Tori - Descese (Lado A)

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Sergipana radicada no Rio de Janeiro. É assim que a cantora, compositora e musicista Tori é apresentada ao público. Com esse crédito é que ela decide alçar voos em carreira solo com Descese, seu álbum de estreia. Para comunicar ainda mais seu desprendimento em seguir padrões preestabelecidos, a cantora ousa em lançar o material em duas partes, sendo Descese (Lado A), a primeira delas.


Um clima árido e inóspito se constrói nos refletir da umidade dos olhos do ouvinte. O desolamento é, nesse âmbito, um sentimento que abraça o espectador de maneira estranhamente acolhedora. De evidente suspense, os dedilhares graves do violão de Tori formam uma cenografia ainda mais palpável, como se um personagem enigmático caminhasse suado, descrente, cabisbaixo e esfarrapado, pelo terreno rochoso e fervente do sertão. Surpreendentemente, uma narrativa quase fantasmagórica construída a quatro vozes começa a dissecar a realidade de pobreza extrema das regiões interioranas do nordeste. Sem medo de chocar ou de causar imbróglio, Água Viva mostra, sem filtro e com dramaticidade latente a partir da união minimalista da percussão de Domenico Lancellotti com o sintetizador de Bruno Di Lullo, o que uma mão precisa fazer para ter o que dar de comer à sua cria quando nada se tem. A escassez absoluta faz o ser humano agir por instinto e quase de maneira selvagem. É nessas horas que se prova quem tem humildade e humanidade e quem preza apenas pelo conforto de si.


A percussão é ouvida ao fundo como uma espécie de mantra xamânico, enquanto a agudez suave do timbre de Tori se funde ao agridoce de Bruno Berle em uma melodia timidamente reggae-ska. Com a introdução do duo de metais Aquiles Moraes e Everson Moraes no comando do trompete e trombone, respectivamente, a maciez melódica se firma de tal maneira a flertar até mesmo com a roupagem do flamenco. A faixa-título é um produto que, em sua introspecção swingada, descreve uma experiência espiritual e extrassensorial da visita de ambientes profundos da Terra. Uma mitologia, no mínimo, intrigante.


A flauta de Thiago Queiroz, equalizada em sua estridência e veludo, causa um presságio de desconforto gélido no ouvinte a partir da criação de um clima hipnótico e de swing perigoso. Com mesclas de mariachi e música árabe, Hybris é uma música introduzida sob interpretação  entorpecida e psicodélica que narra a sensibilidade e a pureza do corpo. É como uma ode à vida pelo simples ato de sentir a luz do Sol entregando princípios de lucidez.


A brasilidade volta com mais força a partir da propositadamente dissonante MPB promovida entre a sincronia do riff seco e sutilmente distorcido da guitarra de Bem Gil com o violão. Com apoio de elementos percussivos como o caxixi e o bumbo criando uma noção de movimento, Eco é uma canção que busca, de uma maneira atordoante também por conta da estridência linear do sintetizador de Eduardo Manso no rumo final da canção, comunicar o processo de autoconhecimento aquém do julgamento de terceiros. É como estar caminhando pelo inconsciente e descobrindo pedaços de si nunca encontrados e estudados. 


Prosseguindo com o ambiente hipnótico, o minimalismo introdutório de Morada faz o ouvinte delirar em sua própria inconsciência a partir de um misto de sensações que vai de torpor e enjoo. Como um mantra ecoante sobre existência, Morada é uma canção de turning point melódico surpreendente. Na mesma cadência, ela impressiona ao introduzir em sua roupagem instrumentos de espectros completamente diferentes entre si. Enquanto o sopro bojudo do bombardino se funde aos agudos melodiosos dos saxofones alto e barítono que criam uma noção classicista e de vanguarda modernista, o sintetizador de Manso e Zé Ruivo imprime atualidade à Morada, uma música que, com a levada da bateria de Bianca Godoi, tem também uma maciez revigorante.


Maciez, frescor e tranquilidade. A brasilidade dos tilintares do agogô e do chacoalhar do caxixi fundida ao swing do soft rock produzido pelas guitarras de Gil e Fábio Aricawa,  traz um clima praiano contagiante e acolhedor à melodia introdutória de Travessias Maiores. Como uma música que propõe um diálogo com as transformações, amadurecimento e mudanças, ela também comunica a liquidez da vida e a imprevisibilidade do destino. 


É a vanguarda da MPB. Com suas fusões estilísticas, trechos propositadamente dissonantes e climas barrocos que comunicam influências que vão desde Anavitória até Lana Del Rey, Descese (Lado A) é um material macio, mas intrigante em suas propostas analíticas e dramatúrgicas.


Falando sobre a vida, a existência e como lidar com as mudanças, Tori surpreende ao trazer instrumentações pouco comuns à MPB convencional. Artística em níveis superiores, ela funde sonoridades clássicas em uma base nacionalmente popular que mistura o samba e a bossa nova com gêneros semelhantes, mas não próximos, como o ska, o reggae e o soft rock.


Chamando a atenção pela abertura sem filtro, crítica e intencionalmente incômoda de Água Viva, Tori já se mostra uma artista sem amarras com aquilo que pode ser definido como radiofônico ou comercialmente popular. Com sua dicção cerrada e muitas vezes introspectiva ao ponto de até ser difícil compreender seus dizeres, ela traz em Descese (Lado A) o enigmático, o suspense, a crítica e o drama.


Fechando o escopo técnico vem a arte de capa. Assinada por Elisa Maciel, ela traz um caráter renascentista evidente. Porém, ela choca ao trazer o busto de Tori preenchido pelo que parece ser a representação do vírus da Covid-19 em uma clara alusão à impotência do ser humano. Ainda assim, é uma arte que casa com a proposta do EP em discutir a vida e sua fragilidade.


Lançado em 11 de novembro de 2022 via PWR Records, Descese (Lado A) é a vanguarda da MPB. A modernidade se fundindo com o clássico. A ousadia rompendo o marasmo artístico-conservador. Um trabalho que choca, que reflete e que relaxa. É a vida em sua máxima fluidez.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.