NOTA DO CRÍTICO
Meses depois do anúncio do EP Performar Selvagem, Renan Vasconcelos retoma as atividades para enfim anunciar um novo capítulo de sua trajetória. Intitulado C É U S, o recente trabalho segue se apoiando na prática do experimentalismo e é o sucessor de Ápero, álbum de estreia de Dramón, o projeto solo do músico fluminense.
O vento faz seu assombro fantasmagórico do lado de fora. Enquanto seu impacto morbidamente valsante sobre as paredes ressoa, do lado de dentro, o escuro predomina. Nele, o silêncio é rompido por sonares de objetos metálicos tilintando sobre superfícies vidreiras que, subitamente, são interrompidos por uma voz onipresente que ecoa no ambiente. De timbre com um misto de acidez, torpor, doçura e reflexão, Andréia Barana é a responsável por introduzir versos verbalizados que, entre pausas dramáticas em sua conversa monóloga, fala sobre sedução e manipulação. Um Céu Negro E Suas Promessas é uma música densa, tensa, sombria e com pitadas dramáticas que abraçam o ouvinte com sua temperatura gélida ao dialogar sobre medo e insegurança sob a ótica do desespero de não sentir a presença de uma figura perturbante que incita o caos. Com um sonar transcendental e embriagante, Um Céu Negro E Suas Promessas é como uma prece que pede pela liberdade da enganação, da ingenuidade e de um embrionário senso de imaturidade. É interessante ver que, em alguns momentos, Andréia funciona como a voz do céu, aquela que encanta e que conforta, mas que logo mostra suas verdadeiras intenções. Em definitivo, Um Céu Negro E Suas Promessas é a ausência da desconfiança, da autoconfiança e da maturidade. O símbolo da necessidade de um tutor que indique as melhores ações e caminhos, alguém que zele pelo melhor.
Uma atmosfera indígena se constrói no cenário em desenvolvimento. A natureza está em suas entrelinhas. Trazendo um ambiente de garimpo, mas um garimpo ilegal, de raízes escravocratas e autoritárias, a canção exala não apenas a impotência, mas também a submissão. Pode ser que se trate da prata, do vento ou simplesmente da plenitude que vem da mata, mas entre melodias que recriam o movimento rítmico de Whistle, música composta por Andrew Dimitroff para o longa-metragem infantil Little Red Riding Hood, Ouro Cinza Da Terra consegue ser ainda mais transcendental que sua antecessora. Afinal, os sonares aveludados que imitam a suavidade do rhodes dão um conforto quase tátil à canção.
Chiados. “Well then, how can you tell when you’re really here?”, questiona uma voz feminina que beira o infantil. Após essa companhia verbal, o ouvinte mergulha em um novo estado solitário acompanhado por um bojudo senso de proteção, tal como se se sentisse imerso em uma doma ouvindo o mundo externo de maneira opaca. Apesar de cores místicas cintilarem pelo cenário, é como se um senso de embriaguez se despertasse a partir da sonoridade linear em suas ondulações pontuais. Convalescente é como o oferecimento da possibilidade de reviver a máxima proteção uterina, um estado de conforto, segurança e afeto que transcendem qualquer definição de bem-estar.
Um groove palpável e swingado é ouvido ao longe enquanto um sonar embriagante e entorpecido plaina pela dianteira melódica durante a introdução. Com a guitarra de Renan Vasconcelos se evidenciando de maneira tímida com seu riff áspero, Ao Meio consegue misturar ambiências eletrônicas com pop e folk enquanto oferece pitadas de suspense misturadas com um estado de embriaguez reconfortante.
Faíscas fracas, mas de evidente esforço, são observadas clareando um ambiente banhado pelos últimos resquícios de luz natural. Com toques dramáticos trazidos pela guitarra, os quais imitam a sutileza e um tímido choro de violino, Deserto Lá Fora impressiona pela capacidade de concentrar uma fusão entre uma espécie de desconforto com leveza e sutileza. Conseguindo abranger dramaticidade ao mesmo tempo em que se mostra sombria e tensa, Deserto Lá Fora é como uma história que mistura suspense e terror ao trazer um personagem que dialoga com seu inconsciente vulnerável e inconstante enquanto, além de não se sentir pertencente ao mundo externo, se vê incessantemente em contato com o medo e o desconforto. Um medo estimulado, principalmente, pela não aceitação de si mesmo.
Como o alvorecer de um novo dia, a canção se inicia imersa em alegrias e levezas contagiantes enquanto se debruça sobre uma sonoridade doce, pacificante e até mesmo angelical. Com notas florais, Comunhão Dos Santos é uma canção que combina bondade, serenidade e uma calmaria entorpecente que cativa, amorna e apazígua os ânimos do ouvinte. Um verdadeiro mantra que faz o espectador se esquecer, por alguns instantes, todo o estresse da rotina.
O horizonte está banhado por tons pastéis e místicos enquanto se despede do Sol. É assim que um sentimento de súbita, mas incômoda nostalgia se evidencia em frente ao ouvinte. Entre notas agudas e espaçadas de maneira a criar um tom dramático, a canção promove uma relação direta com o fator tempo. O ontem, o hoje e o amanhã dividindo, por míseros, mas intensos instantes, a mesma tela ocular como em um filme. Questionamentos de origens variadas começam a perambular pelo inconsciente enquanto vivências e desejos são revisitados nos pensamentos e memórias. O Tempo Abaixo Dos Céus é como a procura por redenção enquanto enfrenta a velocidade do tempo. É como uma reflexão sobre a vida e como ela está sendo dirigida. Um momento de introspecção obrigatória para pensar no passado, endireitar o presente e reprojetar o futuro.
Um trabalho perfeitamente sensorial. C É U S reforça a constatação de que Renan Vasconcelos, sob a musicalidade de Dramón, sabe como produzir canções instrumentais de bastante sensibilidade e capazes de levar o ouvinte a diversas vivências no espaço-tempo como também acessar as mais profundas emoções.
Assim como foi com Áspero, a aposta foi no minimalismo sonoro, apostando, assim, em uma construção sonora transcendental capaz de embriagar o ouvinte em suas diversas texturas. Isso foi possível graças à maturidade emocional e à intensa sensibilidade com que Vasconcelos realizou as funções de produção e mixagem.
A direção narrativa de C É U S é evidente em seu caminho reflexivo sobre a vida e suas emoções mais díspares. Enquanto isso, a sonoridade, limpa e nítida, consegue oferecer, entre música ambiente e lapsos de folk, pop e música eletrônica, sensações variadas que vão do conforto à máxima insegurança, tal como é o processo de amadurecimento.
Nesse contexto é que se encaixa a arte de capa do álbum. Assinada também por Vasconcelos, ela vem com diferentes paletas de cores divididas em dois. Sobrepostas, elas emanam uma sensação de desarmonia lacrimal, uma vez que são unidas por veias acinzentadas que representam a essência do indivíduo. Como todo o ser humano, a insegurança, o medo e o caos vivem em constante contato com a proteção, o afeto e a confiança e assim é a capa de C É U S: a dicotomia sentimental unida pelo mesmo sangue que carrega cada detalhe comportamental de cada pessoa.
Lançado em 16 de agosto de 2022 de maneira independente, C É U S é um álbum que oferece diferentes significados para diferentes ouvidos. Afinal, cada textura abre uma determinada porta emocional que a faz soar de diferentes maneiras. É como a trilha sonora para a instabilidade e a metamorfose emocional que acompanha, como um personagem onipresente, todo o ser humano em sua caminhada rumo à evolução.