Mathagal - Contos de Meia-Noite

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

O Halloween, ou nacionalmente o Dia do Saci, é uma data que inspira não apenas uma maior sensibilidade quanto ao sentimento da insegurança. Ele é também um período em que as fábulas, os contos e os mitos tomam proporções ainda mais palpáveis. Foi se apoiando nisso que o texano-catarinense Mathagal lança Contos De Meia-Noite, seu EP de estreia.


É como estar andando sobre o lamaçal. A paisagem é mais que insalubre. Não há luz, não há cor, não há beleza. O cheiro mórbido impregna até os poros olfativos mais profundos. Sobre as áreas úmidas, é possível enxergar vultos que, juntos, se transformam em uma silhueta fantasmagórica de uma embarcação mortífera que parece transportar almas penadas. Enquanto isso, o personagem melódico, sem nem precisar ser devidamente apresentado, consegue comunicar o medo, a angústia e o desespero de estar em tal ambiente. Esse é o cenário que Intro, uma canção cujas guitarras de Guilherme “Guigo” Adriano e Juvi Cristofolini, criam uma ambiência doom intensa e quase claustrofóbica. 


Sombrio e brutal, mas sem aspereza. O doom se confunde com outras roupagens intensas do heavy metal, como o black metal e até mesmo o screamo enquanto o baixo grave e ao mesmo tempo encorpado se transforma em um importante elemento de construção da pressão melódica. Tenebrosa e capaz de causar calafrios com sua narrativa gutural rasgada, Aphastatupi surpreende ao trazer um lirismo em português que narra a existência de uma figura mórbido-vampiresca traduzida como uma espécie de bicho-papão, um ser imagético construído pelas mais profundas confusões emocionais do ser humano. Interessante notar que, ainda que para muitos seja apelativa, Aphastatupi consegue discutir a atualidade insana vivida pela sociedade brasileira especificamente, em que o ódio, a intolerância e o extremismo se tornaram a própria imagem da essência até mesmo daqueles que, em momentos decisivos, foram indiferentes.


O som tilintante e agudo consegue promover a mesma noção de insegurança daquela construída em Nightmare, single do Avenged Sevenfold. Porém, diferente dela, a presente faixa é acompanhada por sons que parecem ser gritos penosos que, de súbito, são calados por uma grave, bruta e explosiva melodia completa por um azedume insaciável vindo do timbre áspero e regojizante de Raphael Jorge, quem imprime o death metal como ritmo-base. Ainda assim, é ele que também consegue fazer de Emília uma narrativa onipresente e fabulesca capaz de transformar Emília, a icônica personagem de Monteiro Lobato, em uma figura luxúrica, libídica, sarcástica e sínica cuja existência é regida pelo orgulho e, principalmente, pelo rancor.


É como uma fresta de luz rompendo a densa camada escura das nuvens trovejantes. Um oásis de paz e tranquilidade se firma com uma melodia MPB-sambada que, de súbito, é varrida do cenário por rompantes ásperos, brutos e densos. Interlúdio é uma canção calcada em uma interessante dicotomia rítmica letrada, curiosamente, por recortes de noticiários televisivos que, ao fundo, narram eventos envolvendo o Chupa Cabra.


O tilintar acelerado e linear do agogô dá uma ambiência nordestina cativante à introdução com sua levada xote. Porém, essa melodia ilusoriamente alegre serve como roupagem para uma narrativa inicial de uma espécie de temor não identificado da população de Barra Bonita, que afirma com unanimidade já ter sido atacada por uma figura enigmática. E nesse aspecto, as inserções bojudas e pontuais do baixo servem para aumentar a sensação de desconforto em relação ao desconhecido. Eis então que um rompante bruto regido por um urro rasgado e agonizante imerge ao ambiente. De melodia compassada e trotante a partir dos golpes cadenciados do bumbo, a canção consegue, curiosamente, alcançar certo grau de contágio que faz com que o ouvinte consiga se aprofundar mais ao conteúdo lírico apresentado. O curioso é que de todas as faixas até então apresentadas em Contos De Meia-Noite, Chupa Cabra é aquela de menos filtro. Mais transparente, sem delongas ou qualquer amarra comercial, ela traz um enredo cristalino de uma figura carniceira, sanguinária, agressiva e instintiva que se diverte com o medo alheio e se alimenta pelo simples transpirar ocasionado pela insegurança.


A noite está a todo o vapor, tanto que o sonar noturno banha o ambiente com chiares e estridulações que, antagonicamente ao caos enaltecido no EP, trazem uma noção de calmaria ainda mais latente que aqueles hipnóticos súbitos momentos de paz oferecidos em Interlúdio. Com o mesmo efeito, porém, a interpretação de Roots Bloody Roots, single do Sepultura, traz uma mescla de stoner, nu metal, metal alternativo e screamo que atinge patamares nauseantes latentes.


Às vezes, aquilo que não se pode ver, ouvir, tocar ou sentir causa repulsa. O simples fato de falatórios frequentes sobre algo já basta para que ele se torne um mito ou uma figura fabulesca. É como criar, com o instinto do medo, o comportamento mecânico e de imitação da precaução, mas uma precaução descabida. Isso é Contos De Meia-Noite, um EP que usa do pavor para alimentar a insegurança a partir de melodias carniceiras e brutais.


Isso por si só já mostra o desprendimento do Mathagal em relação ao mainstream. O trio mostra uma posição até escrachada quanto o que é consumido pela massa ao entregar um produto que, por muitas vezes, oferece um ambiente propositadamente dissonante. Afinal, esse é o ingrediente, a cereja do bolo, que faz com que o EP seja assustadoramente intrigante.


Intrigante porque, apesar de ter como base vertentes intensas e extremistas do heavy metal, como o death metal, nu metal e o black metal, unidas à pinceladas de stoner e metal alternativo, Contos De Meia-Noite traz também brasilidade. Entre a agressão explícita desses ambientes rítmicos também existe a maciez do samba e da MPB e o contágio do xote chamuscados pontualmente entre as seis faixas do EP.


É assim que, além de transformar personagens icônicas da literatura brasileira, como Emília e Chupa Cabra em figuras medonhas e horripilantes, ele discute aspectos sociais da luxúria, da libido, da indiferença e do extremismo que muito pautam o comportamento da sociedade brasileira atual. Tudo isso alcançado graças à sincronia de The Gee J na produção, que mostrou visível sinergia com a proposta do trio.


Fechando o escopo técnico de Contos De Meia-Noite vem a arte de capa. Assinada por Al Fantasy Art, ela traz os três integrantes em evidência sob vestes mortíferas como os dementadores, personagens decisivos na trama de Harry Potter E O Prisioneiro de Azkaban. São figuras que se alimentam do medo, mas também que são capazes de sugar a essência dos indivíduos. E com pinceladas de natureza, a obra comunica que ambos os personagens são selvagens, mas que também oferecem ares mitológicos.


Lançado em 31 de outubro de 2022 de maneira independente, Contos De Meia-Noite é um EP que se alimenta da insegurança, do medo e do senso de dependência do indivíduo. É um material que, apoiado na brutalidade, mostra o quanto que o indivíduo é medroso e, subliminarmente, acredita em falsidades descabidas em uma clara crítica ao fenômeno das fake news. Um pavor que cala, mas que reflete.













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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.