NOTA DO CRÍTICO
Apesar de ter sido lançado apenas no início do terceiro trimestre deste ano, o material já vinha sendo revelado desde o ano passado com a divulgação de três de seus singles. Agora, o cantor, músico e compositor baiano Uiu Lopes apresenta formalmente Por Fora, Por Dentro, seu disco de estreia.
A paisagem é fresca, mas embebida em uma curiosa melancolia que torna o horizonte límpido em sua beleza branda um convite para o viajar pelo inconsciente. Enquanto a brisa faz o cabelo esvoaçar e o vaivém da maré dá uma sonoridade natural ao silêncio, existe esse senso de introspecção que faz com que o ouvinte seja instintivamente convidado a mergulhar em si mesmo. É assim que Vento Vem Tu se apresenta ao ouvinte, com uma cenografia reflexiva e uma melodia controlada em amplitude, mas grande em harmonia e textura. Uma equação que, apesar da sonoridade intimista, traz largos saltos sonoro-sensitivos com a união do violão de notas graves de Uiu Lopes, o baixo de caminhar delicado, mas bem presente de Thiago Barros Leal e o batuque grave, orquestral, mas delicado do tímpano de Pedro Lacerda. Curioso é notar que, nessa conjuntura, é o sobrevoo aveludado do sintetizador de León Perez e Fernando Rischbieter que dá a Vento Vem Tu um caráter transcendental. De narrativa macia vinda através de uma voz sussurrada e levemente grave de Lopes, a canção possui uma harmonia lírico-melódica reconfortante fornecida por meio da companhia da voz aguda de Lou Alves no microfone. Ganhando dramaticidade a partir de sua segunda metade, momento em que a bateria entra desenhando uma cadência mais racional e precisa, e a guitarra de Pedro Bienemann insere uma textura agradavelmente ácida ao contexto, Vento Vem Tu é uma canção que dialoga sobre a convivência com as memórias de um passado agradável. É um vaivém de passado, presente e futuro repleto de incertezas e receios que permeiam o relacionamento de um casal cujo convívio se desgastou, mas cujo reencontro é trazido por um esperançoso amanhecer.
Sincopada, levemente ácida e com um ritmo brando, mas já contagiante em seu fundo entorpecido pelo sintetizador, Lulu traz uma roupagem oitentista, macia e sensualmente reconfortante. Com samples de falatórios que recriam a cenografia de um local de grande movimento, a faixa consegue convidar o ouvinte a enxergar, com sua própria montagem, o ambiente onde se passa a canção. Lulu é um enredo romântico do encontro de duas pessoas que se encontraram e, sem demora, criaram uma sinergia emocional profunda. É por isso que Lulu vem recheada de saudade, daquele suor do nervosismo de ver a pessoa amada se aproximar, do coração acelerando ao encontro dos lábios. Do sentimentalismo engessado se tornando novamente aberto à experiência do amar.
Macia e swingada a partir da fusão reconfortante e contagiante da guitarra, baixo e moog, a canção apresenta em sua receita inicial uma harmônica mistura entre o MPB já padrão de Por Fora, Por Dentro e o soul. Trazendo também iminentes lampejos de R&B, Desejos De Um Leão é um produto melodicamente, assim como Vento Vem Tu, repleto de texturas, mas cujo ritmo e seu caráter convidativamente amaciado vem do caxixi e dos pontuais tilintares do pandeiro de Igor Caracas e Danilo Moura. Com direito a pinceladas de uma maciez aveludada oferecida pelo rhodes de César Lacerda, Desejos De Um Leão, com sua narrativa de um indivíduo que aprende a viver na censura perfeitamente metaforizado na figura de um camaleão, tem rompantes harmônicos vindos do coro regido entre Lacerda e Rischbieter.
De baixo denotativamente groovado no ritmo do funk, a canção amanhece embebida no sonar nauseante e mareante dos sintetizadores. Horizonte, sem demora, mostra uma inusitada mistura entre o funk e o synth-pop enquanto o devaneio lírico se perde entre falsetes e prolongamentos vocálicos que sugerem uma viagem em torpor. Nesse ínterim, Horizonte vem com a necessidade de liberdade para fazer acontecer os sonhos. Uma faixa que dialoga sobre persistência ao mesmo tempo em que traz um personagem perdido em sua própria insegurança, mas que almeja conhecer um lugar onde não existam julgamentos por ser diferente das massas.
Macia em seu minimalismo estético introdutório, Retratos De Um Sonho, em sua curta duração, tem lampejos dramáticos que fluem para uma singela densidade adocicada. É ela que dá corpo à canção e embasamento para um enredo que, de maneira gentil e educada, dialoga sobre um indivíduo em contato com sua própria essência. Rastros De Um Sonho é quase como um interlúdio que funciona como o vislumbrar nu e cru de quem se é por meio das cores de seus próprios sentimentos.
É o pulso mostrando sua vivacidade em processo de despertar. Um abrir de olhos ainda mareado pelo sono profundo, mas que já se vê em meio a uma espécie de folk embriagado pela ausência de noção entre o inconsciente e a realidade. Junto ao groove simples e espaçado da bateria, a guitarra introduz uma textura delicadamente ácida em um enredo que se divide entre um violão de delicadeza entorpecida, um baixo sonhador e uma interpretação lírica que sugere expectativas perante o amanhã. Acho A Vida Um Enorme Carrossel é uma canção que apresenta a vida como uma rotina repetitiva de erros e acertos, uma arte cuja continuação é regida pelo vício na perpetuação das mesmas atitudes. Ainda assim, a canção traz, em seu tom melancolicamente entorpecido, a esperança da mudança a ser executada no tempo que resta de vivência terrena.
Swingada, levemente groovada e em tom quase cômico na forma como começa sua narrativa verbo-melódica, Intacto traz uma sintonia instrumental introdutória contida, mas capaz de promover uma estética contagiante. Crescendo timidamente em elementos sonoros, a faixa é marcada pela sua maciez mista de R&B e soul, a faixa tem um sabor embriagante graças à forma como a guitarra se movimenta. No entanto, o que é surpreendente mora no refrão. Com a participação de um misto de estridência e sensualidade promovida pela sincronia do trompete de Larissa Alves com o saxofone de Melifona, a melodia que dali é exalada consegue recriar, de maneira curiosa, o auge harmônico presente na ponte de Stairway To Heaven, single do Led Zeppelin. Com essa receita, Intacto é onde, mais uma vez, Lopes vive apenas com a sua pessoa, com a descoberta, a compreensão e a convivência intensa com sua própria essência livre, mas enclausurada em uma imagética redoma de silêncio, introspecção e solidão.
É uma boa mistura entre a new wave e o soft rock. Com leveza e swing, o amanhecer vem vagaroso, como se estivesse reconhecendo o ambiente geral e cumprimentando educadamente os presentes. Enquanto a guitarra surge ligeiramente trotante, é a acidez do piano elétrico que dá a textura máxima da canção, com sua estridência adocicada. Harmonicamente contagiante, Dançando No Escuro tem uma dupla narrativa a partir do momento em que o timbre agudo, quase sussurrado, doce e sensual de YMA entra em cena. A faixa traz, então, um enredo intenso, sensual, quente, e gentilmente lascivo que a torna um grande produto de Por Fora, Por Dentro. Uma faxada para tratar de liberdade associada ao desejo máximo do reencontro.
É curioso como a psiquê e o físico conseguem ser a personificação de duas pessoas completamente diferentes, mas em um mesmo corpo. Por Fora, Por Dentro é justamente essa dualidade entre o externo e o interno. A aparência física e a psicológica se convergindo entre faíscas da não sincronia.
Enquanto existem enredos romanceados, macios, suaves e adocicados, o álbum também apresenta narrativas densamente introspectivas. Estas, por sua vez, narram expressamente sobre a solidão, a depressão, a autopercepção e, principalmente, o grito em prol de uma liberdade ardente.
Misturando um senso desmedido de esperança por um amanhã completamente novo, repaginado e livre, Por Fora, Por Dentro tem, como dever, estudar o psicológico do indivíduo naqueles momentos em que existe uma espécie de censura aos seus próprios instintos. Autoimposta ou não, é essa barreira que acaba funcionando como um empurrão para a transformação do indivíduo, sua adequação ao novo contexto.
Essa mescla de desejos e autoconhecimento, uma divisão feita organicamente entre os 10 enredos do álbum, foi capaz principalmente pela sensibilidade sincrônica da produção de Rischbieter. Além de estar inserido no campo melódico, o profissional ainda soube fazer com que as dualidades existentes na psiquê de Uiu Lopes formassem um único enredo que ajuda a dissecar o emocional de um indivíduo em constante embate entre o desejo e a censura externamente imposta.
Eis que chega a vez do som. Para dar embasamento e transmitir com mais afinco as emoções díspares intencionadas por Lopes, Por Fora, Por Dentro recebeu a mixagem conjunta de Alves e Rischbieter, outro integrante também presente na linha de frente da criação sonora do álbum. Por meio dele, o material transpirou uma MPB de nova silhueta. Mais sensual, mas ao mesmo tempo mais introspectiva enquanto transitou entre os campos do soft rock, da new wave, do synth-pop, do soul, do folk, do R&B e do funk.
Encerrando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por YMA, ela traz o busto de Uiu Lopes aparentemente apoiado em uma superfície espelhada a ponto de oferecer um efeito duplicado de sua imagem. O feito acabou propositadamente representando de forma clara, honesta e direta a intenção do álbum em mostrar os dois lados de um indivíduo.
Lançado em 14 de julho de 2023 via Matraca Records, Por Fora, Por Dentro é a dissecação de um indivíduo ambivalente entre seus desejos de pura liberdade e interação e uma censura desmedida que o convida a um profundo processo de autoconhecimento. É um produto com gosto doce, fresco, melancólico e por vezes até romântico que discute a transformação do indivíduo para se adequar ao contexto a que está inserido.