NOTA DO CRÍTICO
Em quatro anos, a evolução foi notável. De um canal no YouTube para compartilhar músicas compostas no celular, o pernambucano IVYSON passou para um álbum devidamente produzido. Assim se fez O Outro Lado do Rio, seu disco de estreia no universo fonográfico brasileiro.
A neve cai do lado de fora. Olhando da janela embaçada do trem, o visual é pálido e sem vida. As árvores sem folhas e cobertas por densas camadas de gelo são o espelho do interior da personagem sentado em uma das cabines da locomotiva. Com a cabeça apoiada em uma das mãos, ela evidencia um olhar vazio, mas de evidente tristeza imergida em uma espécie de torpor. Esse é o cenário que se desenha através da melancólica melodia criada pelo violão de IVYSON. Eis que o músico presenteia tal ambiente com um timbre adocicado com raspas de um grave que, com seu sotaque nordestino, imputa um realçador de sabor à sonoridade. Com sutileza e uma curiosa maciez, ele vai caminhando por um ambiente indie que flerta com o folk de maneira introspectiva. Importante notar que, a canção assume contornos transcendentais embriagantes que, com o auxílio da guitarra de Edmilton Souza, cujos riffs se pronunciam com uma postura educada como se fosse um amigo oferecendo um ombro de compreensão, injetam uma curiosa sensação de bem-estar. De refrão monossilábico nos moldes do pop, Quando Não Havia Mais Ninguém surpreende o ouvinte por apresentar uma quebra rítmica na metade de sua execução que levanta o contágio a partir do compasso alegre da bateria e da cadência vocal assumida pelo cantor. No que se refere ao lirismo, Quando Não Havia Mais Ninguém apresenta um personagem imerso em um estado de profunda depressão que encontrou esperança, alegria e positividade a partir da figura de um alguém que conquistou seu coração. Portanto, é uma música que trata propriamente do senso de esperança, da perseverança e do poder do emocional. É sobre enxergar no amanhã a possibilidade de um recomeço.
O corpo está submerso levitando na densidade da água. A luz do dia ilumina os cabelos ondulantes e evidencia as curvas da silhueta através da sombra que se forma no chão. Existe calmaria e um silêncio tão pacificador que chega a ser inquietante. Esse é o ambiente cenográfico formado através das notas aveludadas e entorpecidas do teclado de Viktor Judah. Junto a ele, o violão de IVYSON cria um movimento levemente swingado à melodia ainda em construção, o que promove uma maciez quase tangível. A forma como o cantor surge interpretando o conteúdo lírico faz com que a sonoridade crie uma estética de mantra espiritual que exala uma reenergização a partir da calma, da tranquilidade e da sutileza. Eis que, no despertar da segunda estrofe, uma voz levemente rouca, com fundos de um agudo floral e uma embrionário grave passa a acompanhar o vocalista como uma espécie de personagem quase onipresente. É Gabi Farias introduzindo maiores doses de sutileza à melodia e repentes de uma bela e engrandecedora harmonia nos momentos de coro. Construindo um ambiente romanceado com raspas de uma delicada sensualidade, os cantores ajudam a fazer de Constelações uma canção de beleza minimalista. Não por acaso, Constelações é uma canção de lirismo propriamente romântico, mas cujo enredo relata as eventuais disfunções existentes em um relacionamento. E nesse sentido, IVYSON e Gabi ressaltam a saudade, a dúvida, a tristeza, mas tendo no cerne de cada respectivo sentimento o carinho e o amor.
Sem instrumental, a canção se inicia logo com os vocais de IVYSON introduzindo a cadência melódica. Acelerada, animada e com toques de uma sensualidade tímida, ela possui como coadjuvante as notas agudas do teclado que imputam cores sóbrias à paleta que compõe o quadro cenográfico da canção. Com base na batida do reggaeton, existe bum ar tropical colocado através da movimentação das cordas do violão de Giovanna Póvoas, as quais misturam o frescor e educação da MPB. Com auxílio do timbre igualmente suave e de forte sotaque nordestino de Mathias, IVYSON narra um enredo que, assim como o de Quando Não Havia Mais Ninguém, traz uma espécie de romance na transformação da forma como a vida é vista. Com o auxílio de outro alguém, o personagem central cria consciência não só da beleza da vida, mas se educa a vivenciar cada momento de maneira intensa. Me Chama Pra Dançar é romance, é vida, é intensidade, é entrega. É uma música que ensina a valorizar as pequenas coisas e entender que, mesmo a vida não sendo perfeita, ela tem suas belezas que merecem ser admiradas.
Um pop de compasso bem marcado amanhece. Misturado com elementos soft rock e de um indie embriagante, a melodia tem aspecto entorpecido que é engrandecido pela forma como IVYSON interpreta o conteúdo lírico. Mole, a voz do cantor coloca bastante ênfase nas vogais de maneira a fazer de seu canto um elemento sonoro linear. No entanto, com a entrada do vocal agudo, com raspas de veludo e delicadeza de Rayllane Gomes da Silva, a canção passa a assumir os mesmos moldes de Constelações. Contudo, diferente de tal canção, Rouco é uma composição que trata de maneira dramática a forma como o personagem se mostra frente a um estado de profunda solidão, o que leva a um despertar depressivo. Contudo, apesar de o próprio personagem admitir ter desistido de enxergar a esperança, ele acaba verbalizando, mesmo que de maneira metafórica, pedidos de ajuda para superar tal embriaguez sofredora. Ao mesmo tempo, Rouco é uma canção que critica a negação, a cegueira intencional e a falta de sensibilidade das pessoas em conseguir perceber quando o outro precisa de ajuda.
Com um veludo inegável, a melodia tem seu despertar. Protagonizado pela maciez do som do fender rhodes proporcionado pelo teclado de Lucas Brenner, a canção já assume uma macies de delicadeza estonteante. Como uma brisa de valsa levemente sensual, a música ganha um tempero extra que rompe o torpor entristecido. Isso ocorre graças aos sopros do trompete encorpado e estridente de Robson Andrei, que traz tímidos flertes com a roupagem do pasodoble, mas ainda assim é choroso e consegue sonorizar as lágrimas que escorrem pelo rosto do personagem. Com direito a subgraves dando pressão na ponte lírica, Esquina é uma faixa de sangue latino graças à sensualidade imposta por Andrei, que além de trazer repentes de pasodoble, pincela o reggaeton na melodia. E nesse ambiente é que mora um enredo sobre tristezas no amor, sobre a entrega unilateral, sobre confidências não correspondidas. É sobre um amor tão profundo que beira o platonismo.
De uma maciez popeada introduzida pelo som do fender rhodes vindo do teclado, a canção logo deságua em uma melodia indie rock de suavidade que rememora as estruturas rítmicas do Los Hermanos. Muito disso se deve à dupla de guitarras que vai dando cores mais vivas enquanto que, em contrapartida, o baixo de Vanderson Cavalcante caminha de maneira a entregar um encorpamento grave e denso à sonoridade que ainda se encontra em processo de construção. Mesmo assim e ainda que tenha uma boa conjuntura instrumental, é o baixo que assume o protagonismo por dar um forte alicerce ao veludo estonteante e compassado que a música oferece. Curiosamente, porém, Sabe Flor? segue com o conceito romântico de cunho entristecido que O Outro Lado Do Rio tanto transpira. Afinal, aqui IVYSON dialoga sobre experiências passadas e relacionamentos encerrados que, como em um vaivém, desperta saudade, tristeza e quedas sentimentais em meio à maturidade emocional que indica o caminho do amanhã. Não à toa que Sabe Flor? é regida por uma dramaticidade intensamente entorpecida.
Os diversos tons bailam nos céus em uma aurora boreal. Uma atmosfera enigmática, penetrante e hipnotizante se constrói enquanto os olhos se enchem de um brilho incandescente. É como a sensação do flutuar em um ambiente inóspito, espacial e iluminado por inúmeros feixes de luz vindos de estrelas longínquas. O coração bate, as mãos procuram algo para tatear e a mente se embriaga por um mergulho nostálgico. Dramática, singela e embriagante, a canção consegue, mesmo em seus minimalismos iniciais de um tímido instrumental, recriar a mesma energia do amanhecer de Dois Rios, single do Skank. Diferente desta, porém, Se Me Ver Sorrir é uma canção que se aprofunda no processo da maturação e digestão do sofrimento de memórias que não mais serão revividas. Assim como Me Chama Pra Dançar, a presente faixa mostra a força da superação mesmo diante de um estado de quase prostração lamentosa.
Uma revoada de pássaros é avistada ao longe rumo ao Sol poente de um entardecer de inverno. Tal visão desperta um estranho senso melancólico-nostálgico que abraça o ouvinte como um amigo oferecendo o ombro. É assim que a melodia vai se evidenciando entre ingredientes pops e indies que constroem uma sonoridade suave, mas capaz de contagiar e tirar um tímido sorriso do ouvinte. Em Sem Direção acontece algo inovador por, entre a dramaticidade, haver notáveis flertes com roupagens psicodélicas e progressivas que criam uma pressão ácida e de suspense latente. Isso acontece graças ao entrosamento indiscutível entre teclado, guitarra, baixo e o som da bateria. De intenso torpor que faz com que a sonoridade flerte com a estrutura rítmica de nomes como Supercombo e Scalene, Sem Direção surpreende ao trazer o enredo lírico mais positivista e motivacional de todo O Outro Lado Do Rio. Afinal, aqui o eu-lírico se encontra fortalecido, consciente de sua essência emocional e focado na superação de maneira a enxergar a possibilidade de um novo começo. “Já não me sinto um barco sem direção”, confessa o personagem.
É como caminhar por um jardim florido em uma tarde de verão. É como o sentir o toque das mãos sobre a textura da flor dente de leão e observar suas brancas e finas pétalas alçarem voos de uma suavidade grandiosa. O violão, com sua base MPB, consegue trazer um ambiente de calmaria como esse, algo que tem continuidade através do vocal ameno de IVYSON. Dentre sobreposições vocais que constroem um ambiente quase transcendental, a canção se deleita sobre uma dramaticidade intensa que soa como um olhar repleto de lágrimas represadas no processo de fluir pelo seio do rosto. De todas as faixas do álbum, O Que Devia Ser soa como aquela de cunho mais introspectivo em sua essência deprimente. Com um personagem consciente de sua fraqueza emocional e confortável na zona de conforto do sofrimento, a canção também soa, por outro lado, como uma composição sobre fé e a crença em uma força maior que sempre busca o bem ao próximo. Interpretação é embasada especialmente no verso “seja meu alicerce em meio à tempestade”.
Som de água corrente. Uma pressão dramática vem a partir das notas graves do teclado unidas ao igualmente grave riff da guitarra. Mesmo assumindo uma cadência lírica levemente acelerada, IVYSON não rompe a base rítmica lenta e de estrutura minimalista que vai caminhando por um terreno rochoso até atingir o topo e conseguir enxergar, entre as densas camadas de nuvem, feixes de luz que dão ares de esperança e positividade. Norte é uma canção que traz um eu-lírico consciente de sua essência e amadurecido em seu caráter perseverante. Assim como Sem Direção, esta é uma canção de forte cunho motivacional que estimula e reenergiza mesmo sendo acompanhada de uma melodia melancólica e entristecida.
Triste e dramático. Essas são as palavras que definem bem O Outro Lado Do Rio, um álbum choroso, entorpecido, melancólico e nostálgico que mergulha no sofrimento ao mesmo tempo em que tenta mostrar como a esperança em um novo amanhã pode ser o remédio para tanta lamentação.
Equilibrado em melodia e interpretações líricas, o álbum consegue ser agraciado por momentos de intensa leveza e maciez enquanto dialoga sobre relacionamentos e suas dores, sobre amadurecimento e autoconhecimento. Interessante notar que, nesse aspecto, o disco pode ser considerado um trabalho conceitual, pois todas as suas 10 faixas apresentam um enredo choroso sobre tristeza e superação.
Nesse processo, IVYSON teve a ajuda de um time de músicos que ajudaram a desenhar bases melódicas que conseguiram sonorizar as lágrimas a saudade e a reenergização do vaivém do processo de digestão do passado e enfrentamento do futuro vivenciado pelos personagens líricos. Para isso, foi preciso pitadas de MPB, indie, indie rock, pop, pasodoble, soft rock e reggaeton na receita sonora, o que conferiu a O Outro Lado Do Rio uma genética de sangue latino bem evidente.
Todo esse espectro foi muito bem capturado por Viktor Judah, que além de ter dado o ar da graça nos instrumentais das faixas, também se apossou das funções de produção, aqui com companhia também de Kleyton Abraão Bezerra Barreto, e de mixagem. E foi justamente por caminhar por todas as esferas do álbum que o profissional conseguiu fornecer uma finalização sonora que fosse capaz de transmitir cada emoção conflitante vivenciada pelos personagens líricos.
Fechando o escopo estrutural do disco vem a arte de capa. Assinada por Carpe, ela consiste em uma obra cuja paisagem e cores fornecem o duplo sentimentalismo da nostalgia e da melancolia. No quadro, se vê uma praia quase deserta que, agraciada por um entardecer de outono, abriga apenas um indivíduo. Sentado em uma cadeira e admirando a paisagem que se constrói além da porta, tal personagem comunica a essência da esperança diante do vazio existencial. Com ilusionismo a obra é a perfeita sintetização do conflito emocional que baseia cada enredo lírico.
Lançado em 10 de junho de 2022 via Babel, O Outro Lado Do Rio é um disco imerso em um intenso torpor que divide espaço com lágrimas, com a saudade e com a dor. É um trabalho conceitual que dialoga sobre superação e autoconhecimento com abrangente delicadeza e maturidade.