UmQuarto - Apenas

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (6 Votos)

Imersão e isolamento. Parece curioso que essas duas situações tenham sido tomadas de maneira optativa em um momento em que são pré-requisito para o combate à Covid-19, doença que já acometeu mais de 1 milhão de pessoas no mundo. Mas foi a partir desses processos que o power trio forianopolitano UmQuarto construiu Apenas, seu álbum de estreia. 


Contagem regressiva. No um, uma atmosfera suave, atraente e calma começa a se estruturar por entre linhas de blues desenhadas pela bateria de Henrique Recidive na união com o baixo groovado e saliente de Mayer Soares. Entregando um tempero extra está as notas agridoces do piano, as quais amplificam a qualidade melódica e auxiliam na maciez da harmonia. Com direito a solos de guitarra cm influências nítidas de B. B. King, A Cor do Som ganha uma dramatização repentina durante a ponte e o solo principal de guitarra de Thiago Mordentte, momento em que ocorre uma reviravolta melódico-narrativa. É como se o céu ficasse mais escuro e o vento aumentasse sua pressão e volume. E a harmonia aqui fica por conta da guitarra que grita em melancólico tom enquanto o baixo segue seu caminho swingado na base rítmica. Um instrumental de peso que chega a arrepiar o ouvinte. Ousada forma encontrada pelo trio em iniciar Apenas.


Distorção em tons graves e lineares impulsionam a curta introdução de Sem Desprezo, faixa que logo recebe o aguardado ingrediente vocal que faltava para completar a harmonia.  De timbre mediano com notas rasgadas, Soares insere um lirismo que narra a história de um personagem em busca da autoconfiança ao mesmo tempo em que critica o comportamento personalista latente em grande parte da sociedade. Como cereja do bolo, Sem Desprezo ainda conta com trechos em que a melodia possui uma áspera sensualidade.


O efeito fade in deixa o ouvinte confuso por, nos primeiros segundos não ouvir sequer um som. Porém, algo surge crescente até a explosão introdutória da bateria, que enfim apresenta ao espectador um ritmo blues com imersão na psicodelia. E esse aspecto é devido especialmente pela inclusão das notas entorpecidamente catedrais do órgão de Léo Costa. Com relação ao canto, em Acordar Soares se apresenta com uma cadência vocal semelhante àquela feita por Ozzy Osbourne em seu single Road To Nowhere. É essa mesma cadência que apresenta ao ouvinte uma letra sobre superação e esperança. Como o próprio cantor diz: “o Sol se foi. Se apagou, mas vai voltar!”.


Os sons ouvidos se parecem com sinos, mas ainda ficam indefinidos. Ainda assim, o que esses sonares constroem é um ambiente sinistro e tenebroso, cujo solo o espectador teme desbravar. Quando a guitarra invade a cena com dedilhares igualmente sinistros e o baixo se apresenta como um vulto em notas precisas e repentinas, o ar soturno se amplifica em O Mar de Madalena. É com o groove da bateria, sutilmente acelerado, que uma narrativa épica começa a tomar a atenção do ouvinte. A era naval e o enaltecer de uma figura marítima onipresente tal como foi com Calypso em Piratas do Caribe e o Baú da Morte assumem a base lírica. Sem menos esperar também, o espectador é surpreendido com uma quebra narrativa ao presenciar uma repentina explosão melódico-instrumental alternativa com lampejos eletrônicos. 


Assim como aconteceu com A Cor do Som, Remendo Blues é uma música que, como seu próprio nome sugere, possui melodia calcada no blues. Lenta e macia, sua estrutura tem ares de morfina que estranhamente encanta o ouvinte, que se vê hipnotizado pela sonoridade linear em união ao vocal sutilmente ácido de Soares. Trazendo um lirismo que metaforiza o blues como um artifício de extravasar o sofrimento, a canção ainda traz uma guitarra de riff denotativamente aveludado que, aqui, ilustra influências de Carlos Santana e Joe Bonamassa.


É como presenciar a formação de pequenas ondas em um mar calmo perante uma tarde nublada. É essa sensação melancólica que é oferecida pelo riff de guitarra que serve de introdução de Sua Presença, uma música puramente romântica. Enquanto o lirismo caminha por uma narração que conta a história do início de um relacionamento, a base rítmica desenha uma estrutura que flerta timidamente com o baião. Isso faz com que a harmonia ganhe uma amplitude por conta do conceito por trás do som nela presente.


Como uma vinheta musical alternativa, Algo a Dizer tem seu despertar. Na métrica órgão-voz, a música vai se desenvolvendo de maneira minimalista e com lirismo recheado de rimas perfeitas. Na companhia de uma melodia pop punk, os assuntos abordados na letra se evidenciam como sendo a revelação de um desejo-proteção contraditório. Afinal, ao mesmo tempo que o eu-lírico não quer ser estudado, sua vontade é conhecer a verdadeira identidade das pessoas, aquilo que está por trás da carcaça burocrático-social. No lado melódico, ainda, existe um flerte com o rockabilly muito perceptível na base rítmica do solo, fator que lança um ar sessentista à Algo a Dizer.


Groove no sentido mais estrito da palavra é o que melhor define os primeiros instantes de Um Estranho. Afinal, mesmo que com uma frase linear, a construção rítmica exercida entre baixo e guitarra atinge seu ápice de entrosamento. A entrada da guitarra só ajuda para que a música assuma ares de rock alternativo, o que, a partir de uma sonoridade em tom baixo, cria uma ambiência reflexiva e consciente. E é essa consciência que o eu-lírico da canção busca em meio a uma descrição do sentimento sedutor da depressão e do silêncio que leva a incontroláveis pensamentos desarmônicos. A situação descrita em Um Estranho é nada mais que o desespero de se desprender das amarras da negatividade. 


É uma mistura de ácido, new wave e synth-pop. É a recriação dos anos 70 com toques de modernidade. O beat cativante de Mordentti em união com o órgão constrói uma atmosfera embriagante tal como as músicas do The Smiths. Porém, com o passar do tempo esse mesmo órgão vai assumindo tons cada vez mais ásperos e ácidos que remetem ao rock psicodélico ao estilo Deep Purple. Essa atmosfera ritmicamente mista serve de escopo para um devaneio lírico que, por meio de elucubrações metafóricas, remetem ao mandamento bíblico amai ao próximo como a ti mesmo. Discussões Com Deus é nada mais do que o inconsciente buscando a evolução.


A cadência lírica que puxa o despertar de Atemporal possui, curiosamente, a mesma métrica da melodia reflexivo-introdutória feita por Jacob Kiszka, Charlie Bisharat, Alma Fernandez e Songa Lee, em Broken Bells, single do Greta Van Fleet. Na mesma pegada reflexiva, a presente faixa se apresenta com uma primeira estrofe construída por meio de uma estrutura minimalista calcada na união entre voz e piano. Porém, um punch implode na ponte entre pré-refrão e refrão quando a bateria explode e a guitarra surge em graves distorções. Mesmo assim, a canção retoma uma atmosfera mista de psicodelia e rock progressivo. Curiosamente, a parte mais explosiva da canção tanto em melodia quanto em vocal está na ponte entre refrão e o instrumental. Atemporal é uma canção de definitivos ares pensantes com um lirismo de esperança por dias melhores e que incentiva o ouvinte a adquirir energia, brio e vontade de fazer do novo amanhecer mais uma chance de mudar o destino, de proporcionar um lugar de liberdade e aceitação.


O nome do álbum é singelo e simplista, mas é tudo o que sua estrutura não é. O trabalho de estreia do UmQuarto não é apenas regado em lirismos reflexivos. Não é apenas estimulante. Não é apenas rico em melodias e belas harmonias. Não é apenas a reciclagem de gêneros setentistas. Não é apenas autônomo ao fundir influências sonoras. Apenas não é apenas isso, mas sim tudo isso.


Trazendo uma mistura de rock progressivo, rock psicodélico, hard rock, funk, rock alternativo, new wave e synth-pop, o disco supre a necessidade do espectador no que tange a experimentação áudio-sensorial. Ele supre a carência de fusões e supre a carência da audácia e do arriscado.


Com auxílio de músicos como Chico Badalotti e Lari Machado, muito se vê The Smiths, Deep Purple, B. B. King, Carlos Santana, Joe Bonamassa, Ozzy Osbourne, Greta Van Fleet e até mesmo Pink Floyd na estrutura melódica de Apenas. Sem eles, grande parte do punch e da harmonia certamente estaria comprometida.


Essa captação de admirações estilísticas foi muito bem observada, respeitada e trabalhada tanto pela mixagem de Lucas de Sá quanto pela produção de Felippe Pompeo. Esses nomes deixaram que Apenas soasse soturno e ácido de maneira que o vocal de Soares se pronunciasse tão anestesiado quanto o de Roger Waters nas canções do Pink Floyd.


Por conta desses elementos é que a melodia de Apenas assume contornos reflexivos, algo que, inclusive, é comunicado na arte de capa. Feita por Manu d’Eça, ela traz um amplificador posicionado de frente para uma janela aberta. O ambiente completamente escuro e a paisagem como único ponto colorido denotam a possibilidade e a esperança de, parafraseando Cazuza, ‘pro dia nascer feliz’.


Lançado em 15 de setembro de 2021 de maneira independente, Apenas é um disco soturno, mas com melodias anestesiadamente ásperas e ácidas como a psicodelia sugere. Ainda assim, é surpreendente o volume de texturas e sentimentos propostos pelas letras de grande peso reflexivo.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.