NOTA DO CRÍTICO
Nos moldes da pandemia. Afinal, foi à distância que Renan Vansconcelos e Saulo von Seehausen estreitaram laços criativos e proporcionaram o nascimento de Pra Hoje. Colaborativo entre Dramón e look ma! no wings, o EP é originado da ponte São Paulo-Petrópolis numa clara fusão do concreto com imperial. Do asfalto e da natureza tropical.
As ondas do mar se chocam por entre os paredões de pedra. A chuva cai fina como um véu que baila na sinfonia das rajadas de vento cadenciadas. O cenário, visto por uma janela de vidro embaçada, é proporcionado a partir de notas tristes, agudas e entorpecidas do piano na união de cintilantes acordes melancólicos de violinos percebidos quase que escondidos atrás da barreira melódica de Monopolizar a Tristeza.
Parece cena de contos de fadas. A luz do sol balança os galhos rodeados por folhas verdes em um jardim florido e perfumado. Ocasionado pelas notas angelicais da harpa, esse cenário de beleza angelical e aveludado se transforma em um ambiente dramático cuja levada rap cria um movimento cadenciado. Ao fundo e momentaneamente, são ouvidos gritos sem fôlego, como em súplica, pedindo por ajuda ou atenção enquanto o sintetizador insere sonoridades gélidas na melodia de Lavar os Copos, Contar os Corpos. Ritmicamente cadenciada, a canção possui um misto de morbidez e torpor que, estranhamente, soa sedutor.
É como abrir os olhos embaixo d’água e se manter extasiado por um breve momento. Essa sensação morfinesca paira pelos poros do ouvinte durante a introdução de Destruir as Máquinas que Me Esgotam. Com uma ambiência sci-fi, a canção ganha mais elementos construtores de cenário com a participação do baixo de Leandro Bronze. Afinal, além de inserir groove, o som encorpado do instrumento oferece um movimento expansivo que engrandecem as qualidades áudio-sensoriais do ouvinte, quem ainda capta cansaço e a esperança de se ter esperança em um ambiente sonoro embriagante e estranhamente reconfortante.
A noção sci-fi de Destruir as Máquinas que Me Esgotam segue em Mudar a Estação, Trocar de Canal, mas com menos força. Em contrapartida, a presente faixa parece recriar a ambiência de Lavar os Copos, Contar os Corpos, pois possui a ideia de alegria, entusiasmo em união à concepção de renascimento a partir do som doce e aveludadamente alcoólico do sintetizador. Na entrada do refrão, a inserção do beat faz com que a canção assuma contornos de música disco e estimule o ouvinte a dançar em ritmo de cadência gradativa.
É como o nascer do Sol por entre nuvens. O sintetizador de som gélido e entorpecido é acompanhado por um singelo, conciso e reconfortante riff da guitarra de Felipe Duriez. Com a surpreendente inserção de um som corpulento e crescente, a melodia garante uma saborização mais profunda de seus ingredientes. Isso é devido ao baixo de Paulo Maganinho. Porém, não somente a guitarra e o baixo são os diferenciais de Congelar o Lago dos Cisnes. Afinal, assim como em Monopolizar a Tristeza, a presente faixa ganha uma dramatização latente com as notas do piano. Grave, o som oferecido pelo piano desperta embriaguez e uma curiosa mescla de melancolia e esperança no ouvinte, o qual, de súbito, é transferido de uma ambiência clássica secular para um ambiente mais setentista com direito a ácido e chip tune. Sugerindo um diálogo de reconciliação, Congelar o Lago dos Cisnes possui um enredo de fácil compreensão que transita da tristeza entorpecida para o perdão e a harmonia. A perfeita sensorialidade do caos interno para a paz de espírito.
Conscientemente ou não, Pra Hoje seguiu o mesmo caminho de The Magnificent Regressive Band e Adeus Mundo Véio. Sobre o primeiro, vem a inspiração de um projeto colaborativo. Sobre o segundo, vem a experimentação sonora-sensorial. Essa união de influências fez com que Vasconcelos e von Seehausen criassem um produto, no mínimo, audacioso.
Audacioso nos elementos. Pois apenas com sintetizadores, a dupla conseguiu criar texturas e proporcionar viagens por ambientes amplos e exotéricos. Audacioso na adoção de instrumentos tidos como clássicos. A presença física da guitarra e do baixo engrandece os sabores e desenha cenários mais completos, palatáveis e táteis.
Pra Hoje é audacioso também nos gêneros musicais pelos quais transita. Afinal, além da própria música ambiente, o EP vai de flertes com a new wave, provocações com o chip tune até ao relacionamento platônico com o post-rock. Uma conjuntura rítmica realmente desafiadora, mas que surtiu em um resultado reflexivo-imaginário melódico.
Essa noção do imaginário, inclusive, está muito presente na arte de capa. Feita por Vinicius Massolar, ela traz, de maneira inteligentemente cartunizada, entretidas cenas desenhadas pelas texturas rítmico-melódicas do trabalho colaborativo entre Dramón e look ma! no wings.
Lançado em 03 de setembro de 2021 via Figa Music, Pra Hoje é um EP rodeado de texturas que oferecem portas para ambientes imaginários diversos. É a perfeita experimentação e degustação da consciência inconsciente.