos “whatever happened to the world we knew, now it's full of drips, and phoney health tips”.


O piano de Ezra Koenig surge como um lamento, como um rio de lágrimas escorrendo sem remorso, mas com força de ser contido. Eis então que o grave do violoncelo imputa doses cavalares de dramaticidade enquanto o mellotron de Ariel Rechtshaid acompanha a guitarra em sua valsa solitária e melancólica. É verdade que Moscow Rules é recheada de um suspense incômodo, que transmite um estranho senso de insegurança e tensão durante os versos, mas a realidade é que ela é uma canção dramática e de finalização folclórica cujo protagonismo recai sobre os sobrevoos suavemente adocicados da flauta de Eliza Marshall. Liricamente, Moscow Rules é uma canção de influência beatleniana que trata sobre a relação do eu-lírico com a memória.


Seu início remete à estrutura introdutória de Everything’s Electric com a guitarra distorcida puxando o amanhecer melódico. Abafado e ao fundo, um bumbo sequencial é ouvido promovendo a contagem do tempo enquanto a sonoridade vai transitando entre o campo da música eletrônica e do indie rock. Com a entrada da bateria de Gunnar Olsen em compasso 4x4, o que se tem é, de fato, uma imersão no campo indie que tem, na ponte entre a primeira e a segunda estrofe, o baixo encorpado de Brad Truax como protagonista absoluto. Tendo leves flertes inclusive com o reggae, I’m Free é uma canção que, como o próprio nome sugere, dialoga sobre a liberdade em um contexto de intensa desinformação como foi o caso do auge pandêmico.


Uma doçura transcendental surge no horizonte. Através de uma valsa executada por um quatroceto de violino, o ouvinte se vê abraçado, acariciado e amparado por uma figura onipresente e angelical. Sobrevoos de uma alegria esperançosa e crepuscular são notados a partir do adocicado sopro da flauta recheando o ambiente com seu perfume floral. É então que Better Days de fato mostra seu verdadeiro escopo melódico, com uma levada britpop guiada por uma bateria de groove levemente acelerado e uma guitarra áspera que dá sabores mais enérgicos em relação à doçura que até então prosperava. Assim como Don’t Go Halfway e Too Good For Giving Up, Better Days é uma canção que dialoga com o pessimismo, a zona de conforto sofredora e melancólica. Contudo, também assim como a faixa-título, ela é agraciada por uma melodia reenergizante, motivacional e inspiradora que estimula o ouvinte a fugir do negacionismo, do sofrimento e passe a enxergar no horizonte o alvorecer de um novo amanhã. Outra canção que entra no time de singles de C’mon You Know.


É como estar sobrevoando o escuro infinito do espaço. A leveza do corpo faz esquecer os problemas, mas a visão da imensidão sideral emociona pela sua grandeza. É assim que Oh Sweet Children se apresenta ao ouvinte, na forma de uma canção reflexiva, minimalista e de lirismo focado na força de seguir em frente, na perseverança de vencer as dores da vida com amor.


A forma como a guitarra se pronuncia recria a paisagem ensolarada típica da afinação do instrumento adotada nas canções do Red Hot Chilli Peppers. Curiosamente, se percebe que a melodia da canção é construída sob uma paisagem tropical reggae emaranhada por flertes indies e alternativos, o que a confere uma cenografia tranquila e relaxante, mesmo com um baixo de groove intenso. De roupagem rítmica contagiante, The Joker é uma canção puramente descompromissada e relaxada que serve como um intervalo às abordagens intimistas e dramáticas sobre solidão, depressão e tristeza que tanto comandam C’mon You Know. Por isso, The Joker pode ser considerado um importante single lado b do álbum.


Existe uma ambiência ácida e estridente que beira o progressivo fundido à psicodelia setentista. É quase como uma cenografia rítmica do Deep Purple, mas agora guiada por uma dupla de guitarras formada entre Wyatt e Moore que é acompanhada pelo alvorecer entorpecidamente ácido do hammond. Provocante e excitante, Wave é talvez a música mais biográfica de todo C’mon You Know, pois nela Gallagher não apenas dialoga sobre a conturbada relação com seu irmão, mas também aborda tanto a falência de sua marca de roupa Pretty Green quanto o lucro que o Oasis levou à Sony durante a existência do grupo. A instabilidade da fama, o dinheiro em abundância, a vida em excessos. Wave é o retrato de uma vida intensa vivida em um ambiente de perigos sínicos e iminentes.


Surpreende em ver o tamanho da sensibilidade de Liam Gallagher. Para aqueles que pensam que apenas Noel Gallagher consegue escrever bons hits ou músicas de profundidade, C’mon You Know vem mostrar o contrário. Afinal, entre canções de temas intimistas que pairam por questões da psicologia humana e outras de teores autobiográficos, Liam mostrou ter musicalidade e um estilo de composição muito próprio.


É claro que Liam não conseguiu se desvincular da sonoridade que alavancou o Oasis, mas além do britpop e influências nítidas dos Beatles, o álbum possui uma ampla gama de gêneros musicais que transitam desde a música clássica, o indie rock, o rock alternativo até o reggae, o rock progressivo e o rock psicodélico.


Tudo estruturado com o auxílio de um grande time de músicos que ainda é composto por nomes como Adam Noble, Julian Burg, Danny Harle, Nick Zinner, Simon Aldred,  BJ Cole, Andy Waterworth, Dom Kelly, Stephen Street e Cor Anglais. Tal montante de músicos, guiados pelo engenheiro de mixagem Mark ‘Spike’ Stent, proporcionou uma sonoridade sensível e emotiva por todo álbum, mesmo naquelas faixas em que não havia tanto teor dramático.


O resultado de C’mon You Know mostra a essência de Liam Gallagher de maneira a ilustrá-lo em sua máxima liberdade criativa graças à união de seu companheiro Andrew Wyatt, que desde As You Were acompanha o músico nas produções de seus álbuns. Aqui, porém, Wyatt dividiu a função com Greg Kurstin, Danny Harle, Adam Noble, Simon Aldred e Emile Haynie.


Lançado em 27 de maio de 2022 via Warner Music Records, C’mon You Know é um álbum que contagia com suas mensagens motivacionais e aproxima o ouvinte de Liam Gallagher através de seus conteúdos autobiográficos. Sensível e de harmonias intensas, certamente este é o principal trabalho na carreira solo do caçula Gallagher.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.