NOTA DO CRÍTICO
Levou apenas um ano para que o The Offspring voltasse ao estúdio para novas gravações após o anúncio oficial de Days Go By. Porém, para o lançamento do disco que viria a ser o 10º álbum de estúdio do grupo, foram precisos seis anos de idas e vindas ao estúdio na Califórnia para que Let The Bad Times Roll finalmente saísse do papel.
Com um uníssono sonoro, o disco tem seu despertar. Sem enrolação ou uma introdução longa, a música rapidamente caminha para o primeiro verso. Nela, a voz tão característica de Dexter Holland logo se faz presente na melodia ainda em construção já com frases de impacto como “Like a shot without a warning, lies a life that’s left behind”. This is Not Utopia finalmente escancara seu caráter crítico e reflexivo a partir de um pré-refrão potente, baseado na métrica punk rock com guitarra distorcida, velocidade, grooves compassados e uma cadência enérgica. Nacionalismo cego, fake news, desmascaramento da política, falta de humanidade e a espera por uma mudança que tarda em chegar pautam o tema lírico da faixa. A canção ainda possui um refrão-chiclete que convida o ouvinte a cantar em união ao vocalista frases fortes e questionadoras como “The roots of America” e “You don’t matter anymore” em uma clara análise dos planos políticos que se pautam na pureza da sociedade ao mesmo tempo em que se esquece de dar atenção às necessidades da população. A busca por uma raiz inexistente faz com que o povo seja esquecido.
Pete Parada puxa a introdução da próxima faixa com golpes solitários e ardidos na caixa. Curiosamente, a faixa-título possui um quê de inovador. Afinal, ela já começa com algo que se pode chamar de refrão, pois frases acompanhadas de uma base rítmica acústica, cativante e até mesmo imersa em uma atmosfera latina já se fazem presentes no primeiro verso. Nessa estrutura, então, o pré-refrão é o responsável por levar o ouvinte de volta ao início da canção, ou seja, o refrão. Porém, diferente do refrão propriamente dito, o pré-refrão é baseado numa mistura rítmica de pop rock com pop punk tão atraente e sedutora que esse trecho da canção poderia tranquilamente ser considerado como um segundo refrão. Porém, por trás dessa melodia sedutoramente compassada, existe um lirismo crítico tal como foi feito na música anterior. Aqui na faixa-título, o ouvinte convive com frases como “But don’t be thinking we’re crazy When you see all the hell that we’re raising” e “Don’t be thinking we’re crazy, 'cause the truth is what we’re erasing”. Mas mais do que isso. No verso lírico “Hey Lincoln, how does your grave roll?”, Holland faz uma brincadeira tragicômica ao questionar como a cova ex-presidente dos EUA é abalada e remexida a partir de tudo o que está acontecendo no país. Musicalmente, ainda, a música possui a companhia de Jason 'Blackball' McLean, quem integra o backing vocal imprimindo uma noção amplificada de atração do público.
Em Behind Your Walls, a guitarra de Noodles já surge em um riff extremamente sedutor, mas que já indica uma melodia reflexiva e até mesmo melancólica. A melodia ganha corpo e grave quando a linha presente do baixo de Todd Morse integra a sonoridade. No entanto, essa mesma melodia que pareceu entrar em uma crescente paralisa e se torna minimalista. Apenas a guitarra base acompanhando a cadência vocal em um ritmo uníssono. E é bem o quesito lírico, mais estritamente o esqueleto da letra propriamente dito, que merece atenção redobrada. Afinal, ele não foi feito com base na rima perfeita, a mais utilizada nas composições de todos os gêneros, mas sim a partir da rima toante, aquela em que apenas as vogais proporcionam a noção da rima. No campo melódico e estrutural da música como um todo, ocorre a repetição da técnica utilizada na faixa-título. Mas existe uma diferença. O primeiro verso é também o refrão da canção, mas na introdução ele se encontra com uma melodia diferente daquela em que se pronuncia na segunda estrofe. Nela, as frases cantadas são acompanhadas de um instrumental mais vivo e de um backing vocal que repete palavras, dando um ar dramático à harmonia. Fora a faixa-título, Behind Your Walls é indiscutivelmente outro importante single de Let The Bat Times Roll.
Com uma melodia semelhante àquela empregada pelos Ramones em I Wanna Be Sedated, Army of One se apresenta ao público. Apresentando em sua harmonia referências à sonoridade da música espanhola, a faixa possui uma cadência levemente acelerada e, curiosamente, uma ponte cujo ritmo é mais atraente do que aquele do próprio refrão. Além disso, é também na ponte onde a letra, cantada em uma cadência mais acelerada, possui mais frases de impacto e incentivo.
A introdução fica, novamente, a cargo de Parada. Com grooves acelerados e repicados, a bateria sugere uma música enérgica, excitante e, até mesmo, estimulante. A entrada da guitarra aumenta essa percepção, pois as notas por ela proferidas são distorcidas e em tons mais alegres. Quando o primeiro verso finalmente se faz presente, a sonoridade fica completa e com corpo graças às linhas groovadas do baixo. Por isso, aquela previsão de uma música cativante se concretiza. Mas, existe uma ressalva. Melodicamente, Breaking These Bones é, de fato, melódica, enérgica e harmônica, mas liricamente, ela traz uma análise forte e atual. Recheada de metáforas, as frases entoadas por Holland escancaram a realidade do luto vivida por milhares de pessoas durante a pandemia. Nunca antes as lágrimas assumiram um peso tão significativo. De toda a forma, a união da reflexão com a melodia faz da presente faixa mais um single de peso do álbum.
Um groove completo entre bateria e baixo dão as primeiras cores. Com as típicas cadência e melodia das músicas assinadas pelo The Offspring, Coming For You é aquela faixa que, não fosse o lirismo crítico, seria perfeitamente mais uma faixa pop punk mais do mesmo ao catálogo do grupo. Porém, expondo o cansaço social frente a pandemia e a realidade por ela instaurada, o lirismo torna a música um pop punk temperado com novos ingredientes. Para fechar o escopo harmônico melódico da composição, a estrutura conta, ainda, com um solo de guitarra limpo e sem distorção que dá um toque de frescor à conjuntura instrumental.
Baixo de linhas groovadas e solitárias e com temática funk dá passagem para uma melodia festiva, alegre e regada em instrumentos de sopro. Nela, além do funk presente na base rítmica, o instrumental oferece uma mistura de pop punk com blues. We Never Have Sex Anymore oferece uma temática teatral que, com a adição do lirismo, proporciona um ambiente tragicômico superior àquele instituído na faixa-título. Abordando o aumento da convivência entre pares, uma das mudanças causadas pela pandemia, a letra funciona como um desabafo em primeira pessoa do personagem principal dessa história. Se queixando, principalmente, da falta de sexo, esse mesmo personagem se questiona se, com o aumento da convivência, o amor entre ele e seu par acabou. No âmbito instrumental, a faixa possui a composição mais complexa. Afinal, Jason Powell e Eric Marbauch empregaram, respectivamente, linhas de clarinete e saxofone, e trombone que entregaram até mesmo ares jazz à melodia. Com solo de domínio do trompete de Phil Jordan, a canção tem uma crescente animadora que conta, ainda, com uma participação mais ativa do piano. Se fosse possível nomear dessa forma, We Never Have Sex Anymore seria o ‘single instrumental’ de Let The Bad Times Roll. Em todo o caso, a faixa tem grande potencial de single lado b.
Em seguida, uma nova interpretação de um dos fragmentos icônicos de In the Hall of Mountain King, obra clássica do compositor norueguês Edvard Grieg. Começando apenas com a guitarra em riff grave, a roupagem do The Offspring para a canção acaba recebendo o chimbal para a contagem do tempo e, em seguida, o baixo. Progressivamente, In The Hall Of The Montain King vai aumentando a velocidade e, consequentemente, ganhando ares punks graças às linhas da bateria.
Acelerada, áspera, punk. Com um lirismo misturando o desespero frente o incerto fim da pandemia e o aparente aumento de casos de pessoas drogadas nos EUA, especialmente, a música serve quase como uma mensagem de autoajuda sobre a realidade de quem abusa de substâncias ilícitas. Mas tal como fazia Chorão em suas diversas letras do Charlie Brown Jr., Holland se utiliza de uma linguagem de igual para igual, sem se vangloriar ou menosprezar. É um homem experiente falando para uma criança como é a realidade de quem usa drogas. Essa é apenas a ponta do iceberg da letra de The Opioid Diaries. Muito mais pode ser visto em suas entrelinhas.
Desesperada. Rápida sem chance de respiro. Hassan Chop é uma canção em que Holland aborda o contra-ataque guerrilheiro, a propagação de uma fé cega de que Deus oferecerá alento para aqueles que derem a vida em seu nome. De alguma forma, a música é um retrato fidedigno da realidade dos terroristas do Oriente Médio e dos homens-bomba.
Uma pausa drástica na aceleração. Os corações demoram para diminuírem os batimentos e assumirem um ritmo mais lento. A respiração tarda em recuperar o controle. Na 11ª colocação de Let The Bad Times Roll, o The Offspring oferece uma nova roupagem para Gone Away, single de 1997 retirado de Ixnay on the Hombre, quarto álbum de estúdio do grupo. Nela, não há bateria, guitarra ou mesmo baixo. A canção é majoritariamente minimalista, baseada apenas na métrica voz e piano, aqui impresso por Alan Chang. Porém, a noção de dramaticidade aumenta com a inserção de notas de violino por meio do sound designer Dave Pierce.
Lullaby. Como o próprio nome sugere, a saideira do disco é uma música de ninar, mas uma música de ninar remixada. Afinal, a letra se baseia no refrão da faixa-título executado em uma velocidade extremamente lenta. Junto à voz, uma guitarra em notas tristes, repetitivas e com ares transcendentais se faz presente na melodia dessa música que tem seu fim executado tal como uma brisa, uma jorrada de vento repentina.
Apesar de parecer festivo e fanfarrão, Let The Bad Times Roll é um disco crítico, reflexivo e analítico. Pode até mesmo ser considerado irmão de Days Go By, seu antecessor. Afinal, ambos fazem análises de um momento ou detalhe social. Enquanto o primeiro avalia majoritariamente a relação com o tempo e a velhice, o segundo é mais urgente, atual.
Tendo todas as letras compostas única e exclusivamente por Dexter Holland, o 10º álbum de estúdio do The Offspring tem um caráter maduro. Mas uma maturidade que muito pouco se assemelha com aquela apresentada em The Battle at Garden’s Gate, o recém-lançado segundo álbum de estúdio do Greta Van Fleet.
De outro lado, Let The Bad Times Roll se une ao rol de lançamentos que abordam temas atuais que não somente a pandemia. Além do álbum do Greta Van Fleet, esse grupo é composto por World Decay 19, do Sacrifix e In Another World, do Cheap Trick.
E como importante detalhe na soma dessa imersão na atualidade, o The Offspring retratou, em sua arte de capa, nada mais nada menos do que a relação com a morte. Para isso, o grupo se baseou na forma como a população mexicana lida com eventos como funerais e despedidas. Afinal, a capa do álbum apresenta uma mulher vestida em típicos trajes mexicanos e com a maquiagem também típica da festividade conhecida como Dia dos Mortos.
Claro que apesar de retratar temas mais sérios, o álbum manteve, graças à produção e mixagem de Bob Rock a assinatura sonora tão característica do The Offspring. Junto do grupo desde 2008, quando assumiu a produção do álbum Rise and Fall, Rage and Grace, Rock manteve a essência pop punk que consagrou o conjunto californiano.
Além de pop punk, Let The Bad Times Roll é punk rock e blues. Curiosamente, Rock repetiu, no disco, a mesma estratégia feita em Days Go By, afinal, entre suas faixas existe uma música melodicamente mais bem estruturada e cheia de elementos inéditos na estética sonora do disco. We Never Have Sex Anymore é tão ousada e diferente quanto foi OC Guns.
Não apenas a pandemia e a consequente composição de letras mais sérias moldaram a realidade de Let The Bad Times Roll. Houve também a mudança de gravadora, tendo o grupo deixado a Columbia Records e se afiliado à Concord Records. E algo mais estrutural também aconteceu.
Greg K., o baixista original do The Offspring deixou a banda e foi substituído por Todd Morse. Apesar de ter integrado o lineup do grupo em um momento tão delicado, Morse imergiu harmonicamente à química já estruturada pela banda e somou positivamente. Afinal, suas bases funk entregaram uma malandragem a mais para a atmosfera jovial propagada pela banda.
Lançado em 16 de abril de 2021 via Concord Records, Let The Bad Times Roll apresenta um The Offspring festeiro, mas pensativo. Nunca antes o pop punk foi tão consciente e reflexivo.