Zé Bigode Orquestra - Clube Da Fumaça

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 0.00 (0 Votos)

Segundo álbum de estúdio da banda, mas também o primeiro elaborado sob a estética letra e voz. Clube Da Fumaça dá seguimento à trilha deixada pelos singles, EPs e o disco de estúdio e segue o caminho da fusão de ritmos latino-africanos propagada pelo Zé Bigode Orquestra.


Em meio a um baixo de groove trotante, uma saudação. As boas-vindas formadas por um sorriso aberto, contagiante e puramente sincero exalado por Luana Karoo. Quando os sons eletrônicos se fundem com um beat compassado, Alfazema Y Guiné passa a ser guiada por um vocal de timbre agridoce. É Pedro Guinu trazendo leveza, suavidade e um swing adocicado para a melodia que é abraçada por um lirismo narrativo-introdutório de Clube Da Fumaça que é deixado como uma entrada para um prato principal que promete ser formado por um misto de sonoridade africana e latina em que o swing é o principal alicerce melódico. Seja bem-vindo ao Clube da Fumaça!


Uma mistura de samba com axé se mostra em ebulição a partir de um sonar alegremente tropical. Envolto em um suspense curioso formado pelo groove encorpado do baixo de Daniel Bento e dos dedilhares de afinação levemente azeda da guitarra de José Roberto, Maria Navalha assume um swing típico do axé que é regido, principalmente, pela desenvoltura macia e desprendida da bateria de Eric Brandão unida a elementos percussivos de sons ocos ouvidos na coxia melódica. Contando com um surpreendente solo de saxofone tenor promovido por Victor Lemos, Maria Navalha é a representatividade do universo sexual marginalizado. 


Enquanto um ambiente cujo aroma emana a versatilidade da improvisação, um veludo é ouvido na base sonora promovido pelo teclado de Pedro Petrutes que insere, na receita rítmica em processo de cocção, flertes com a estética chiptune. Apresentando um grande distanciamento com a energia alegre que ofereceu na canção anterior, o swing funkeado aqui produzido pelo baixo é de uma seriedade notável que permeia durante toda a linearidade melódica. Curiosamente, a união do saxofone barítono de Breno Hirata com o trompete de Thiago Garcia imputa uma roupagem soul que acentua o swing presente em Golpe No Vazio. Contudo, quando a canção assume uma ambiência embriagantemente psicodélica é quando o microfone passa a ser regido por uma voz de timbre afinado e grave. É Curumin enaltecendo a mensagem lírica de exaltação do respeito.


Apresentando uma levada afrobeat, a bateria é acompanhada por pontuais riffs do baixo que imputam certo grau de intensidade perante a malemolência da batida. Seguida por uma linearidade incessante das notas nauseantes do teclado e da inserção de um rompante do órgão Hammond, uma amplitude de sonoridades percussivas que vão desde o bumbo ao tamborim é instalada tanto por Victor Hugo quanto por Rodrigo Maré. Vai C Bom é uma canção de puro samba que, com pitadas de forró colocadas pelo baixo na base rítmica, propagandeia a festa da dança, da união dos corpos sintonizados pelo swing do tropicalismo da música brasileira. 


Com a maciez e o swing do reggae, Eles Querem O Poder tem seu início de maneira paulatina. Com os metais unidos ao teclado de notas pontuais, se cria uma ambiência propriamente jamaicana que contagia o ouvinte com seu aroma tropical e sensual. Na forma de um aviso, um alerta, a canção aborda de maneira enfática a questão da manipulação, do extremismo. Do autoritarismo. Ao mesmo tempo, é uma canção que fala, de maneira subliminar, sobre a censura e sobre a restrição da liberdade de expressão, ou seja, o poder da fala. “Não deixe que eles te levem”, clama o dueto formado por Luana e BNegão


Os saxofones criam uma melodia de marcha de saudação monárquica. Após uma explosão instrumental, a melodia flui para o reggae de maneira a dar prosseguimento à roupagem estruturada na canção anterior. Trazendo referência a nomes como SOJA e O Rappa, Assombrasil é até agora a canção de maior crítica política em todo Clube Da Fumaça, afinal, aqui existe grande ar de protesto contra os interesses do poder e o bipartidarismo que rege o cenário político brasileiro em uma clara ilustração da segregação social. Com participação indispensável da gaita na criação de um cenário de suspense e intenso protesto, Assombrasil ainda conta com Luciane Dom se revezando com Luana nos versos letrados para dar ainda mais peso no tom de protestação.


O reggae segue firme no contexto melódico. No entanto, o reggae aqui estruturado é de uma sonoridade mais intensa e ácida que beira até mesmo a estridência. Como uma peneira, a passagem para o primeiro verso separa todas as saliências e libera somente a maciez típica do gênero jamaicano de maneira a abraçar o ouvinte com sua maciez contagiante. Nem Tudo O Que Reluz é uma canção que, em poucos versos, consegue passar a mensagem de fazer prevalecer o senso de humildade e pureza de tal forma a se deixar desligar pelos instintos consumistas e personalistas que regem as sociedades capitalistas. 


A guitarra está distorcida. Seu riff é grave, mas opaco, como se estivesse à espreita esperando o momento certo de se revelar por inteiro. Misturando a maciez do reggae, a melodia que se constrói possui uma brisa curiosamente nordestina na forma como a sonoridade se comporta. Em tom de suspense, os instrumentos de sopro imputam uma pressão massiva sobre a estrutura rítmica em cujos batuques da conga entregam certa suavidade com sua ambiência tropical ouvida ao fundo como um realçador de sabor. Curiosamente, a forma como as notas do teclado soam imputa uma singela semelhança com o estilo de rock psicodélico executado por Caetano Veloso em Haiti, canção que compôs ao lado de Gilberto Gil. Tocaia é uma música regida puramente por uma  experimentação em que cada elemento percussivo impresso possibilita ao ouvinte a experiência do sentir diversas emoções e de se ver em ambientes desconexos entre si. Um instrumental de cunho sensorial.


Um swing truncado se pronuncia. Nele, o pandeiro é inserido numa tentativa de suavizar a densidade melódica promovida pelo grave sonar do baixo, que é amplificado pela sequência de um dueto estruturado entre os sopros do trompete e do saxofone barítono. O órgão hammond instalado de maneira a se posicionar como um personagem onipresente, faz sua valsa a partir de notas ácidas que denotam uma psicodelia inebriante sonorizada na coxia melódica. Falafel é um instrumental que carrega em sua identidade uma pressão intensa que se pronuncia na forma de um suspense intrigante. 


Um swing amaciado, melódico e sensual é evidenciado de maneira suave graças, principalmente, pela união do riff da guitarra com o adocicado veludo das notas do fender rhodes. Quando os metais enfim se pronunciam é o momento em que Mercúrio evidencia sua ambiência soul. Conforme a faixa vai entrando em uma ascendência sonora, as notas ácidas e guturais do hammond dão um ar quase gutural à melodia que é estruturada sob um alicerce de malemolência extrema que é abrilhantada por um solo de trompete que amplifica essa sensibilidade. Outra surpresa que Mercúrio traz ao ouvinte é um solo de flauta que soa demasiadamente tranquilizante apesar de captar toda a energia swingada emanada pela canção.


Apesar de vindo da cidade do Rio de Janeiro, o que o Zé Bigode Orquestra fez em Clube Da Fumaça foi entregar um produto com um aroma tradicionalmente nordestino. Claro que a malandragem fluminense também está presente de maneira intrínseca ao material melódico, mas o que salta aos ouvidos é um swing verdadeiramente macio e repleto de imersões na música afro-latina.


Não à toa que o afrobeat está presente em um mesmo trabalho dominado pela base rítmica do reggae e com pinceladas de forró, samba e axé. Contudo, o álbum alfineta bem a significância da palavra experimentação ao inserir também em seu escopo sonoro linhas de base no soul e mesmo na psicodelia.


Com músicas elaboradas com o mínimo de lirismo possível, como aconteceu principalmente no trio de faixas formado por Tocaia, Falafel e Mercúrio, Clube Da Fumaça lança luz, nos momentos em que seus versos são letrados de maneira repetitiva, às questões de cunho político-social vigentes em um Brasil da atualidade.


Por isso não é difícil notar críticas à censura, ao extremismo, ao autoritarismo, ao bipartidarismo e ao conflito de interesses. Contudo, há também faixas que versam sobre a marginalidade de algumas expressões da sexualidade, como é o caso de Maria Navalha. 


Nos aspectos técnicos, o exercício de Tércio Marques no quesito da mixagem fez surgir um disco sonoro no sentido mais estrito da palavra. Afinal, em Clube Da Fumaça é o som que faz o legado do Zé Bigode Orquestra, um octeto que preza pelas formas, pelo cenário e pelo arranjo. Fechando esse pacote está Guinu, que captou, em sua produção, a energia de protesto latino-africana e deu passe livre para a criação melódica das 10 faixas do disco.


Outro integrante, em sua respectiva função, capturou a energia e a mensagem desejada pelo octeto foi Daniel Vicent. Em sua arte de capa, ele retratou paisagens urbanas que traduzem todo o contexto de suavidade, malandragem e malemolência presentes na capital fluminense e que, como em processo de osmose, foram passados para as melodias de Clube Da Fumaça. Mesa de bar com copos de cerveja, um DJ ao lado. A alusão de estar observando o Rio de Janeiro do alto de uma favela que é colocada no cenário de uma forma quase imperceptível. As cores usadas, ainda, dão um ar amplamente mítico e astrológico. Contudo o que chama a atenção são os personagens centrais desse quadro profundamente carioca: dois amigos sentados no que parece ser o alto do morro conversando e com a vista inteira da cidade aos seus pés. A leveza acima de tudo.


Lançado em 11 de fevereiro de 2022 de maneira independente, Clube Da Fumaça é latino, é africano. É brasileiro. Com swing, sensualidade e maciez, seu experimentalismo melódico convida o ouvinte a transitar por cenários de uma sociedade brasileira condicionada a viver em um ambiente imprevisível.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.