Quarto Quarto - Prédio Cinza, Tempo Bom

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Do asfalto paulistano, outra banda surge para integrar o time underground fonográfico e musical. Depois de dois anos de entrosamento entre seus três membros, o power trio Quarto Quarto enfim anuncia publicamente Prédio Cinza, Tempo Bom, seu EP de estreia.


É como observar a paisagem acinzentada se movendo rapidamente pela janela do carro. O aroma do cigarro tragado é intenso e abraça todo o interior do automóvel causando certo conforto entorpecido. Macia e com pitadas soturnas, a melodia que funciona como trilha sonora de recorte no espaço tempo traz em sua essência uma associação com a sonoridade criada por Kurt Cobain na introdução de Heart-Shaped Box, single do Nirvana. Eis então que um vocal intermediário com um embrionário potencial de drive se coloca na superfície das camadas sonoras. É Thiago Romanelli imprimindo, coincidentemente, um timbre de singelo, mas audível parentesco com aquele de Cobain. Trazendo um refrão em cuja estrutura rítmica se assemelha àquela do ápice de Under The Bridge, single do Red Hot Chilli Peppers, Zolpidem é uma música que ilustra certo teor de dependência emocional imerso em impulsos repentinos de desprendimento que são rompidos por um estranho senso de conforto em se manter às margens da memória de um período que não mais voltará.


A forma como a guitarra sonoriza o ambiente traz certo torpor melancólico que remete àquele inserido por Klaus Eichstadt na ponte entre refrão e instrumental em Under The Bottom, single do Ugly Kid Joe. Contudo, é o compasso instaurado pelo chimbal da bateria de Caio Vieira que cria movimento e se responsabiliza pela contagem do tempo rítmico enquanto Romanelli entra em um delírio interno sobre desgosto pela vida. Por isso é que Controle soa soturno, mórbido e sombrio mesmo durante o ríspido e curto refrão. É como se a sonoridade estivesse respeitando o desejo do eu-lírico que diz: “não quero luz, melhor assim!”.


Curiosamente e inesperadamente amaciada, a melodia introdutória já oferece um sabor mais digestível a partir da estética blues ainda que a intensidade instrumental se mantenha deprimida e tristonha. Surpreendente é notar que, entre versos desafinados, Romanelli destrincha uma narrativa sobre um personagem que flerta com o conceito geracional atrelado, indiretamente, à crença reencarnacionista de maneira a promover paisagens que, sob a ótica do eu-lírico, lhe causa dèjá-vu. O interessante ainda é observar que, no refrão, existe um som agudo que caminha pela melodia com o intuito de não ser notado e, por isso, soa como se estivesse rastejando. Contudo, apesar de tal tentativa, a participação do teclado imputa um sentimentalismo melancólico latente, o que aumenta o torpor presente na melodia de Vista, uma música que sonoriza o contraste entre passado e presente.


Um estranho senso sombrio e embriagante se firma perante a melodia introdutória regida pela dupla bateria e guitarra. Preciso mencionar, contudo, a forma como o baixo de Nicolas Gulhote se pronuncia como um elemento que cria uma liga resistente entre as cordas e os tambores. Tímido, mas encorpado, o groove oferecido por tal instrumento exala um estado de morfina que paralisa o ouvinte enquanto a linearidade rítmica vai se desenrolando de maneira a oferecer uma singela semelhança com a ambiência melódica de Sin, faixa do Stone Temple Pilots. Contando a história de um personagem solitário, sofrido, renegado pela família e vivente da cultura das ruas, Não Vou é uma canção de ferocidade oposta, por exemplo, à de Zolpidem. Aqui, a melodia do refrão se coloca mais intensa enquanto o vocal é posicionado de maneira visceral em que expõe seu potencial rasgado.


Torpor é a palavra que melhor define a energia emanada por Prédio Cinza, Tempo Bom. Pelo sentimentalismo contido nas narrações líricas, é possível encontrar um forte elo com nomes como Evanescence, Nirvana e Stone Temple Pilots, afinal existe sofrimento, dramaticidade e uma confortável zona de conforto promovida pela estranha sensação de conforto trazida por um princípio depreciativo.


Como trilha sonora para determinado ambiente o Quarto Quarto apostou em uma espécie de revival do grunge com direito a pitadas de stoner rock. Curioso ainda é notar que, entre as melodias, existe uma maciez cuidadosamente posicionada para oferecer uma sensação de morfina para o sofrer, algo que não perdura por tanto tempo.


Para muitos, contudo, Prédio Cinza, Tempo Bom pode até soar como uma vertente do emo por conta de suas letras intensamente sentimentais. No entanto, a aspereza e acidez melódica fundida com interpretações líricas viscerais, introspectivas, sombrias e melancólicas faz com que a base rítmica do trabalho fuja de tal escopo melodramático.


Com mixagem assinada por Romanelli, o álbum produz um som de garagem e cru de maneira a ser perceptíveis alguns momentos de desafinação vocal. Em outros, inclusive, quase foram perceptíveis alguns chiados em determinados momentos, o que imputaria ao disco a identificação lo-fi, mas não se aplica. 


É então que a produção entra para fundir todo o caráter de experimentação e sentimentalismo em uma síntese que responda aos interesses do Quarto Quarto. E isso foi possível graças ao exercício duplo entre Romanelli e Gulhote, o qual possibilitou grandes doses de liberdade criativa.


Amarrando todos esses detalhes está a arte de capa. Feita por Giovanna Giunta, ela é calcada na dialética do preto e branco. Da luz e da sombra. Da vida e da morte. Ela é quase como uma obra de luto em que é possível observar referências ao sfumato de Leonardo Da Vinci, o que, por si só, dá tímidas características renascentistas à obra. Uma paisagem urbana que quase recria a arquitetura de edifícios localizados ao pé do Elevado Costa E Silva, o que já denota a melancolia. Mas é possível de se observar, também, o delicado e a pureza, fatores que traduzem a necessidade de amparo.


Lançado em 16 de março de 2022 de maneira independente, Prédio Cinza, Tempo Bom é um EP que sonoriza a nostalgia e a melancolia. É um trabalho que transborda torpor. É um trabalho cru de uma banda que promete reintroduzir o grunge visceral aos palcos undergrounds paulistanos, mas que ainda precisa de lapidação para poder extravasar melhor sua intensidade emocional. 

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.