NOTA DO CRÍTICO
Assim como os nomes Karnak Seti, Volbeat e Romulo Carvalho, Gah Setúbal opta por fazer o segundo tempo de 2021 o momento ideal para divulgar um novo capítulo de sua jornada musical. Intitulado Álbum, o EP é o sucessor de VIA, seu disco de estreia em carreira solo.
Uma tensão entorpecida por uma maciez estranhamente dramática é instaurada. A união do piano com o violão constrói um ambiente regado a um suspense que guarda uma considerável expectativa. Eis que uma voz amena e com notas levemente roucas entra em cena. É Gah Setúbal trazendo com sua cadência vocal o compasso do xote que acaba se somando aos flertes rítmicos do manguebeat proporcionado pela pressão das notas graves pontuais do piano de Rafael Castro. Com direito a beats sobrevoando a segunda estrofe, Na Pressão é uma música que traz na imagem de uma panela cozinhando, a deixa de falar sobre temas que assolam o norte e o centro-oeste tais como desmatamento, incêndios criminosos e invasão de terras indígenas. A adaptação da faixa de autoria de Lenine traz um ar mais afiado de crítica e uma melodia ainda mais atraente.
Ventos de uma MPB carioca são soprados pelo céu. O gingado e a maciez típica do Rio de Janeiro se mostram bastante presentes no riff introdutório do violão de Setúbal. Recebendo a união de metais como o trompete, a sonoridade em construção da canção vai ganhando uma alegria aveludada e ao mesmo tempo contagiante. Esse swing descompromissado faz de Perguntas uma canção bastante distante do enredo lírico-melódico presente na adaptação de Na Pressão. Afinal, enquanto o baixo vai guiando a sonoridade com seu groove preciso e marcante, a melodia vai entrando em uma atmosfera cada vez mais amaciada até que ela chega no refrão, momento em que ocorre a imersão no reggae e sua suavidade sedutora. Perguntas é uma canção ensolarada que fala de romance, paixonite, amor e que discute a intensidade e validade das relações. Com direito a um solo de guitarra que cheira a descompromisso, Perguntas contagia pela sua simplicidade e encanta pela sua malemolência, fatores que são alcançados graças a versatilidade e sutileza com que Pedro Gongom domina as baquetas.
É como caminhar sob um chão de terra batida. É como o cheiro do capim. É como o cheiro de café saindo do bule. Não apenas o ambiente bucólico, mas também a ambiência rítmica sertaneja estão presentes na introdução a partir dos riffs doces do violão. Se em Perguntas havia uma simplicidade melódica, em Haja Gogó ela é o alicerce da harmonia, afinal, a beleza está na sonoridade folk minimalista que conta com elementos percussivos como a conga que são pincelados no rascunho da canção, na sensibilidade com que Setúbal oferece a interpretação de um lirismo que fala de liberdade ao mesmo tempo em que tangencia a insegurança e traz a música como espécie de terapia que exorta todos os sentimentos que carregam a tristeza de algo não resolvido. É assim que Haja Gogó acaba se tornando a música mais sedutora e atraente de Álbum.
Saindo do sertanejo e do folk, Gah Setúbal leva o ouvinte para um cenário até então desconhecido. Oferecendo uma melodia regada em beats e em sons tecnológicos, o cantor mergulha no universo de um rap entorpecido e sutilmente dramático enquanto vai amaciando os ouvidos do espectador e prepara-lo para não se incomodar com sonoridades psicodélicas, ácidas e ondulantes. Bardo traz um enredo que conta sobre um eu-lírico capaz de carregar metáforas, alusões, texturas e roteiros a partir de sua fala. Entre sopros de trompete e notas de um teclado que beira uma ambiência gótica sinistra, o que Setúbal faz é trazer o personagem como sendo a voz do inconsciente, um sopro da mente se comunicando intuitivamente com o indivíduo.
É como a luz do Sol vista entre a grama molhada de serração. A psicodelia, diferente de Bardo, acaba sendo integrante indispensável na melodia em construção, que também traz elementos da MPB. Aludindo à liberdade como um meio de trazer cicatrizes que moldam o comportamento do ser, em Atlas Setúbal destrincha sobre o imediatismo, a pressa e a forma como se lida com o presente.
Definitivamente, Álbum é um EP em que as músicas não se comunicam ritmicamente e nem liricamente. No entanto, esse é o grande trunfo do trabalho de Gah Setúbal, afinal isso mostra a versatilidade e a sabedoria do músico em transitar por diferentes roupagens sonoras sem perder sua assinatura, que é trazer beleza a partir da simplicidade de elementos.
Isso é evidente em todas as canções, inclusive na adaptação de Na Pressão, momento em que o cantor inseriu uma amplitude ainda maior de suspense e tensão no enredo melódico da faixa. Claro que, nesse aspecto, os músicos recrutados por Setúbal tiveram grande importância, pois criaram, nas cinco faixas de Álbum, uma harmonia que soou espontânea e sincrônica.
Transitando entre xote, manguebeat, MPB, sertanejo, rap, xote, reggae, manguebeat e psicodelia, o EP caminha por temas que vão desde denúncias sociais a abordagens leves a respeito de relacionamentos e autoconhecimento. E nada melhor para comunicar esses diferentes elementos do que com uma capa monocromática e de textura visualmente saliente. Feita por Maria Cau Levy, ela funciona como a capa de um livro cujo enredo traz diferentes enredos e diferentes cenários.
Lançado em 03 de dezembro de 2021 de maneira independente, Álbum é como um livro de capítulos formados por enredos e personagens completamente diferentes. É como a imprevisibilidade da vida e a heterogenia social. Uma obre que se comunica com todos de maneira melodicamente plural e abrangente.