NOTA DO CRÍTICO
Pouco mais de dois anos após anúncio de seu segundo álbum de estúdio, o quarteto carioca DFront SA enfim declara a continuação de sua atividade de produção iniciada há 13 anos. Intitulado Forte Teor Da Dor, o material é o sucessor de Ceifado e é o terceiro disco do grupo.
Existe o caos, um despertar de loucura, um súbito de esquizofrenia. Entre ecos dissonantes e de cunho levemente trevoso, a guitarra de Nathan Klak vai alçando voos baixos, com um olhar cínico e, ainda que contido, agressivamente zombeteiro. Seu movimento é como o bebericar de um elixir alucinógeno que tira os sentidos e deixa a mente vazia, pronta para ser manipulada por um obsessor. Como um predador dando seu bote em uma presa desprevenida, Sílvio Guerra surge do breu com um urro rápido, gutural e rasgado que rompe com qualquer sinal de anestesiação. Ao seu lado, Magno Nascimento faz com que os tilintares da cúpula do prato de condução sejam, além do guia rítmico, o som linear e frequente da hipnose. Misturando o soturno com o hardcore e o death metal, Cura é um diálogo narrado entre vozes de tom gutural e agressivamente ríspido sobre um personagem desolado e desesperançoso em relação à vida, mas de veia humilde e sentimental que se usa de um senso de imponência e empoderamento para ofuscar seu cerne sensível. Ainda assim, é um indivíduo de postura focada e certo de seus próprios ideais. Cura, em sua brutalidade rasgada, é simplesmente uma lição de autoconfiança e autoconhecimento que estimula, mais do que a resistência ao sofrimento, mas também a resistência em relação à intolerância.
Com uma brecha para uma rápida tomada de fôlego, a canção se inicia com um punch rápido, trotante em sua base excessivamente cadenciada por bumbos duplos e com direito a uma guitarra melódica, mas desnorteada. Se dividindo entre o gutural e o agudo rasgado e agressivo, Guerra surge com um pedido, uma súplica por ajuda. Não à toa que Agonia é assim intitulada por conta da instabilidade e doença emocional sofridas pelo personagem, um indivíduo que suplica por socorro, por um braço forte que o puxe de volta à superfície e o salve do limbo da depressão. Afinal, sua tristeza é tão intensa e a dor é tão lancinante que é como se fosse um morto-vivo vagando sem direção, vivacidade ou brilho e preso em seu próprio torpor.
Depois de um groove rápido e seguido por uma guitarra de riff distorcido em seu leve azedume, a bateria entra para quebrar qualquer princípio de ordem ou sincronia com o sua levada acelerada, desesperada e propositadamente dissonante. Entre o hardcore, princípios de metal e o death metal, Severo é uma faixa de sonoridade atordoante que casa bem com seu enredo, uma narrativa que aborda um senso de culpa e autopunição inquietante que faz do personagem um indivíduo sofrido pelo próprio julgamento. Severo é como se os questionamentos dos porquês não tivessem respostas verbalizadas, mas um inconsciente que colocava para si toda a responsabilidade da desordem humanitária.
Ela vem tímida, introspectiva e até mesmo cabisbaixa. De melodia sombria, a guitarra que serve como apresentadora da nova faixa engana o ouvinte pelo seu teor curiosamente amaciado e melancólico. Afinal, segundos depois o que era aparentemente calmo volta a virar caos, brutal e denso a partir de uma sonoridade grave que chega a flertar com o metalcore. Lágrimas é um produto que, experimentando também nuances de metal alternativo, segue sua base death enquanto dialoga sobre a vontade e a necessidade de fugir da realidade. Porém, é nessa fome de anulação que o personagem se perde em devaneios que consomem qualquer nuance de positividade, o tornando um indivíduo sem cor tal como aconteceu com aquele descrito em Agonia.
Bruta, grave e intensa, a introdução vem com uma potência estranhamente melódica cujo ritmo desenhado pela bateria traz contornos notáveis de nu metal. Entre guturais densos e frases sonoras agressivamente trotantes, azedas e caóticas, Um Segundo é a primeira faixa de Forte Teor Da Dor que o ouvinte consegue, ainda com esforço, ouvir as linhas do baixo de Gláucio Magalhães entregando corpo ao caos inebriante. Regida por uma interpretação lírica atordoante e angustiante de forma a flertar com a conjuntura de Agonia, Um Segundo é onde o personagem se vê na iminência da reconexão consigo mesmo. Da necessidade do extravasar desesperado e angustiante na busca de um reequilíbrio emocional. Um Segundo, com sua sujeira encardida, é como um perfeito relato autobiográfico da rotina de trabalho de Guerra. A convivência diária com o caos, com a intensa interação com a vida que chega, mas que não vai embora. É a necessidade urgente de desconexão da realidade para uma equalização energética.
É como observar um incêndio ao longe. Conforme as rajadas de vento aumentam, mais rápido o fogaréu se movimenta. Quando as chamas já se encontram próximas a ponto de os olhos as refletirem com nitidez, um ritmo trotante e compassivo oferece um tom grave tão intenso que chega a introduzir o doom metal em sua receita melódica. Punição, apesar de seu título, não apresenta uma melodia tão agressiva como aquela de Agonia, confere ao seu escopo narrativo um temor enigmático que se confunde entre sua base groove metal. Ainda assim, existe azedume, existe a agudez ríspida vocal, mas de uma maneira que curiosamente torna Punição a primeira faixa de Forte Teor Da Dor a se enquadrar nas métricas radiofônicas. O interessante, nesse ponto, seria fazer as massas entenderem que o personagem se encontra mergulhando em uma profunda crise de consciência. Assim como em Severo, o indivíduo aqui descrito é a representação de Guerra e sua autopunição por não ser capaz de cumprir com suas palavras de que tudo dará certo no final. Afinal, nem mesmo aqueles que estão na linha de frente de uma crise humanitária têm o controle do futuro e muito menos do destino. Ainda assim, Punição é autoexplicativa ao fornecer um ser humano decepcionado consigo mesmo e questionando, entre surtos de melancolia, suas habilidades.de manter a vida sempre em andamento.
Em meio a uma brutalidade latente e controladamente explosiva, a canção já começa com o questionamento inquietante e intrigante “quem você vai culpar quando todo o resto falhar?”. De guitarra ríspida e uma base groovada hardcore, Rastro De Culpa traz um torpor atordoante em meio à sua melodia cambaleante e de princípios raivosamente absurdados. É assim que o DFront SA escolheu propor um pensar sobre a responsabilidade de estar afrente da guerra pela vida. Tal como aconteceu em Severo e Punição, o personagem aqui descrito é mais uma vez a representação de Guerra. Porém, em Rastro De Culpa ele lida com a raiva e o ódio das pessoas que a ele depositaram a confiança na restauração da saúde de pessoas queridas. De forma ainda mais nítida que em Rastro De Culpa, aqui é mais fácil identificar a realidade de que não há alguém que tenha controle sobre a vida ou a morte. Ainda assim, quando mesmo as maiores habilidades são ineficazes de reestabilizar um indivíduo enfermo, aquele que lutou para o sucesso da operação sempre será alvo de críticas, esbravejamentos e impulsos de ódio. Isso fica tão claro em Rastro De Culpa que o personagem até mesmo verbaliza, por meio de um azedume denso, a repetição do questionamento “quem você vai culpar quando todo o resto falhar?” e o novo “quem você vai culpar quando sua doença irradiar?”.
O som do uivo do vento junto a tilintares enigmáticos conferem uma noção transcendental e hipnótica que captura o inconsciente do ouvinte, que logo entra em um ambiente trevoso e inquietante através da bruta e densa melodia introdutória. Indo do descontrolado ao cinismo zombeteiro semelhante àquele de Cura, Discórdia é a raiva, é o ódio, é a desarmonia. É o caos declarado. É a ausência de brandura. É uma faixa de base intensamente regida pelo uso incessante de bumbos duplos que criam uma paisagem trevosa pela sua rispidez. Discórdia fala, em tom de rancor, sobre a relação do homem moderno com o meio ambiente. Nesse ponto, a faixa surpreende por trazer um DFront SA explorando outro lado de seu senso humanitário, pois aqui o grupo discute o descuido, o desleixo e a desvalorização dos recursos naturais. Porém, nesse ínterim, o grupo reflete sobre os impactos desse comportamento, um futuro certo de sucesso incerto. Discutindo ainda a falta de punição para aqueles que agem de maneira consciente denegrindo o ambiente, Discórdia enfatiza que essa veia comportamental é simplesmente endereçada à ignorância do homem, que fará com que toda a humanidade pague o preço pelo crime velado de matar a vida irracional.
Em efeito de fade in, o groove da bateria vai intensificando sua presença e seu volume. Com uma sobreposição de riffs de guitarra que se completa entre o desespero e o torpor abruptamente medicado, a canção se inicia com uma melodia áspera, mas cuja estética é surpreendentemente contagiante. Fim Do Mundo, mesmo assim, consegue ter uma veia bruta e intensa enquanto apresenta ao ouvinte um dos enredos mais sensíveis de Forte Teor Da Dor por tratar, simplesmente, do desrespeito do ser humano com a vida. Flertando com a temática de Discórdia, a presente faixa discute o peso das atitudes do homem no contexto social e, principalmente, ambiental. De teor pessimista, a música traz um cenário apocalíptico em que cada ação do ser humano levou o planeta a um colapso que, para o quarteto, cada indivíduo tem sua parcela de culpa.
As paredes de pedra tremulam e deixam sua poeira cair enquanto um sonar agudo de teor quase fantasmagórico irrompe o silêncio trevoso e incômodo. Explosiva, agressiva, inquietante, ríspida e bruta, a introdução já traz um caos embebido em absurdez e incredulidade em vista do grande montante de mortes observado durante a pandemia. Um cenário caótico que, até mesmo para os profissionais da saúde de emocional mais resistente, fazia perder o ar, ter acesso de náuseas e fraqueza corporal. Através de seu groove metal denso e intenso, Pandora é curiosamente embebida em melancolia enquanto expõe, assim como as faixas Severo, Um Segundo e Rastro De Culpa, a relação do homem com a morte sob o ponto de vista de alguém atuante no front de uma crise pandêmica personificando a figura de Guerra. Ainda assim, Pandora traz, em meio ao seu caos pessimista e melancólico, uma singela fresta de luz simbolizando a esperança invadindo, tímida, as trevas dominadas pelo ar de enxofre que aprisiona pessoas frágeis física e psiquicamente. Não à toa que, entre seus versos de impacto, Pandora verbaliza o sofrimento de viver entre mortes súbitas de uma pandemia repentina em trechos como “o ar virou um veneno e me falta o oxigênio”, “os corpos empilhados me mostram o quão frágil nós somos” e “eu preciso reaprender a respirar”.
Bruto, caótico. Ardentemente perigoso e sanguinariamente agressivo, Forte Teor Da Dor é um material em que o DFront SA se esconde em sua própria autodefesa viril para não transparecer a tristeza, o desolamento, a absurdez e o inconformismo em relação a cenários de intensa relação com a morte.
Como um momento da vida sem escolha, o óbito é onde a tristeza, a culpa, a decepção e a dor se comunicam em uma via de mão única. Essas são justamente algumas das emoções exploradas com visceralidade pelo DFront SA entre os 10 capítulos de seu novo álbum. Atrás de cada rugido e cada grito lancinante espalhados pelo disco existe um indivíduo atordoado pelo caos e necessitado do poder reconfortante de um abraço acalentador.
É nesse instante que o grupo mostra seu sentimentalismo, um feito que foi igual e positivamente explorado pelo Warshipper em Essential Morphine. Nesse quesito, então, o DFront SA mostra sua veia humana e empática em relação à vida e à vida do outro. Um altruísmo admirável e motivador pela sua força pacificante.
Dialogando frequentemente sobre a relação com a morte, as sensações de culpa, desolamento, desproteção e fragilidade, bem como discutindo a insensatez, a hipocrisia humana e a limitação de consciência de mundo, Forte Teor Da Dor apenas deseja que o mundo seja um lugar melhor para se viver. E o mais interessante: tudo em português.
Ainda assim, o que dele sobressai é o bruto, o visceral, a intensidade, a sujeira. E para fazer com que isso exale na medida certa, o quarteto recrutou Klak também para a função de engenheiro de mixagem de Forte Teor Da Dor. Sob suas mãos, o ouvinte consegue degustar o death metal, o hardcore, o metal, o metalcore, o metal alternativo e até mesmo o doom metal, o nu metal e o groove metal.
A única coisa que de fato deixa a desejar é que em nenhum momento o baixo é ouvido com nitidez. O ouvinte precisa prestar muita atenção nas melodias para conseguir identificar sua participação, o que nem sempre acontece com êxito. Até mesmo na faixa Um Segundo, onde ele é mais presente, o espectador só o nota através do encorpamento melódico que a música tem. Nesse quesito, então, a brutalidade foi tão intensa que é como se ela engolisse qualquer tentativa de destaque do instrumento.
Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Rômulo Dias, ela é autoexplicativa, visceral e caótica. Trazendo um cenário pós-apocalíptico, um braço rompe os escombros segurando um coração. Essa é a perfeita metáfora para a salvação do senso de humanidade, empatia, assertividade e, principalmente, humanidade. Qualidades densamente idealizadas nos diálogos do álbum e que, felizmente, foram muito bem sintetizadas nessa obra de caráter quase monocromático que se assemelha singelamente aos traços do desenho de Márcio Aranha usado na capa de World Decay 19, álbum do Sacrifix. Não à toa que os dois álbuns abordam o mesmo contexto caótico: a pandemia.
Lançado em 08 de julho de 2023 via Voice Music Records, Forte Teor Da Dor é, sem dúvida, um disco bruto, áspero, nauseante, intenso, sujo e indigesto. Mas ele é uma espécie de monólogo de um indivíduo necessitado do grito, do desabafo e da desconexão com o mundo caos. Os brutos também amam e o DFront SA, mesmo escoltado por uma vasta virilidade, não esconde sua sensibilidade e sua afeição em relação ao próximo.