NOTA DO CRÍTICO
Após 37 anos de dedicação ao rock n’ roll, o paulistano Luiz Thunderbird dá um importante passo na carreira ao se inserir no time de músicos que se aventuram em carreira solo. E para marcar o início dessa nova jornada, o sessentista anuncia Pequena Minoria De Vândalos, ou somente PMDV, seu disco de estreia como músico solo.
Como um susto, a canção já se inicia de maneira que sua sonoridade faz parecer já ter começado há um tempo, pois os instrumentos já se apresentam sincronizados em uma levada levemente acelerada cujo groove grave e de teor sínico do baixo de Gustavo Boni é o protagonista. As guitarras de Boni e Marcopolo Pan entram na conjuntura rítmica como o ingrediente do caos e da desarmonia cujo proposito parece de fato promover uma dissonância momentânea enquanto a bateria de Caio Lopes se mantém em uma levada precisa, constante e suja. Eis que, em meio a essa linearidade quase não melódica, uma voz sutilmente grave paira pela atmosfera. É Luiz Thunderbird proporcionando uma quebra rítmica ao passo que sua cadência vocal soa sutilmente mais acelerada que a velocidade da melodia instrumental. De versos repetitivos de forma a quase favorecer a construção da cacofonia, a canção tem direito a um solo de trompete que, executado por Daniel Brita, aumenta a sensação de desarmonia por conta de seu som linear e ondulante de forma a parecer até mesmo o zumbido de um mosquito. A Obra acaba sendo uma canção stoner rock que flerta com o noise rock ao mesmo tempo que comunica uma essência psicodélica que é governada por um senso proposital de desordem, mas que sonoriza perfeitamente a crítica político-social impregnada no lirismo, o qual tenta mostrar, em seus versos quase monossilábicos, que não há perfeição no aspecto da vida social.
A levada da bateria cria uma cadência ao estilo new wave que contrasta à roupagem mista da canção anterior. Não há caos, mas a forma como a bateria e o baixo comunicam sua sincronia mantém a estrutura linear levemente acelerada. Fica à cargo da guitarra, com seu grito agudo, rouco e distorcido, romper com tal marasmo de maneira a parecer ser um personagem zombeteiro. Nesse ínterim, a canção evidencia um lirismo que parece relatar diferentes pontos de vista do êxodo social, um tema que flerta com a maneira em que a política está sendo executada. Não à toa que Insuportável acaba abordando de forma sutil questões inerentes à censura e funciona como uma música de protesto que estimula a não indiferença frente à governança nacional.
A bateria já surge repicada. Sob o comando de Caio Mancini, ela desenha uma atmosfera que mistura elementos do indie e do pop punk. O baixo estridente e linear somado à guitarra em eco de Briza cria uma textura stoner marcante. De repente, a melodia se torna épica, intensa e psicodelicamente ácida. Isso acontece graças à entrada do órgão hammond dominado por Pedro Pelotas, quem acaba fornecendo uma embriaguez rítmica imparável. Curioso notar que a melodia do baixo em Eu Vou De Bike possui a mesma estrutura da sonoridade presente em Pretty Fly (For A White Guy), single do The Offspring, com a única diferença de ser executada de maneira demasiadamente mais lenta em comparação com a música do grupo californiano. De estrutura digerível e harmoniosamente contagiante, a canção recebe, em sua segunda metade, a presença de uma voz aguda e levemente rouca. É Odair José colocando cores mais vivas à estruturação rítmica que é agraciada por um solo de guitarra bluesado de forma a flertar com a estética folk. Eu Vou De Bike é uma canção divertida em que o lirismo evidencia certo tom de ganância e insatisfação misturado com um senso intenso de vida. Um importante single de Pequena Minoria De Vândalos.
A distorção da guitarra de Felipe Pagani é ouvida como um uivo oco. Como um relâmpago, ela dá passagem para que a melodia vá se apresentando. É nesse momento que, na companhia da bateria linear de Rodrigo Saldanha, ela vai desenhando uma estrutura contagiantemente provocante. Contudo, conforme a canção vai crescendo, a sonoridade vai ganhando ares de caos e desarmonia que se assemelham àqueles de A Obra. Não à toa que os conteúdos líricos de ambas parecem ser complementares. Afinal, enquanto a primeira evidencia a desordem social, a segunda traz uma roupagem ainda mais política. No entanto, em Protesto Thunderbird parece criticar aqueles que se apossam do termo ‘protesto’ sem estar legitimamente divulgando insatisfações. A impressão que se tem é que o cantor recrimina a cultura do desleixo em relação à política ao mesmo tempo em que chama a atenção para a assumição de uma postura mais enfática, incisiva e presente por parte da sociedade.
O repique das baquetas surge contando o tempo. No compasso de três segundos, a canção se inicia com uma guitarra levemente ácida ministrada por Daniel Tavares Rossi que, em seguida, é acompanhada por repentes ondulantes do sintetizador, quem coloca uma ambiência embrionária da new wave à sonoridade ainda em construção. Estranhamente contagiante em sua recriação da atmosfera setentista das danceterias, Ética possui um lirismo que, nas mãos de Thunderbird, traz essa qualidade como sendo algo comprado, adquirido, pechinchado, falso. Um conjunto de padrões e valores morais que é estereotipado como sendo algo restrito às classes endinheiradas, empostadas e socialmente admiradas.
A bateria é ouvida ao longe com um som oco e abafado. Sua levada é repicada, o que sugere um compasso de movimentação mais swingada. Tal preceito é reforçado com a entrada da sonoridade entorpecidamente doce e pontual do sintetizador, o qual evolui para algo levemente mais azedo que, assim como foi em Ética, imputa uma roupagem new wave à melodia. Ao fundo, o baixo é ouvido de forma a soar encorpado e assumindo a posição do ingrediente da consciência e da seriedade, mesmo que pareça, em alguns momentos, se embriagar em um singelo descompromisso. De aura psicodélica e quase transcendental, a sonoridade oferecida em Livre Evaporação é como uma viagem de ácido: reconfortantemente embriagante e entorpecente. É então que, com sobreposições vocais ecoantes, Thunderbird entra em cena como se fosse os devaneios da própria mente, falando ao léu raciocínios vagos e desconexos que são acompanhados por uma guitarra de riff sinistro inserido por meio de Guilherme Held.
Vozes são ouvidas ao fundo enquanto que, em primeiro plano, o som constante da engrenagem das rodas do trem dá noção de movimento. É então que o ácido sonar do kazzo, ao lado da batida da bateria de Felipe Maia e do veludo do sintetizador, cria uma ambiência infantil que beira o lúdico a partir da base xote. Com um humor contagiante, o que Thunderbird oferece é um lirismo que rememora os áureos tempos do rio Tietê ao mesmo tempo em que aborda sua presente condição de descaso que flerta com um consciente esquecimento. Com direito a críticas à poluição e citações da fauna que habitava os entornos do ribeiro, Rio Tietê é uma canção divertidamente protestante e romântica que conta com a participação do vocal aveludado de Juliana R. nos backing vocals. Outro importante título de Pequena Minoria De Vândalos.
Repiques executados a esmo são ouvidos de maneira a se perceber o efeito fade in. Sob o comando de Daniel Nogueira, tal levada, mesmo que no extremo do minimalismo, proporciona suspense e expectativa na mesma medida. Quando uma única nota, grave, encorpada e sequencial vinda do baixo de Thunderbird, a noção de suspense é amplificada. Curiosamente, aos poucos a melodia em construção vai ganhando ares épicos e de harmonia crescente que vai criando uma excitação desmedida por parte do ouvinte. A guitarra de Diogo Xavier surge colocando cores mais vivas, mas com uma timidez e suavidade propositais que contrastam com o desenvolvimento do groove de Nogueira, que assume a estética stoner executada de maneira lenta. Interessante notar que, ao fundo, um som estridente, áspero e de uma agudez que beira o gótico acompanha como um personagem onipresente o restante dos instrumentos. É o harmonium de João Felipe proporcionando aromas progressivos à sonoridade em desenvolvimento. Eis que um dueto quase sussurrado se instaura entre Thunderbird e Julito de maneira a ampliar o misto de psicodelia e progressivo existente na energia melódica. Entre solos dramáticos e uma conjuntura épico-melancólica, Rumo é uma canção que vende a imagem de tratar do enfrentamento das adversidades da vida ao mesmo tempo em que trata da impulsividade de forma a flertar com a pureza da ingenuidade.
Saindo drasticamente da ambiência densa, dramática e psicodélica de Rumo, uma melodia de alegria contagiante e de uma estrutura que remonta a sonoridade de nomes como The Smiths, The Cure, Rita Lee e até mesmo Barão Vermelho invade o cenário. Exalando um cenário que recicla o rock nacional oitentista, Serra do Mar é protagonizada pela pressão linear que vem do baixo na coxia rítmica, local de onde a canção ganha um corpo notável. Serra do Mar é um instrumental que transporta o ouvinte para a companhia dos amigos em uma praia banhada por um sol poente de verão devido à sua leveza.
Ele pode soar estranho, desarmônico e caótico nos primeiros momentos. Mas assim como o rock é um gênero que choca, Pequena Minoria De Vândalos provou vir para chocar os ouvintes acostumados com uma estrutura sonora de cunho radiofônico. Emaranhado por linearidades hipnóticas e melodias destoantes, o álbum critica a sociedade, elementos culturais e o governo de uma maneira um tanto inovadora.
Em seus nove capítulos, o ouvinte presencia o caos e a harmonia. A melodia e a dissincronia. O contágio e a seriedade. A crítica junto do lúdico. Esse talvez seja um grande feito de Luiz Thunderbird: construir um material que choque pela estrutura superficialmente desarmônica e cative pelas suas melodias contagiantes.
Ainda assim, o paulistano não abriu mão de fundir diferentes subgêneros do universo do rock e muito menos se manter na zona de conforto. Afinal, mesmo existindo a sujeira do stoner, a desarmonia do noise e a acidez proveniente tanto da new wave, do progressivo e do psicodélico, Pequena Minoria De Vândalos também é infantilesco e lúdico.
Nesse aspecto, é indiscutível o fato de que Rio Tietê seja a principal pérola do álbum. Afinal, ela é uma faixa que mistura crítica à gestão do saneamento básico, melodia contagiante e infantil que é calcada no xote, além de um lirismo estruturalmente lúdico. Claro que além dela se destacam outras canções como Eu Vou De Bike e Rumo, mas a sua conjuntura destoa das demais e mostra um lado até mais sensível de Thunderbird.
Tudo foi cuidadosamente sintetizado a partir da produção de Lampadinha. De ouvido apurado e consistência no trabalho com nomes da cena rock nacional, o profissional não apresentou dificuldade ao conseguir fundir melodia e letras protestantes. Além disso, foi visível a direção artística baseada na total liberdade de expressão que ele ofereceu a Thunderbird.
Fechando o escopo de Pequena Minoria De Vândalos vem a arte de capa. Assinada por Carol Shimeji, ela encarna o conceito que existe por detrás de PMDV. Na forma de uma bandeira, a cor preta preenchendo grande parte do espaço sugere de fato um aspecto de levante que, aqui, se configura como vandalismo. Ao mesmo tempo, o objeto central de conotação enigmática vem adornado em branco, o que sugere a existência da harmonia em meio ao caos.
Lançado em 23 de junho de 2022 via Freak, Pequena Minoria De Vândalos é um disco desarmonicamente caótico. Contudo, mesmo nos ambientes mais desajustados existem repentes de sincronia. E PMDV é a perfeita sonorização de que existe, sim, harmonia em meio ao caos.