Do Culto Ao Coma e A Banda Que Nunca Existiu - Quem É A Doença? Quem É A Cura?

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (2 Votos)

Depois da união bem sucedida que culminou com o single Todo Mundo Foi Embora?, os grupos paulistas A Banda Que Nunca Existiu e Do Culto Ao Coma se juntaram novamente, mas, agora, para a criação de um EP. Intitulado Quem É A Doença? Quem É A Cura?, o material teve início nos idos de 2022 e conta com composições da ABQNE e interpretações da DCAC.


É curioso e estranhamente contagiante. Seu sonar inicial traz uma interessante mistura de comicidade e imaturidade. É como se um aroma jovial, pré-púbere e ingênuo pairasse pelo ambiente e embriagasse o ouvinte com seu toque despreocupado, mas hilariante. Vislumbre é um prelúdio que consegue funcionar como uma espécie de trilha sonora teatral, um abre-alas fora do padrão, mas cuja estrutura sonora consegue capturar a atenção do ouvinte. Contudo, Vislumbre é também experimentação. Experimentação de sons, texturas e harmonias que a torna um produto instrumental enigmático, para dizer o mínimo. Com tais testes, a canção consegue ser cômica, infantil, doce, teatral e ligeiramente épica. Vislumbre é um verdadeiro guia que surge para acompanhar o ouvinte pelas aventuras através dos confins de Quem É A Doença? Quem É A Cura?.


Do alto de uma montanha banhada pela neve, uma casa simples, de madeira, chama a atenção. Enquanto a brisa vai se tornando gradativamente mais presente, os primeiros raios de luz solar vão sendo refletidos pelos lapidados cacos de vidro que preenchem o som dos ventos colocado de maneira estratégica na sacada. No meio do crepúsculo do amanhecer, esses brilhos incandescentes que transpiram desses pedaços vidreiros vai dando ao ambiente não apenas uma conotação mística, mas também levemente psicodélica e esotérica. Eis que um sonar ondulante e setentista vindo do teclado abraça o contexto físico-imagético e encaminha o ouvinte para uma agradável melodia que transpira a new wave. Macia em seu cerne sintético, a melodia acaba, por rápidos instantes, criando uma ligeira similaridade com aquela criada pelo MGMT em seu respectivo single Kids. Nesse ínterim, em meio a guitarra uivante de Leandro TG Mendes, Thiago Holzmann surge com seu timbre grave e doce sob uma interpretação lírica que beira o céltico e a angústia. Com direito a uivos de súplica agonizantes, Todo Mundo Foi Embora é como uma autoanálise social em que A Banda Que Nunca Existiu pensa sobre o amor puro e sincero, duelando com aquele superficial motivado meramente pela libido. É aqui que existe um pensar sobre como o desejo pode desvirtuar o indivíduo de sua índole, cegar o seu alterego e fazê-lo marionete do prazer absoluto. Todo Mundo Foi Embora é o profano, o depravado. O momento em que a sociedade opta conscientemente por se esquecer do senso da coletividade e se firmar no individualismo, no egoísmo e no personalismo.


Um sonar ácido e ondulante vem conquistando mais espaço junto do chimbal seco já desenhando o compasso rítmico de algo ainda obscuro. Num efeito fade in, os instrumentos vão surgindo aos poucos e entregando as suas individuais contribuições ao contexto sonoro. Assim que a guitarra entra, por exemplo, um suspense toma conta do cenário e o ouvinte se coloca em posição de alerta conforme os versos melódicos vão passando. Existe medo e um princípio de dissonância que causa um incômodo capaz de gelar a espinha e fazer o corpo produzir um suor frio, que passa a escorrer em gotas bojudas da testa para o seio da face. Explodindo em um cenário fantasmagórico com direito a uma conjuntura vocal sincrônica em versos vocálicos guturais, a canção dá destaque à sua base melódica que, com um baixo de linhas firmes, graves, estridentes e levemente bojudas trazidas por Guilherme Costa, amplifica a noção do temor e da insegurança. Com seu riff curto e pontual, ressaltando os golpes finais da bateria de Leonardo Nascimento nas frases finais de cada trecho sonoro, o baixo é também aquele elemento que consegue misturar as essências do doom metal e do stoner rock na receita rítmico-melódica da canção. Precisa e sombria de tal forma a rememorar a estética de O Gosto Do Azedo, single de Rita Lee, Ecos Do Destino, apesar de trazer um enredo que ensina de diversas maneiras o ouvinte tanto a compreender quanto a depositar a confiança no destino, sob a interpretação do Do Culto Ao Coma ela recebeu um viés denso e sombrio como se a imprevisibilidade fosse algo letal. Ainda assim, é inegável que uma das principais contribuições líricas de Ecos Do Destino é fazer do espectador um indivíduo menos rígido e confiante no acaso.


Áspera, azeda, melancólica. Metalizada, soturna e gutural, a paisagem sonora se apresenta como um cenário rochoso abrigado por um céu no auge da noite. Misturando elementos do doom metal com metal e pitadas de hard rock, o que sobressai da receita melódica inicial é o caráter sombrio. É interessante notar, aqui, como o teclado, em suas notas adocicadamente sintéticas e tremulantes, coopera para o desenvolvimento de silhuetas fantasmagóricas, mas em menor grau do ambiente proposto na faixa anterior. Entre melismas e falsetes bem executados por Holzmann, Ultimato Ou Morro é embebida em uma espécie de dramaticidade urbana, enquanto seu enredo lírico resgata, além do ultrarromantismo do século XIX, o romantismo alemão do século XVIII. Regada a exageros sentimentais, Ultimato Ou Morro é a descrição de um indivíduo perdido em sua excessiva carência de autoestima que vê, no afeto, a maneira de se sentir desejado e belo perante a sociedade. Uma obra em que o vazio interior afeta o equilíbrio emocional do outro, lhe retirando até mesmo o senso de liberdade e confiança.


Assim como Ecos Do Destino se utilizou do efeito fade in para dar corpo à sua introdução, a nova canção se utiliza desse artifício de maneira até mesmo mais visível e equilibrada. Oferecendo uma melodia agradável, fresca e adocicada, Destino Dos Ecos é mais um instrumental que faz do EP um produto versátil que chega ao seu fim declaradamente de maneira súbita, como o último suspiro, o último vislumbre consciente. O último som proferido em vida terrena.


Como um EP colaborativo, é preciso e necessário destacar que A Banda Que Nunca Existiu e o Do Culto Ao Coma de fato encontraram a intersecção ideal. Letra e melodia. Composição e interpretação. Dois tipos de liberdades criativas combinadas em um ambiente incerto que desencadeou em uma trilha certeira. Afinal, em Quem É A Doença? Quem É A Cura? a sensibilidade abraçou o drama e o propositado exagero sentimental se amplificou com densas e sombrias melodias.


É exatamente aí que mora o brilho do EP. É na combinação entre interpretação lírica e melódica. Afinal, quando se pega letras musicais escritas por outros, nem sempre a interpretação será a mesma daquela de quem a compôs. Sendo ou não sendo, a verdade é que o Do Culto Ao Coma transformou cenários brandos em perfeitas montanhas-russas emocionais. Lirismos que poderiam receber roupagens mais suaves, mas que acabaram agraciadas pelo grave e o soturno. Não é à toa que, em diversos momentos, o quesito lancinante se tornou algo profundamente tátil por parte do ouvinte.


Dialogando principalmente sobre o amor e as dores do coração, Quem É A Doença? Quem É A Cura? caminha brilhantemente por terrenos sensitivo-educacionais cuja intenção é simplesmente mostrar que é o destino que vai agir e moldar o amanhã da comunidade global. Não há como impedi-lo. Gostando ou não, quem decidirá o caminho respectivo de cada indivíduo e a imprevisibilidade.


Todo Mundo Foi Embora é talvez a faixa mais representativa do EP. É verdade que ela não fala de amor, nem de destino. Porém, ela fala da sociedade. De você e de mim. Ela fala da coletividade sem pudor, sem medo de mostrar que as pessoas estão caminhando, de maneira consciente, ao esquecimento do conceito de união. É como se ela fizesse o ouvinte se perguntar em quem pensou hoje e quem, pensou em você. São perguntas com respostas óbvias, pois na atualidade, tudo é via de mão única. Um trajeto que para, sempre, em si mesmo.


Para dar vasão a essas questões, apesar de curto, o EP possui vertentes líricas complexas. E Filipe Coelho foi quem capturou a alma da melodia. Da agonia, do desespero, do torpor, do sombrio que transborda das esquinas sonoras. A partir do profissional, as histórias escritas pel’A Banda Que Nunca Existiu ganharam trilhas sonoras que, desenhadas pelo Do Culto Ao Coma, foram presenteadas por um brilho extra que proporcionou ao ouvinte identificar sonoridades como o doom metal, o stoner rock e a new wave. 


Além disso, Coelho fez com que todos os instrumentos fossem cristalinamente audíveis, o que coopera para uma melhor degustação de todo o aparato extrassensorial que transpira e transborda de Quem É A Doença? Quem É A Cura?. Com ele, especialmente, o EP ganhou uma sonoridade equalizada e madura, uma qualidade que supera grande parte das produções sonoras nacionais.


Fechando o escopo melódico, vem a arte de capa. Assinada por Mendes, ela traz uma espécie de bola de cristal em evidência perdida em uma densa camada enegrecida. Com trechos luminosos em destaque que dão a noção de movimento, a obra traz sensos tanto de luto como de renascimento. Como a própria Ecos Do Destino propôs, a arte é a demonstração visual da fé no imprevisível, no incerto e no caráter místico que transpira do acaso.


Lançado em 20 de fevereiro de 2024 de maneira independente, Quem É A Doença? Quem É A Cura? é o misticismo em torno do amor, do destino e da sociedade. É um trabalho que, além de marcar a sintonia entre duas bandas do cenário indie brasileiro, mostra que a liberdade criativa transcende os limites da própria sensibilidade a ponto de se tornar algo tão profundo que chega a ser até mesmo tátil, palpável.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.