NOTA DO CRÍTICO
O projeto é novo e seu disco de estreia também. Idealizado por Lucas Lippaus, guitarrista, compositor e produtor, o trema¨ se anuncia no mercado da música brasileira com BR-Lockdown, álbum que precisou de apenas três dias de um março de 2021 para ser completamente estruturado.
O baixo de Lucas Lippaus surge grave com pitadas de estridência que imprimem uma vaga noção de stoner rock. Ao seu lado, a bateria de Max vem com golpes lineares e sequenciais de maneira a seguir homogeneamente sua cadência enquanto a guitarra vem com riffs súbitos e de um leve azedume, o que favorece uma mistura de rock alternativo à receita melódica em ebulição. É então que uma voz surge ao fundo, como se estivesse, ao longe, falando com auxílio de autofalantes para fazer suas palavras reverberarem pelo ambiente. É Cint Murphy trazendo, com seu sotaque paulistano afiado, uma imponência intrincada a um tom que mistura ordem, desespero e um estranho ar de conformismo perante uma realidade monótona, sem estímulo e que beira um estado de espírito depreciativo. Cinza fala de todo o turbilhão de sentimentos ofertados através da emoção desolada da solidão estimulada pela depressão causada pela falta de estímulo vinda da ausência do pertencimento.
A conjuntura é caótica. Ao fazer a dissecação sonora, percebe-se que a bateria é quem entrega um peso excessivo enquanto o baixo vem com grooves que soam como raios graves. Contudo, é a guitarra de riff agudo entorpecido e linear que causa a sensação de desconforto que domina o ouvinte durante a introdução. Nela, ainda se ouvem sons vocálicos trêmulos sobressaindo pela camada sonora feitos por Douglas Leal. O/// é uma música de lirismo onomatopeico e monossilábico ao passo que sua melodia traz uma mistura de metal alternativo com post-grunge.
Um som grave, choroso e dramático surge de maneira crescente como se pronunciado através das cordas de um violino. É como a trilha sonora de uma cena de suspense em que os personagens estão à deriva andando por um ambiente inóspito, úmido, rochoso e escuro. É quase como se a qualquer momento, um ser assustador pudesse surgir logo afrente. Eis que um som agudo surge em meio ao temor funcionando como frestas luminosas entre os blocos de pedra. Tal efeito causa alívio e segurança, o que gera uma sensação de quase torpor, mesmo sendo algo passageiro. Espelho D’Água é uma faixa que explora as texturas a partir de sonoridades que flertam com o ambiente e estimula o imaginário criativo do ouvinte por meio da formulação de cenários a partir da combinação de sons e ruídos. É até curioso, pois em meio a tal conjuntura, que mistura post-rock com lo-fi, mal se consegue perceber a presença dos vocais de Filipe Giraknob.
O som da guitarra vem como a repetição sistemática de um alarme. De súbito, um uníssono agressivo que, pela força, quase ultrapassa os limites entre potência e brutalidade, se mostra em evidência. Aquele Corre Loko coloca o punk em destaque ao mesmo tempo em que insere na melodia pitadas de noise rock, um de seus subgêneros. Sob narração de Sandrox Duarte, a faixa fala das intensidades, insanidades e lança luz sobre a vontade de viver em um mundo onde o conservadorismo seja vencido em definitivo pelo liberalismo.
A guitarra continua azeda, mas mais controlada. Sem muito tempo de solidão, o instrumento logo é acompanhado por um falsete esvoaçante e agudo que já começa a inserir linhas líricas ao contexto melódico em construção. É Victor Meira trazendo um enredo que, entre flertes com o canto árabe, fala da retomada da consciência, do controle sobre si mesmo e do incentivo à vida. Sobra, no quesito sonoro, vem preenchida de sobreposições de guitarra e rompantes de baixo que lhe dão um ar tenso e de suspense.
Explosões repentinas. Som seco vindo de uma guitarra de cordas presas. Golpes na caixa da bateria. Em seus primeiros instantes, Nada Justifica traz uma base post-grunge que evidencia a influência do Foo Fighters sobre os músicos. Contudo, em seu decorrer a canção traz estridência e alguns sons incômodos que beiram o caos ao mesmo tempo em que traz pitadas de rock alternativo. Nessa roupagem, Cláudio Cox dialoga sobre a impunidade ao mesmo tempo em que questiona os limites da liberdade intrincados com a postura impositiva e agressiva da polícia para com determinadas pessoas. “Na terra dos livres, nada justifica, tudo se confirma”, declara.
O baixo de groove levemente encorpado em união com a levada da bateria promove uma curiosa e tímida sensualidade perante a melodia em formação. Não por acaso, a interpretação lírica assumida por Liu Anno oferece traços sensuais a partir de seu timbre agudo. Com a continuidade da canção, percebe-se que a tal sensualidade nada mais é do que suspiros que evidenciam a tênue divisa entre a sanidade e a loucura. Até porque, em Pouco-a-Pouco Liu dá vida a um personagem desolado que busca simplesmente pela felicidade em um processo que é sempre afetado pelo efeito do tempo, um tempo em que a noção de consciência não existe e os dias e noites parecem o mesmo momento repleto de torpor. Pouco-a-Pouco é uma canção que, por mais que não tenha tanta experiência sensorial como Espelho D’Água ou a imponência de Aquele Corre Loko, traz um desconforto inebriante e enigmático.
O post-grunge se mistura novamente com o rock alternativo em Que Vontade, uma faixa de azedume evidente, linearidade rítmica contagiante e exorta a libido através da narrativa do timbre grave de Bruno Palma. No entanto, Que Vontade é uma canção que possui o espectro sexual apenas como faixada, pois o que ela traz é a evidência de um personagem hipocondríaco.
Seu despertar sugere alegria e leveza. Contudo, é apenas uma sugestão. Afinal, a melodia linear que se forma é nauseante e embriagante ao mesmo tempo. Sair é uma canção que, pelo timbre agudo de traços de veludo de May Manão, traz um enredo de um personagem que aparenta ter vivido em cativeiro e sido expostas a agressões das mais variadas origens de maneira a deixá-la temerosa tanto por afeto quanto pela liberdade. Uma canção de letra curta, mas impactante.
Assim como em Nada Justifica, a guitarra introdutória produz um som tal como se suas cordas estivessem presas, sugerindo suspense e até mesmo insegurança. Surpreendido por um timbre grave e levemente anasalado, Desconstruído toma ares de protesto. Guiada por Amanda Rocha, a canção discute impunidade e questiona os conceitos conservadores de amor e família ao passo que são regidos pela intolerância. Não por acaso, tais referências são indiscutivelmente direcionadas ao governo extremista e agressivo imposto por Jair Bolsonaro. Desconstruído é um canto de resistência.
O post-grunge segue firme na introdução com sua estridência e pitadas de sujeira caótica. Seguindo a trilha deixada por Amanda, Fernanda Gamarano, com seu timbre excessivamente agudo e canto em inglês, dialoga sobre a insegurança social exalada no momento atual vivido pelo Brasil. Como a canção mais longa de BR-Lockdown, Fear traz pitadas de lo-fi ao passo que soa como um grito de socorro, uma clemência por ajuda ou como um extravasar de cansaço por sentir medo. É quase como um urro de basta.
É a experimentação de sons. É a combinação de diferentes vozes, visões e propósitos. É o extravasar de emoções represadas. É o grito de basta, o exortar de descontentamento. BR-Lockdown é um disco rápido, mas rico em texturas rítmicas e em lirismo. É um trabalho provocativo até mesmo em relação às métricas de pagamento do Spotify, as quais direcionam o valor após a execução de, no mínimo, 30 segundos de uma faixa.
Nesse quesito, a ideia aparente de Lucas Lippaus de alfinetar o Spotify segue claras influências da empreitada feita pelo The Pocket Gods em 1000X30 Nobody Makes Money Anymore, disco produzido pelo grupo inglês com músicas de apenas 30 segundos de execução.
Ao mesmo tempo, BR-Lockdown oferece também, no tempo de execução de suas faixas, um flerte com Father Of All... Motherfuckers, disco de estúdio do Green Day com músicas de pouco mais de três minutos de duração com o intuito de provocar a cultura da música descartável.
Contudo, apesar de ambas as semelhanças, o disco de estreia do trema¨ traz muito mais do que somente músicas curtas. Oferece um conceito interessante de letra enxuta e consistente unida com melodias simples e marcantes. Não por acaso, entre stoner rock, rock alternativo, metal alternativo, post-grunge, post-rock, lo-fi, punk e noise rock, questões puramente sociais e emocionais se fundem com outras sociopolíticas.
Com um intenso som de garagem, a mixagem e produção também feitas por Lippaus sugerem uma sonoridade crua em que o destaque é depositado inteiramente nas experiências extrassensoriais promovidas pelas melodias das faixas. Até porque, na maioria das músicas existem sons que não são produzidos por instrumentos convencionais.
Fechando o espectro de BR-Lockdown vem a arte de capa. Feita por Paulo Valentim e Fabio Salvador, a obra é literal ao título do disco. Afinal, ela traz uma pessoa encarando a janela com vista para um cenário urbano e edificado como se estivesse admirando a liberdade que um dia possuía. É a representação perfeita da clausura motivada pelo desejo desenfreado de aniquilar a disseminação da Covid-19.
Lançado em 18 de abril de 2022 de maneira independente, BR-Lockdown é um novo conceito de música. O detalhe e a qualidade não estão no tempo, mas sim nas experiências que a composição promove. Um som de garagem que funciona como um extravasar de sentimentos que representam toda uma população. BR-Lockdown é emoção e imponência.