Tuuh - DOPPEL2

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Com 300 mil ouvintes mensais no Spotify, o já conhecido no circuito paulistano de música geek Tuuh traz algo como o antagonismo de DOPPEL1. Em DOPPEL2, seu terceiro álbum de estúdio, o cantor e compositor agora apresenta um isekai, ou seja, uma narrativa alternativa que explora a ascensão e queda do vilão de sua história iniciada em 2021.


O cenário é solitário. Um vazio intenso que chega até a dar calafrios. A época, longe da atualidade, faz com que o ouvinte se perceba de volta ao século XV. Entre os ecos reverberantes entre as paredes rochosas, um dueto proclamado por Tuuh e SayJuno, de teor catedrálico, sacro e harmonioso, se faz ouvir. Requiem é uma obra dramática à capella que funciona como um interlúdio suplicante pela morte, o que, inclusive, despeja densos aromas mórbidos ao ambiente. 


A guitarra surge serena, mas fria e melancólica com seu caminhar cabisbaixo e úmido pela fina chuva que escorre do céu acinzentado. De início curiosamente adocicado, cujo próprio dulçor é depositado no ambiente pela interpretação de Tuuh, Curiosamente, porém, tal vida lírica é acompanhada por um corpo melódico singelo, agora formado também pela bateria e baixo. Ao atingir seu ponto crescente, Higeki se mostra uma canção de base dramática, mas que tem na distorção da guitarra o protagonismo estético enquanto caminha por setores como o emocore e flertes de metal alternativo. Se tornando contagiante em sua levada alegre, chiclete e colorida, caráter adquirido graças ao adocicar quase sintético do teclado, Higeki é um J-pop que caberia muito bem como trilha sonora de animes. Dialogando sobre superação, a canção traz um personagem enfrentando as próprias dores e sofrimentos, Higeki também soa, de maneira mais simples e literal, como o embate entre o sofredor e o Diabo sob vestes de um romance quase canibalesco.


Um torpor sombrio é o principal ingrediente sensorial que a melodia inicial transpira. Quando a bateria faz um repique acelerado, ela funciona como uma ponte entre o enigmático e a paisagem escancarada. Fluindo para uma maciez sensual e provocante de um embrionário hard rock com traços de um rock alternativo-pop punk melodramático, Hitei é marcante, ainda mais chiclete que Higeki e com texturas mais ácidas que também chegam a flertar com o hardcore. É assim que a canção traz o recorte do momento em que o personagem é corrompido pelo mal. Um momento que, mesmo entre consciências de que a assumição de tal personalidade é errada, não consegue superar a força das sombras e do luar sintético.


O torpor de um dulçor artificial vem do sonar do mellotron produzido pelo teclado. Enquanto isso, a guitarra de Vinícius Ferreira se apresenta com uivos bocejantes, mas introduzindo um caráter curiosamente sombrio à melodia em construção. Densa e trevosa, como se o espírito do protagonista fosse capturado e levado para o submundo sem seu consentimento, a canção se apoia em sonares estridentes para dar a impressão de maldade e uma dissonância hipnótica. Tal como dizendo ao indivíduo, de forma fria, sínica e debochada, seus planos de ação, Tuuh faz de Kata No Akuma uma canção que trata da manipulação do lado vil e impetuoso da consciência. No mais, existe também a impressão de que Kata No Akuma esteja tratando, quase como se imersa nas entrelinhas, da manipulação religiosa e da má-fé.


Misturando synth-pop e hardcore, a canção tem na bateria e em seu compasso trotante e acelerado o elemento a comunicar a intensidade estética. Trazendo inclusive menções do power metal em sua melodia, Jonetsu No Sanjusan se apresenta como uma canção romântica em que o personagem assume estar apaixonado e perdido em desejos libidinosos com a figura de uma mulher que, com bondade e generosidade, é capaz de salvar sua alma do domínio do mal.


A guitarra surge com uma postura melancólica, cabisbaixa, mas também sombria. As notas agudas do teclado, ao fundo, conferem um drama curiosamente lancinante à atmosfera, como se o caótico doloroso fosse de um prazer inenarrável. Novamente na companhia de SayJuno, Tuuh mistura um dulçor fantasmagórico com uma embrionária racionalidade em Kagami, uma música que, diferente das anteriores que transitam entre o inglês e o japonês, traz o português como segunda língua enquanto insere, em sua cadeia melódica, um rock alternativo soturno ao estilo Radiohead. De refrão melodramático, Kagami é como se olhar no espelho buscando respostas de uma superação quase autoimune. Tal como superar o negativismo em relação à própria imagem, Kagami é a máxima introspecção do indivíduo na procura por um fogo, uma intensidade apagada que agora transforma a essência do personagem em uma paleta de tons pastéis, sem vida e sem brilho.


Explosiva, mas com pitadas de um sombrio soturno, a canção já amanhece com uma intensidade proclamada a partir de um metalcore de feições angustiantes. Eis que, surpreendentemente, Tuuh surge com um vocal completamente em português embebido em uma postura carniceira e de sorriso sínico. Evoluindo para um estado de desespero e descompasso, 8 Horas acaba por refletir bem, por meio da guitarra solo áspera e bem presente de Lucas Almeida, a agonia de um personagem dúbio em sua necessidade por silêncio e o clamar pelo fim da solidão.


Com um melódico power metal protagonizado pela guitarra de Eduardo Resende, a canção mistura acidez, doçura e traços de melancolia por meio de uma estrutura melodramática, sintética e com tímidos flertes com a new wave. De estrutura chorosa e até mesmo chuvosa, a canção, enquanto se divide entre os idiomas inglês e japonês, explora uma temática marcada pela mistura do emocore com o rock alternativo, cujo protagonismo recai perante um baixo bem presente durante os versos. Supernova é uma faixa em que o personagem expõe sua densa intensidade de caráter autodestrutivo. Uma música em que o desespero pela redenção encontra a frieza de um indivíduo que se satisfaz com sua própria e incontrolável combustão.


Uma nuvem escura e ácida exala do chão. O ambiente rochoso e trevoso, emaranhado por um cheiro de enxofre, é iluminado por rompantes de luzes vermelho-sangue. Pedregulhos, ossos e um horizonte obscuro tomam conta desse cenário, cuja sonoridade vem sob um corpo misto de doom metal, rock alternativo e raspas de pop. Dando representatividade à aspereza inicial, a melodia de Sohan tem um toque extra na harmonia que cabe a Kai Urusai, cantor que insere seu timbre mezzo soprano no backing vocal, dando corpo e embasamento para a performance de Tuuh. Com requintes de raiva e uma crueldade censurada, o personagem de Sohan se vê, finalmente, na liberdade de extravasar toda a sua ira. Uma ira cujo enredo dá a entender que foi alimentada pela falta de compreensão do protagonista por parte da sociedade.


Uma embrionária lounge music dá as boas-vindas ao ouvinte no novo cenário que começa a ser desvendado. Após breve introdução feita por uma voz computadorizada de tom grave, o teclado surge como protagonista absoluto com suas notas gélido-aguda-ácidas. Promovendo uma nova imersão no campo do power metal de aroma oitentista, Conquest surpreende por trazer, sob um timbre denotativamente grave, o convidado Lobus que, assumindo a primeira camada lírica, entrega outro tipo de textura à canção. Com sua acidez encorpada em meio a um dulçor entorpecido, o novo participante auxilia Tuuh na atividade de tornar Conquest uma canção marcante. Com direito a um refrão chiclete, a faixa apresenta um personagem frio cuja personalidade soa como se tivesse sido cegamente programada apenas para a conquista de um povo ausente de temor, mas preso na intensidade da dor. Trazendo o passado tortuoso como importante elemento na formação da identidade do protagonista, Conquest ainda põe em xeque a questão da lealdade.


“Sinta a pressão, neném”, diz uma voz computadorizada no tom grave após uma risada de caráter maquiavélico. Sob as vestes de um rock alternativo flertando com o hard rock, Maravilhoso Mundo Do Futuro é uma canção que não se limita a esses dois ingredientes no seu caldeirão melódico. Com menções ao hardcore e ao pop punk, a faixa chama a atenção por misturar o português e o japonês na sua narrativa. Explorando falsetes e extensões vocais mais amplas, Tuuh recebe a companhia de Nanasai e seu timbre mediano de cadência falada que não esconde a influência de Chorão em sua performance. Maravilhoso Mundo Do Futuro, diferente da canção anterior, traz um diálogo esperançoso e até positivista que aposta em um futuro melhor calcado nas propostas de mudança. Misturando conceitos religiosos com mitologias, a faixa vem com o dever de promover o senso de gratidão, o equilíbrio emocional e a pura capacidade de sonhar como formas de se alcançar qualquer objetivo. Maravilhoso Mundo Do Futuro é simplesmente uma canção de perseverança e autoconfiança.


O violão de Odair Silva, com suas notas reflexivas que incontrolavelmente já convida o ouvinte para o ato de pensar, fornece uma introdução de caráter diferenciado. Intimista e com flertes na roupagem folk, a canção tem direito até mesmo ao lap steel, que dá um efeito de torpor quase manipulatório ao contexto melódico. Trazendo uma aspereza azeda por meio da fusão do death metal e do metalcore enquanto caminha para sua maturação, Dreamless Soldier é uma canção que traz a solidão como a origem do massacre, do caos e da maldade fria. Uma faixa que oferece esse conceito como a metamorfose de um indivíduo inseguro, que vê nos requintes de crueldade o conforto para seus próprios sofrimentos. Ainda assim, Dreamless Soldier enaltece o desejo, talvez até mesmo inconsciente, mas já desesperado, do protagonista por uma ajuda capaz de auxiliá-lo a superar suas dores.


O sonar de vento ao fundo, com os dedilhares do violão, dão uma curiosa noção de uma MPB fresca, uma ideia que, logo, se esvai. A partir do compasso da bateria, com sua cadência em 3x4 causando uma interessante quebra rítmica com o tempo lírico, Exoesqueleto atinge seu ápice na forma de mais um power metal a preencher a tracklist de DOPPEL2. Com um teclado de dulçor quase sintético, a faixa se torna explosiva e intensa, de forma a ser proclamada por um vocal rasgado de caráter quase visceral. Exoesqueleto é a narrativa da derradeira chegada da morte, um momento que se descobre que nada de material pode ser levado. É uma perfeita interpretação, inclusive, do versículo bíblico em que Eclesiastes diz ‘do pó viemos e ao pó retornaremos’.


Intrigas, raiva, ódio. Caos, frieza, maldade. Intensidade, melancolia, nostalgia, tristeza. Sofrimento. Romance. DOPPEL2 é um álbum plural. Plural no sentido de combinar pequenas histórias com diferentes idiomas e diferentes ambientes melódicos. Um produto universal que narra o viver de um personagem sombrio, que vive, respira e é completamente adornado pelas trevas.


Trazendo um personagem de essência sofrida, que convive diária e intensamente na dualidade entre o desejo de ser salvo e o incontrolável crescimento de uma crosta rebelde e ensandecida pela sua não compreensão por parte da sociedade, o álbum é como a prova do que a ausência de auxílio, atenção e compaixão é capaz de fazer com o indivíduo.


Alimentado pelo ódio, o protagonista da história narrada em DOPPEL2 é apresentado a partir de sua intensidade e um instinto escorpiano de atacar sempre à espreita. Ainda assim, o que mais chama a atenção é que Tuuh fez, do protagonista, um indivíduo abraçado pelo incômodo contágio da solidão, uma realidade por vezes trazida como boa e por vezes apresentada como negativa.


Para dar a devida força a essa conjuntura, foi o próprio Tuuh, ou melhor dizendo, Artur Wilson, que se encarregou, inclusive, da mixagem e da produção. No primeiro ponto, o paulistano se apoiou na liberdade estética e fez com que a fusão entre rock alternativo, pop punk, hardcore, power metal, death metal, folk, metalcore, emocore, synth-pop, new wave, lounge music e doom metal soasse harmônica e, principalmente, orgânica.


Já na função de produção, Wilson, por ser inclusive o responsável por toda a criação sonora, teve facilidade em assumir o papel de diretor ao indicar o melhor caminho a ser percorrido pelo protagonista sem que o enredo perdesse seu sentido ou seu brilho soturnamente lancinante.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Lua Morales, ela apresenta Tuuh em evidência. Em um cômodo retro, circundado por uma vitrola, papel de parede cinquentista e molduras que remetem à era vitoriana, o cantor posa sob vestes pretas e uma face carregada em maquiagem escura ao redor dos olhos. Com o realce de seu cabelo vermelho, sua imagem é a de um comissário da morte. Alguém que, calmamente em sua ternura fria, egocêntrica e arredia, espera o momento de agir.


Lançado em 18 de agosto de 2023 via Arcadia Studio, DOPPEL2 é o retrato de um indivíduo inconstante, mas certo de sua irracionalidade maquiavélica saciada pelo sofrimento e degradação alheia. Ainda assim, esse mesmo indivíduo esconde uma essência frágil e insegura. Uma identidade explodida em raiva pela falta de atenção, cuidado e compaixão.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.