NOTA DO CRÍTICO
União de imagens e música. Essa é a proposta de Pequenos Grandes Universos, EP composto pela cantora, compositora e produtora musical Andrea Martins ao lado da artista visual Rana Tosto. Tudo nascido a partir de composições despretensiosas no ateliê da casa onde ambas residem.
A paisagem é de um entardecer de verão. Visto da janela do segundo andar, o avermelhado do céu junto ao som do vaivém da maré causa sensações de conforto e aconchego abundantes. Como trilha sonora dessa paisagem entorpecidamente relaxante, vem um chiado que logo é seguido por um som de teclado embriagante unido a um beat de caráter eletrônico impresso por Andrea Martins. Quando o baixo de Manoel Tosto entra em cena, ele passa a imprimir na sonoridade uma corpulência que acaba inserindo um aroma até mesmo sensual na atmosfera intimista de Arrebol. A guitarra, que surge como um personagem de passagem rápida, imprime uma estridência amaciada e inebriante que amplifica o sabor de paz e tranquilidade. Eis então que um elemento aparece como amarração de todo o contexto sonoro. É Andrea trazendo seu timbre agudo e embrionariamente ácido para o contexto melódico de Arrebol. É inclusive a partir das linhas vocais por ela interpretadas que a canção evidencia seu valor transcendentalmente calmante e sensual. Com direito a um solo de escaleta sobrevoando a linearidade da guitarra, Arrebol é como a veneração do tempo em sua atividade de moldar a paisagem com diferentes intensidades de luz, diversas tonalidades cromáticas e uma sensação de satisfação enigmática.
Assim como na canção anterior, é o chiado que se pronuncia primeiro como um tipo de sonoridade estranha. Conforme a luminosidade incendeia o ambiente visual, tal chiado vai desaparecendo e dando lugar para uma entorpecida e calmante união dos sons de teclado e da movimentação da água. Reintroduzindo o caráter sensual tão presente na canção anterior, o beat vem oferecendo uma cadência mais minimalista enquanto Andrea insere um vocal em que o ouvinte consegue degustar com mais facilidade a completude de seu timbre de maneira a perceber, nele, uma semelhança com o tom de Lana Del Rey. Olho Do Mar é uma canção cujo lirismo traz a pluralidade do indivíduo, a dualidade emocional que forma a identidade e o processo árduo no curso do autoconhecimento. Um caminho que faz com que atitudes sejam revistas, arrependimentos, raivas, desapontamentos. A vontade de ter um norte, um roteiro, para saber onde é possível acertar e, consequentemente, evitar erros é algo que guia todo o inconsciente da insegurança e da impulsividade. Contando ainda com uma narrativa de interpretação despropositadamente sensual oferecida por Rana Tosto a partir do idioma espanhol, Olho Do Mar é completo por um cenário que informa simplesmente o hipnotismo causado pelo mar, um elemento que melhor representa a fluidez, a vulnerabilidade e a imprevisibilidade da vida.
O som impresso pela programação parece imitar levemente a sonoridade aveludada do teclado fender rhodes. Acompanhada por um beat mais bem elaborado, a melodia em construção acaba assumindo uma cadência diferenciada e de toques mais estimulantes. Não a toa que até mesmo o baixo aparece com um groove de movimentos mais convidativos, o que vai tornando a faixa um produto de caráter bastante popular. Vinheta Do Amor traz guitarras interpretadas por Andrea e Atila Santana além de uma sensualidade rítmica inebriante enquanto o lirismo, como o próprio título da canção sugere, enaltece o amor, a conquista e a força da união.
Nostálgica e reflexiva. A paisagem da noite paira como um quadro que representa uma porta amplamente aberta para as memórias e para o pensar. O processo do anoitecer, momento em que a claridade do dia recebe uma baixa de intensidade e conta com a companhia do brilho das estrelas e da tímida silhueta da Lua como formas pinceladas aleatoriamente em uma paisagem tranquilizante, oferece ainda mais calmaria e um senso de saudade inexplicável. Eis então que a trilha sonora dessa ambiência pede algo novo e inusitado. Por isso é que a melodia oferecida pela estrutura melódica calcada na dupla voz e violão proporciona uma interessante imersão no campo da MPB. Misturando uma sonoridade pop que, curiosamente, causa uma enigmática semelhança com o movimento rítmico criado pelo violão executado por Fiuk em seu single conjunto com Jorge Ben, Quero Toda Noite, a presente faixa possui aromas pop contagiantes. Vida Viagem liricamente oferece outro ponto de vista do autoconhecimento, uma ideia de busca pelo viver e pelo experienciar da vida. Uma música que traz, inclusive, um senso desmedido de liberdade que parece se inspirar na história de Christopher McCandless, a qual foi contada na obra cinematográfica Na Natureza Selvagem.
Macio, sensual, contagiante. Pequenos Grandes Universos é um EP sensorial cuja narrativa oferece um devaneio sobre o amor, sobre a vida e sobre, principalmente, a relação com o tempo. Em tempos de crises emocionais intensas e de repentinos conflitos bélicos de interesse, ter a oportunidade para contemplar as coisas simples e poder olhar para si mesmo em uma sinergia íntima em busca do autoconhecimento é um verdadeiro presente. É isso o que propõe o Extended Play.
Para amplificar os sentimentos de calmaria, tranquilidade, paz, energias melancólico-nostálgicas e até mesmo as texturas sensuais, o EP ainda é agraciado por imagens que representam o cerne de cada capítulo musicado. Feitas por Rana Tosto, as imagens conseguem transmitir uma gama de sensações tão grandes que, em união às melodias construídas, chegam a ser até mesmo de uma intensidade robusta.
E isso é obtido principalmente através da mixagem, exercício que consegue arredondar a sonoridade proposta pelo trabalho de maneira a manter toda a identidade rítmica. Em Pequenos Grandes Universos, ela foi feita por Léo Ribeiro, quem conseguiu equalizar tal trilha sonora de maneira a fazê-la soar quase como um mantra. Um mantra que mistura eletrônico, lo-fi, pop e MPB.
Amarrando toda a parte técnica vem a produção, que, no caso, é assinada em conjunto por Andrea Martins e Felipe Rodarte. Essa parceria proporcionou um senso ilimitado de devaneios criativos ao mesmo tempo que um norte a ser seguido para manter certo quesito de linearidade estética.
Fechando a conjuntura de Pequenos Grandes Universos vem a arte de capa. Feita também por Rana, ela encarna uma atmosfera astral, nostálgica, melancólica e até mesmo transcendental. A escolha das cores, inclusive, oferece um ar até mesmo místico para uma paisagem que representa desde a finalidade de um ciclo quanto o alvorecer de outro imergido na possibilidade do diferente e do novo.
Lançado em 14 de março de 2022 via Toca Discos, Pequenos Grandes Universos é a melodia paisagista que oferece um cardápio de sensualidade, maciez, conforto e aconchego. É um EP melódico-visual que proporciona, literalmente, dar racionalidade à imaginação e liberdade para os sentidos.