NOTA DO CRÍTICO
Com 13 anos de existência, o power trio brasiliense Scalene rompe o hiato de três anos sem o lançamento de um trabalho fonográfico e anuncia um novo capítulo na sua discografia. Intitulado Labirinto, o sucessor de Respiro assume a posição de quinto disco de estúdio do trio.
A batida estruturada pela bateria de Philipe Conde é enérgica. Seu movimento recria, inclusive, uma sonoridade semelhante à do olodum soteropolitano. Na subdivisão da introdução, existe mais intensidade nos golpes, os quais passam a ser acompanhados por guitarras uníssonas de riff azedo inseridas pelos irmãos Gustavo Bertoni e Tomás Bertoni, mas que não denota, inicialmente, uma noção de perigo. Conforme um som que beira a agudez estridente vai se pronunciando através dos sintetizadores de G. Bertoni e Lucas Furtado, a mistura rítmica ganha ingredientes de uma adrenalina setentista que remete os efeitos do ecstasy e LSD, substâncias, à época, muito comuns em danceterias. É então que, enfim, toda a sonoridade é interligada pelo lirismo que, sob o timbre característico de G. Bertoni, cuja interpretação da narrativa soa entre um misto de torpor e uma antagônica introspectividade intensa, começa a tomar corpo na superfície melódica sob a companhia de Edgar no backing vocal. Ouroboros, coincidentemente, é uma faixa que ilustra a dualidade da luz e da sombra, da esperança e da descrença, da vida de da morte. Dramática e de toques sombrios, a canção ainda guarda uma explosiva, visceral, amarga e intensa ponte em que o Scalene parece exorcisar toda a negatividade que o abraça. Um momento em que o puro stoner rock atinge seu ápice.
Um beat sequencial, sutilmente acelerado e linear, é ouvido como um aviso. De súbito, uma explosão de azedume evidente e uma dramaticidade intrínseca notada pela pontualidade de sons melancólicos preenche todo o conteúdo sonoro com rispidez. Misturando o stoner rock com um princípio de nu metal tal como aquele disseminado pelo System Of A Down, Névoa ilustra a forma como as recordações podem atormentar um indivíduo envolto em remorsos, além de dialogar com o medo do autodescobrimento. É nesse momento que ocorre a percepção consciente dos verdadeiros impulsos e instintos, o que, para muitos, é assustador.
É quase como um zumbido de abelha. Tal sonoridade traz uma curiosa associação também com o despertar de Back To Life, faixa do Skillet. De súbito, mas sem causar estranheza, essa estridência sutil trazida pelo sintetizador se transforma em algo estonteante e embriagante. Uma melodia eletrônica de uma maciez tecnológica e hipnótica calcada em um beat que, executado por G. Bertoni e Vivian Kuczynski, é imersa na estética do downtempo e banha a linearidade do primeiro verso enquanto o lirismo que dialoga sobre as antíteses do desenvolvimento e regressão. O desenvolvimento interno e uma estranha força que puxa para a zona de conforto da mesmice. Conforme Discórdia vai ganhando ascendência na melodia, toques ásperos são incrementados pela guitarra na atmosfera majoritariamente entorpecida que abraça, inclusive, palavras que formam uma crítica afiada do vício tecnológico e a consequente perda da noção e da importância do tempo nas relações sociais. Mas não só isso. Tais palavras lançam luz também ao sentimento de solidão que as telas causam ao mesmo tempo em que dão a falsa ideia de interação. Discórdia é uma faixa que é liricamente crítica e melodicamente sob uma roupagem semelhante ao indie rock executado pelo Imagine Dragons.
A bateria surge crua, solitária, lenta e com um toque de chiado. Como uma nuvem de embrionária densidade surgindo no horizonte, um som que beira o ácido começa a imergir a partir dos sintetizadores de G. Bertoni, Furtado e Diego Marx. É então que o princípio de dramaticidade, pressão e até mesmo intensidade evidencia sua silhueta a partir do contraste entre luz e sombra. Mantendo a estética linear e sonoramente minimalista, a canção passa a ser preenchida por um vocal sussurrante cuja interpretação lírica enaltece a qualidade de suspense presente na melodia. Não por menos, Sincopado é de fato um produto sombrio e tenso. Sob uma visão mista de realidade e pessimismo perante a descoberta das verdadeiras essências do indivíduo, a canção ilustra a pendência do ser humano para aquilo que é ruim e mau. Os impulsos destrutivos, egoístas, imprudentes. Mesclando a sonoridade árabe sob um solo híbrido de downtempo e indie rock, Sincopado se encerra tensa de forma a causar incômodo no estômago e um frio enigmático na barriga a partir da dramática valsa entre a viola e o violino de Felipe Pacheco ao evidenciar que o principal inimigo do indivíduo é ele mesmo. É tal como diz G. Bertoni na estrofe final: “viro posse de quem devo, o que devo e o que temo. A vergonha de se encarar”.
Murmúrios ecoantes e sedutores como o canto das sereias preenche o ambiente. Calando tal presença vem um som ondulante, nauseante e sutilmente áspero acompanhado de um beat espaçado que serve de base-guia para um lirismo cuja profunda essência oferece uma estranha sensualidade que dá vida ao cenário libidinoso que consiste o enredo de Abissal. Ao entrar em seu ápice melódico, a canção acaba criando uma curiosa semelhança com a áspera, azeda e aflitiva sonoridade do refrão de Ninguém Entende Você, faixa do Charlie Brown Jr.. Trazendo, ainda, uma semelhança com a sonoridade do t.A.T.u ao fundir sons eletrônicos e rock na mesma atmosfera, Abissal é uma música sobre torpor, sobre intensidade, mas também pode ser entendida como uma abordagem sensualmente romanceada da morte a partir do verso “e, nesse caso, não vai ter mais aqui o cordão pra te segurar, vem”, o qual traz a alusão da perda do cordão de prata.
Entre o embriagante som do sintetizador, notas agudas são pinceladas pelo xilofone causando uma ambiência astrológica à introdução. O baixo, surgido em seguida, oferece uma noção mais racional ao mesmo tempo que acompanha, com certo distanciamento, o devaneio introspectivo oferecido por tal melodia. Tratando da pressa, da rigidez e da zona de conforto que, apesar de ser tranquilizante, também representa retrocesso no desenvolvimento do caráter do indivíduo, Tantra é suave, macia e de tamanha tranquilidade que soa como um mantra aconchegante.
Macia, tranquila, linear, fluída. A introdução possui uma estrutura sensível que encanta pela sutileza com que sobrevoa o espectro sonoro que compõe a canção ainda em construção. Sem efeitos digitais, a sonoridade vem limpa tal como o vocal de G. Bertoni que, se aventurando entre melismas, já vem introduzindo, de maneira introspectiva, um lirismo cuja reflexão inicial paira sobre as essências opostas que compõem a identidade de um indivíduo, bem como a falta de consistência na obtenção de um senso de maturidade. Oferecendo, na ponte entre refrão e verso de ar, uma semelhança melódica com aquela sonoridade que finaliza Olhos Certos, single do Detonautas Roque Clube, 27 é uma canção que exala uma insegurança autêntica sobre o livre arbítrio, sobre o não saber qual caminho certo a seguir. Sobre o desconforto perante a imprevisibilidade do destino.
Um coro sobreposto de vozes guturais preenche a amplitude do ambiente com um sinistro ecoar. Eis que uma realidade feliz agracia o ouvinte. Depois de um intervalo de cinco faixas, o Scalene enfim reassume a sujeira, a estridência e a rispidez do stoner rock aqui acompanhada de pinceladas eletrônicas que enaltecem o sabor majoritariamente azedo que compõe a melodia introdutória de 1=2. É interessante notar que, pela intensa pressão exercida pelo baixo, existe uma ligeira assimilação com a densidade exalada pela sonoridade do Evanescence em tal aspecto. Assim como em Sincopado, 1=2 traz consigo a reflexão perceptiva de que o indivíduo é seu próprio inimigo. Contudo, na presente faixa existe a exploração das esferas sombrias da essência comportamental de maneira consciente, o que torna as atitudes cabíveis de julgamento. Com a presença de Gabriel Zander assumindo a postura de um backing vocal que enaltece determinados versos, a canção acaba, inclusive, flertando com a roupagem hardcore, mas sem tanta representatividade.
Sons ambientes como o raspar da palha da vassoura no chão são ouvidos ao passo que uma aspereza aguda começa a ressoar sob efeito fade in no ambiente. A bateria, inclusive, é inserida na mesma métrica em uma sobreposição secundária até que, enfim, a melodia explode. Explode em uma estética rítmica sci-fi que ambienta o ouvinte em uma realidade puramente tecnológica. Não por acaso, o que se firma como enredo é uma narrativa que muito lembra o contexto de 1984, obra de George Orwell, pois o lirismo discute a perda da noção da privacidade em um universo constantemente vigiado. Isso fica evidente na estrofe “se o que quero é o que querem, o que tenho não é meu nem nunca foi para partilhar. Lá se foi seu desejo hackeado”. Por outro lado, 01010010 01001100 também reflete sobre o anonimato e nas redes, sobre a perda de identidade, o que se percebe na estrofe “o restante do fel, sempre lá em cada gole d'água. Vigilância cruel, escapar. Zeros e uns soltos ao léu”.
A batida do beat, acelerada e linear, oferece um inimaginável compasso pop punk. Apesar de esse subgênero pedir leveza e até mesmo generosas doses de alegria, a adaptação efetuada pelo Scalene sugere uma imersão sombria para tal segmento rítmico. Dando então sustentação para tal escurecer do pop punk, o enredo apresentado em Revés não é imerso em metáforas ou analogias. Seu desenvolver não permite muitas saídas interpretativas. Portanto, o que é colocado é uma crítica sobre o comportamento incessantemente conservador da sociedade, o qual prevê a uniformidade das peças que compõem o tabuleiro da comunidade. Há, inclusive, uma visão analítica sobre a necessidade do pertencer, do ser aceito e de uma atenção que mascara a carência emocional.
Aspereza, velocidade, rispidez, agressividade. Linearidade explosiva. De tão rápida e intensa, a melodia introdutória chega a soar até mesmo truncada em alguns momentos. Ao fluir para o primeiro verso, a sonoridade é enxugada e promove uma sensação de estranha levitação e impotência que chega a causar desconforto. Febril possui um enredo lírico que parece descrever a agoniante realidade da obesidade mórbida, observação que não é concretizada. Em verdade, a presente faixa parece tratar da aflitiva sensação de culpa que paira sobre o eu-lírico. Dramática e visceral, Febril é uma música que transita livremente entre terrenos díspares do indie rock e de um extremo stoner que beira o noise rock.
De todas as faixas de Labirinto, Fortuna é definitivamente aquela que melhor defende os conceitos de introspecção e minimalismo. De introdução acústica calcada na estética voz e violão, ela já vem acompanhada de uma energia transcendental e de toques curiosamente astrais. Fluindo para um refrão explosivo, mas profundamente entorpecido como se fosse abrangido por uma densa camada de um acrílico gelatinoso, Fortuna escancara suas qualidades mistas de post-grunge, heavy metal e indie rock. Carregando consigo um suspense rítmico semelhante àquele presente em Aerials, single do System Of A Down, Fortuna é onde Gustavo Bertoni brinca com a semelhança de sons entre as palavras ao criar um diálogo que soa justaposto. É nela que, mais uma vez, ocorre a discussão sobre a relação do pertencer, do ser aceito e do assumir a identidade. É onde se constata as dualidades emocionais e se cria consciência de que o falhar não significa imperfeição. Ou, ainda, assume a verdade de que falhar é apenas a prova de que nenhum indivíduo é igual ao outro. Por isso, a participação de Tanner Merritt e a terceira guitarra executada por Johnny Dang entregam ainda mais visceralidade nessa que é uma música de intensidade marcante mesmo nos momentos de entorpecidos marasmos.
Sons agudos e opacos surgem da percussão criando um movimento que já destila um compasso contagiante. Ao fundo, um som constante e linear soa como cantarolares fantasmagóricos sofredores e lamentosos que acompanham a dissertação reflexiva trazida por G. Bertoni. Na chegada do pré-refrão, o tilintar do triângulo cria uma levada ligeiramente nordestina para Jardim, uma música que dialoga sobre a sensibilidade e a ausência dela. Discute o caráter aprendido por repetição impositiva, mas acima de tudo, discute a pureza e o positivismo, qualidades que nem sempre são observadas nas pessoas como consequência da criação das mesmas. Uma música que comunica, em outras palavras, que até mesmo aqueles que se escondem em uma couraça séria e fria amam e sentem.
O tempo de três anos pode significar pouco e ao mesmo tempo muito. No caso do Scalene, muita foi a transformação entre os temas líricos das canções de Respiro para as de Labirinto. No presente álbum, elas são mais intimistas, analíticas, intensas e de teor fortemente autobiográfico. É quase como o alvorecer de uma personalidade calcada na mais pura maturidade emocional.
Uma maturidade que é evidenciada, inclusive, entre o time de músicos que compõe a melodia totalizante do álbum. Em tal equipe é notável a existência das qualidades de sensibilidade, compreensão, humanidade, respeito e integridade. Há reciprocidade e há, principalmente, uma energia de comunidade que exala de cada acorde e de cada arranjo de cordas feito por Edu Canavezes.
É inegável, contudo, que Labirinto é uma análise profunda da essência do indivíduo, de suas dualidades emocionais, dos impulsos, dos desejos, dos arrependimentos. Do temer, do sentir. Do amar. Não foi à toa que tal título foi escolhido para o trabalho. Afinal, tanto a mente quanto o coração proporcionam labirintos infinitos de sentimentos que regem posturas das mais diversas intenções.
Contrariamente a essa percepção, o álbum é banhado por uma melodia formada por um mix de gêneros musicais, mas que ainda assim, em uma totalidade, soa homogêneo e consistente. Nesse caldeirão é onde pode ser encontrado muito mais do que somente o stoner rock. Em Labirinto existe indie rock, pop punk, hardcore, lo-fi, sci-fi e downtempo.
Tal experimentação melódica foi muito bem sintetizada pela mixagem de Ricardo Ponte, quem conseguiu fazer com que o disco soasse maduro, intenso e, principalmente, consistente. Já a produção, responsável por abraçar todo o escopo técnico, foi feita pelo Scalene ao lado de Diego Marx, o que explica a liberdade criativa que o disco exala durante suas 13 composições.
Como elemento que salta aos olhos e funciona como o convite que intriga o ouvinte a se aventurar pelos enredos do álbum vem a arte de capa. Feita por um vasto time composto por nomes como André Rola, João Ferro, Victor Corrêa, Lucas Pazos, Rodrigo Paz e Victoria Angel, o conteúdo visual encarna o teor dramático, sombrio e intenso propagado em Labirinto. Sua arquitetura rochosa e escura sugere o desconhecido e a presença de apenas um homem reflete a metáfora da imersão no amplo ambiente da própria consciência. Nada menos que uma exploração em nome do autoconhecimento.
Lançado em 11 de março de 2022 via slap, Labirinto é um disco intenso e de sonoridade consistente. É uma análise profunda das antíteses emocionais que compõem o ser humano sob uma ótica sensível e humanizada. Um capítulo certamente importante para a discografia do Scalene.