Uhrutau - Memory

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Apesar de ter início em 2017, o power trio Uhrutau foi ter o pontapé oficial em sua carreira apenas cinco anos depois, em 2022. Em maio deste ano, nasceu Memory, o primeiro registro de uma banda que se comunica como defensores do legado de grandes nomes do metal mundial.


A guitarra áspera e lenta tem sua cadência amaciadamente embriagante rompida por uma sequência de golpes sincopados entre bumbo, caixa e cúpula do prato de condução. Entre o metal e o doom, a estrutura rítmica criada entre Maurício Bortoloto e Dhieego Andrade, respectivamente, passa a ser acompanhada por frases ásperas e sujas vindas do baixo de Pedro Ghoneim que dão toques de azedume aos feixes melódicos introdutórios. Interessante notar que, no desenrolar do instrumental inicial, um misto de sensações que vão da nostalgia a um sentimento genuinamente emocional é oferecido ao ouvinte, que logo percebe a presença de um quarto elemento. Uma voz aguda, afinada e melódica se posiciona no terreno rítmico. É Bortoloto trazendo, na faixa-título, um enredo de aroma místico e floral que dialoga sobre legado e  a relação com o tempo, que também se encontra no cerne do desenvolvimento desse monólogo que tenta encontrar a razão para a existência. Entre raspas progressivas, a faixa-título é, inclusive, uma canção que questiona a sanidade do personagem central.


A guitarra, tal como um relâmpago em processo de despertar, cambaleia rapidamente pela atmosfera até ser respaldada por um instrumental de uníssono caos e uma estranha desordem sincronizada. Entre gritos cínicos e provocadores da guitarra, um urro surge com força das profundezas melódicas como um desabafo agoniante. Flertando com a sonoridade propositadamente suja e caótica do Soundgarden, Carnival consegue ter, curiosamente, mais evidências progressivas em relação à faixa-título que, com auxílio do stoner rock, dialoga de maneira agressiva sobre casamento. Evidenciando a essência masculina como algo maléfico que explode quando a relação entra em declínio, a canção ainda traz a culpa como algo recíproco no momento da desarmonia do romance. Carnival é o relato de um relacionamento que cheira a não reciprocidade e, portanto, a unilateralidade da entrega.


O tempo lento da guitarra em tons graves traz a perfeita mescla do doom com o heavy metal na mesma fórmula criada e disseminada por Tony Iommy em suas icônicas frases afrente das guitarras do Black Sabbath. Soturna, melancólica e embriagante em sua maciez sombria, Alcohol é a representação do sentimento de desolamento perpetrado pelo personagem central. Apesar de trazer a embriaguez como uma temática aparentemente principal, a canção parece dialogar, também, com o conceito do capitalismo e flertando com a estrutura de pirâmide oferecida pelo exercício de revenda. Difícil não ouvir à canção e não rememorar a estética sonora construída em 13, último álbum do quarteto de Birmingham, mas a faixa tem uma mensagem nas entrelinhas que estimula o afastamento das pessoas das drogas e substâncias ilícitas.


Explosiva, excitante, enérgica. A introdução que segue não evidencia apenas um novo horizonte, mas também uma nova roupagem rítmica. Mais popular, mas não menos metalizada, a sonoridade em questão é embebida em uma base hard rock que oferece uma sensualidade cheia de cinismo e aromas sombrios. Fortalecendo sua sonoridade com uma estética de metal alternativo, com punchs marcantes e linhas de baixo precisas que sobressaem durante o pré-refrão. She é uma música sobre sedução, uma sedução quase proveniente de feitiços por, de tão intensa, despertar os mais primários instintos em suas vítimas. Mais do que isso, She é uma canção sobre manipulação que tem, ainda, a participação do vocal igualmente agudo e afinado de Fabio Caldeira na ampliação da harmonia da faixa.


Mais do que She, o amanhecer do novo cenário é ainda mais inovador. Com um aroma adocicado e amorfinado oferecido pelo sintetizador de Nelson Pinton, a canção é construída sob uma narrativa sonora que sugere o enigmático. Uma dramaticidade transcendental e alucinógena começa a transparecer a partir das notas do piano enquanto Gaze At The Flames vai se tornando, no campo narrativo, a mais mórbida de Memory. Afinal, enquanto a beleza desenha silhuetas de cores hipnóticas no céu, o caos acontece logo ao lado, mas sem nem ao menos ser percebido.


O céu é escuro, sem nem ao menos uma fresta de luz. Lapsos de clarões são avistados entre as densas camadas de nuvem vindos dos trovões e rajadas relampejadas cortam o tecido preto com um branco reluzente e amedrontador. Esse é o cenário que a bruta, sombria e precisa introdução oferece ao ouvinte. Novamente sob a base do metal alternativo, Parricidal é construída a partir de uma sincronia repicada e não linear que dialoga, subliminarmente, sobre fé, sobre o seguir os mandos de uma força maior sem refletir a respeito de tais ordens. Descrita em um cenário de guerra, Parricidal também discute a lealdade, a motivação e até mesmo a masculinidade como elementos que são colocados à prova em conflitos bélicos. Intensa e com flertes com roupagens como death metal, a canção tem repentes de grandes azedumes guiados por um vocal agressivo em seu drive, o qual dá passagem para um solo de guitarra que encarna toda a força da canção. Executado por Gustavo Carmo, ele é rápido, sutilmente azedo e com uma estrutura que deixa clara a influência de Mark Tremonti em sua construção.


Explosiva, metalizada, soturna e com traços de doom. A introdução tem um aroma sombrio, inquietante e que até mesmo exorta um excessivo sentir de desgosto. Trazendo no trecho uma montagem melódica que conversa com o doom, o metal, o stoner e até mesmo um post-grunge ao estilo Creed, Wicked tem um amanhecer bojudo graças às introduções encorpadas do baixo que surgem em rompantes no primeiro verso. Com notas dramáticas em meio à estrutura contagiante, a canção, assim como Alcohol, traz um quê de insatisfação não apenas com o cenário empregatício no país, mas também com estruturas sociais vigentes. Dialogando sobre o consumismo em torno de uma família que beira o disfuncional, Wicked representa a realidade de muitos brasileiros que, em idade ativa avançada, perdem o emprego e se veem no desespero para manter não apenas o próprio status social, mas preservar a saúde e o bem-estar familiares.


Curiosamente excitante em suas frases metalizadas, a introdução logo sofre uma quebra rítmica que leva o ouvinte para um ambiente que flerta com a roupagem hardcore. Assumindo a função de ponte entre intro e primeiro verso, ele cria uma efervescência que é acalmada de súbito, quando a melodia flui para frases mais lentas e até mesmo melancólicas. Abraçada por um punch sonoro constante, Stray Dogs segue a linha de Alcohol e Wicked ao dialogar sobre questões particulares de um Brasil disfuncional. Aqui evidenciando e abordando o jeitinho brasileiro como mote do enredo, a canção traz mergulhos não apenas no conceito personalista, mas também no meritocrático de maneira a questionar e criticar a malandragem institucional em conseguir os objetivos a todo custo. 


Questionador, imponente, intenso e crítico. Logo em seu disco de estreia, o Uhrutau apresenta uma sequência de faixas que não apenas fazem o ouvinte pensar, mas reflete sobre a própria cultura comportamental e faz raciocinar a sociedade brasileira. Memory é um material que, portanto, acaba fundindo música e filosofia nos diversos campos que circundam a comunidade.


Dialogando sobre meritocracia, manipulação, consumismo, capitalismo e força de trabalho, o álbum é repleto de uma consciência de mundo que muito flerta com a sensibilidade que M’Z conseguiu imprimir em La Civilisation De La Graine. Com abrangência socialista consistente, Memory é a representação dos desfavorecidos não no que tange o preconceito, mas no que toca o desamparo do sistema político-social. 


Para dar peso às suas mensagens, o Uhrutau somou uma vasta gama de subgêneros do rock. Post-grunge, stoner, doom, noise, metal, metal alternativo, hard rock, o heavy metal, o death metal e hardcore conversam livremente entre os oito capítulos de Memory. Com auxílio de Bortoloto, que ainda se dividiu entre as funções de produção e mixagem, o material viu a luz do dia com um som maduro, forte e limpo de maneira a proporcionar ao ouvinte uma degustação completa daquilo que estava sendo oferecido.


Fundindo toda essa experiência vem a arte de capa. Assinada por Leonardo Lin, ela traz uma complexidade interpretativa intrigante. Enquanto o fundo preto sugere o luto, o sombrio e o soturno, as figuras nele presentes possuem formas e silhuetas que beiram o alienígena. Repleto de figuras desproporcionais e assombrosas, elas nada mais são do que a representação de um passado fossilizado. Aí então se comunicando com o conceito do legado. Ainda assim, a sensação que dela se firma é um desconforto quase viciante.


Lançado em 28 de abril de 2022 de maneira independente, Memory é a filosofia de uma sociedade disfuncional e quase distópica. É a representação dos desfavorecidos em meio a uma comunidade conservadora em seus conceitos meritocráticos, consumistas e, principalmente, personalitas.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.