NOTA DO CRÍTICO
Seis anos depois de Down The Road Wherever, o vocalista Mark Knopfler, conhecido por ser a voz do Dire Straits, anuncia um novo material de estúdio. Intitulado One Deep River, o material consiste no décimo álbum em carreira solo do escocês que, em 2024, chega aos 75 anos.
É como sentir o frescor do vento sob o seio da face e o cabelo valsar em sintonia com a sua melodia. O céu é de uma paisagem poente, com seus tons belamente místicos pintando o horizonte. A estrada está vazia em uma espécie de silêncio revigorante, mas ao mesmo tempo, excitante. A liberdade está disponível assim como a rodovia abre seu caminho com destino para o novo e o desconhecido. Esse é o cenário imagético promovido pela sincronia entre a guitarra de Richard Bennett e a bateria de Ian Thomas, instrumentos que promovem maciez e toques contagiantes de um torpor fluido e com flertes na estrutura reggae. Eis que Mark Knopfler surge fazendo sua guitarra se posicionar em destaque na melodia a partir de um riff calmo e aveludado em sua base blues adoravelmente swingada. Com sua voz grave de raspas de um agudo azedo, Knopfler começa a desenhar o conteúdo lírico, conforme a canção vai se maturando em meio à sua linearidade fresca em torno de seu swingado blues reggaedo. Two Pairs Of Hands, a partir dessa estruturação melódica, vem como uma espécie de reflexão, de pensamentos altos, de constatações feitos pelo próprio Mark Knopfler a respeito de si e de sua sabedoria para com o manejamento da guitarra. Não é apenas uma santificação da música como a primeira arte, mas a forma como ela faz Knopfler e todos os ouvintes ao redor do mundo se sentirem. Two Pairs Of Hands, portanto, é uma veneração à música, à guitarra e a forma como, juntas, fazem a noção do tempo se esvair.
É como o caminhar despretensioso no acostamento de uma rodovia à luminosidade de um Sol poente de primavera. Enquanto a grama alta valsa no compasso do vento, o aroma bucólico e interiorano vem como um perfume natural do ambiente. Esse cenário reconfortante nasce de maneira imagética aos olhos do ouvinte a partir de uma guitarra que vem com um riff aveludado em sua agudez adoravelmente folk. Apesar de estar em destaque, o instrumento é acompanhado por uma base desenhada por uma bateria que desfila um ritmo suave até a entrada do baixo de Glenn Worf. De corpo grave, mas ainda assim bojudo em suas pontualidades crescentes, é ele quem recebe um vocal de timbre grave e levemente nasal. É Knopfler dando a Ahead Of The Game uma amplitude à ambiência estética folk já introduzida anteriormente. Fresca e contagiante em sua linearidade, a canção parece dialogar sobre a experiência do próprio Knopfler em sair de casa em busca do sonho. Anos após cruzar a ponte do Rio Tyne em busca do desconhecido, já com marcas da idade e com uma vida bem experienciada, decide voltar às raízes, onde tudo começou. Um lugar que ele pode ser ele mesmo e, como o próprio nome da música sugere, poder ficar afrente do jogo, no domínio do próprio destino. Crescendo timidamente em harmonia durante a ponte, momento em que a sutil agudez do teclado de Jim Cox se faz presente na base sonora, Ahead Of The Game é sobre seguir os sonhos, mas sabendo a hora de voltar para casa.
A grama segue a valsa do vento, enquanto os primeiros sinais do Sol são vistos no horizonte além das montanhas. Esse clima de extrema serenidade é proporcionado por uma melodia calma, suave e densamente macia em sua levada folk quase acústica. Com direito às notas aromáticas e florais do piano sobrevoando a base sutilmente swingada da bateria, Smart Money conta com a guitarra lap steel de Greg Leisz como ingrediente a inserir uma tomada generosamente bucólica ao ambiente, o qual é visualizado pelo ouvinte como uma típica cidade interiorana dos Estados Unidos. Agradavelmente contagiante em sua simplicidade estética, Smart Money parece dialogar sobre as fases do sucesso, sobre como o dinheiro é uma espécie de estatuto da fama e como os holofotes são capazes de nortear as atenções das massas para com as figuras destacadas pelo showbiz.
É curioso. Afinal, somente a partir do da guitarra acústica, em seu riff truncado, o ouvinte consegue visualizar um alvorecer ensolarado e reenergizante. Surpreendida por um grito sensual, provocante e folgado da guitarra elétrica na transição entre introdução e o primeiro verso, a canção ganha generosas doses de swing com sua maciez estética e sua base adocicada e levemente ácida proporcionada pelo teclado. Conseguindo misturar swing e frescor por meio da fusão de hard rock, blues e folk, Scavengers Yard tem uma estrutura lírica embebida nas técnicas de storytelling por conquistar a atenção do ouvinte com seu enredo marcante. Como outra importante canção de One Deep River, Scavengers Yard traz inclusive requintes progressivos e uma experimentação de texturas interessantes que saem do veludo, transitam pelo torpor e atingem o enérgico em uma sincronia instrumental afiada e consistente. É com essa trilha sonora que Knopfler conta a história de um vendedor ganancioso de uma região do oeste. Um ambiente sem lei e sem governante onde a selvageria ruge e molda todas as relações interpessoais.
A comunhão entre violinos de John McCusker introduz uma valsa amaciadamente melancólica como um céu chuvoso em uma tarde de inverno. Com a guitarra acústica sobrevoando a camada superficial da melodia, algo tocante e lúcido é vislumbrado em meio às lágrimas propostas pelo início choroso e sofredor da sonoridade. De arquitetura tocante, aqui incluindo até mesmo a interpretação lírica inserida por Knopfler, Black Tie Jobs consegue transpirar amplos requintes de nostalgia ao apresentar um enredo de um casal que se separa em virtude do excesso de rigidez. Como a primeira balada oficial do álbum, Black Tie Jobs oferece uma perfeita e curiosa metáfora entre o traje black tie e o comportamento sério e rígido que ele incita em sua prole de seguidores. Um comportamento que, no enredo, pode ser crucial para a manutenção ou destruição de um relacionamento. Não é de se surpreender, portanto, que a melodia responda a essa incógnita ao se tornar melodramática conforme caminha para um fim suspirante.
As nuvens vão tomando outras tonalidades enquanto o escuro da noite vai, calmamente, se dissipando. Conforme o Sol vai surgindo no horizonte, sua luz branda responsável pelos primeiros sinais de claridade da manhã transformam o ambiente em um cenário místico e psicodélico. Tal cenário surge na mente do ouvinte graças ao coro de vozes femininas de Tamsin Topolski e Emma Topolski que sobrevoa o ambiente com uma suave doçura ácida. Fluindo para um ritmo ainda sereno, mas fresco em sua sinistres, a canção vai misturando elementos do folk com indie rock, conforme Knopfler vai contando a história verídica de uma gangue de irmãos envolvidos em um assalto mau-sucedido envolvendo quatro mortes no ano de 1923. Ainda assim, é interessante perceber como a sonoridade de Tunnel 13 vai suavizando a tragédia conforme vai assumindo silhuetas curiosamente mais célticas em seu tradicional folk. Assim, a canção se torna uma espécie de fábula medieval sobre dois homens do mundo do crime que encontraram um rápido e súbito fim de suas próprias atividades ilícitas.
Seu início é macio e sereno como o amornar da luz do Sol em um amanhecer primaveril. Com uma linearidade cuidadosamente delicada e aromática, a canção é adornada por uma cama de veludo proporcionada pelo teclado, o qual soa tão leve que é difícil de detectá-lo em meio aos outros elementos sonoros. É dessa maneira que Janine, uma canção que narra a transformação de uma cidade com o passar dos anos, tem qualidades nostálgicas enquanto transita entre passado e presente com um singelo ar de lamentação e até mesmo temor. Um temor pela modificação da aura tranquila de uma cidade pacata.
Seu início é fresco, macio e de uma profundidade densamente nostálgica. Em meio à base acústica, a guitarra lap steel se destaca, conferindo à sonoridade um clima agradavelmente havaiano em seu caráter praiano. Assim que um silêncio se faz presente comunicando o fim da introdução e, consequentemente, permitindo o início do primeiro verso, Knopfler surge com seu tom um tanto mais grave, enquanto a bateria vai delimitando o compasso rítmico macio. Se transformando em um produto contagiantemente folk, Watch Me Gone acaba transpirando, junto à nostalgia já detectada, uma espécie de melancolia amorosa que chega a ser tocante. É possível encontrar grande familiaridade de enredo entre a presente canção e Ahead Of The Game, mas, diferente da segunda, a primeira se deleita em suspiros de medo e insegurança, mas, principalmente, de gratidão. Watch Me Gone, portanto, é a despedida da infância e do bucólico, enquanto se dá ouvidos àquelas vozes que vêm de dentro do inconsciente indicando o caminho, o rumo, o destino a ser seguido. A partir dos versos tocantes “and the hopscotch traces, well, you can still see 'em here the chalk lines faded and unclear” e “time for me to disappear” é que o ouvinte tem a consciente e inevitável percepção de que a canção trata de ir atrás dos sonhos, de despedidas e de amadurecimento. De abandonar o ninho e seguir o próprio rumo. Uma grande balada de One Deep River.
Clarões rompem a escuridão da noite sem estardalhaço. Conforme a luz solar vai surgindo ao longe no horizonte, o cenário começa a evidenciar suas silhuetas em meio à penumbra. Uma delas se destaca enquanto se move lentamente. Na estrada de terra batida rente ao gramado do campo de extensão infinita, um homem caminha um tanto corcunda, mas de cabeça erguida e olhos fixos no além. Seu rosto é cansado, mas sua mente trabalha de forma incansável, lhe tirando qualquer possibilidade de relaxamento. Enganando a si mesmo, o andarilho cantarola no ritmo de seus passos, funcionando como o único som de todo o ambiente ainda em processo de despertar. De atmosfera curiosamente transcendental através dos sonares tilintantes proporcionados pelo sintetizador de Guy Fletcher, a voz de Knopfler se posiciona na dianteira melódica como o elemento a ganhar destaque absoluto. Dessa forma, assim como Tunnel 13, Sweeter Than The Rain acaba recebendo uma estética lírica fabulesca e céltica conforme seu enredo vai evidenciando uma história de culpa, maldade, estupro e superação da dor. É a chuva como remédio purificador de um passado impositivamente sujo e repugnante.
Seu início é gradativo. Serena em sua delicadeza tátil, a introdução é regida por uma simplicidade honesta e, de forma curiosa, linearmente harmônica. Nesse ínterim, o ouvinte consegue ser agraciado por súbitos e interessantemente confortáveis sensos de nostalgia. Tendo na guitarra o elemento de destaque em meio ao restante dos ingredientes sonoros, Before My Train Comes tem um forte gosto de despedida que é transpirado pela sua energia folk, a qual é diferente daquela experienciada nos enredos anteriores. De enredo semelhante ao de Ahead Of The Game e Watch Me Gone, a presente canção parece arregimentar, agora de maneira inquestionável, a dualidade de emoções sentida por Knopfler no momento da decisão pelo rumo de seu próprio futuro. O desconhecido e o medo. O familiar e o conforto. A inicial solidão e as presenças maternal e paternal como alicerces. Pelo verso “sad to be leaving for somewhere without a goodbye”, se vê um Knopfler calando, negando e censurando com todas as suas forças as lágrimas da despedida como uma autodefesa da dor da partida, a qual poderia culminar em um súbito senso de desistência.
O cenário é chuvoso e monocromático em seu tom acinzentado. Ainda que delicada e sutil, a melodia introdutória não esconde a essência melancólica presente na introdução. Não é de se espantar que, em meio à linearidade estética, exista requintes táteis de serenidade instrumental de forma a ter, no teclado, aquele elemento a oferecer compaixão e um abraço alentador. De tomada reflexiva e lamentadora, This One’s Not Going To End Well parece relatar o início da balbúrdia, do caos, da anarquia e de uma espécie de levante dissincrônico rumo a lugar nenhum, mas obedecendo aos comandos dos debochados, dos cínicos e sátiros.
Macia, tocante, melódica, transcendental. Gentil em sua simplicidade educada, a introdução não apenas traz o blues como mote melódico, mas oferece um senso desmedido de bem-estar que contagia o ouvinte em grandes doses de um agradável torpor. Interessante é perceber, conforme a canção vai evoluindo, que o cenário que se tem pode ser multiplicado, sendo desde o último toque de mãos em uma despedida definitiva quanto uma paisagem pura e natural do Sol se escondendo atrás das colinas e deixando que as estrelas comecem a mostrar seus brilhos e iluminando delicadamente o anoitecer. O tocante citado anteriormente, vai se tornando mais presente conforme a guitarra vai explorando seu veludo em sincronia com as backing vocals, união essa que constrói uma harmonia de aroma floral e extrema sutileza. De cadência melódica lenta propositadamente para capturar os corações do ouvinte, que se percebem com os olhos mareados e completamente arrepiados pela sensibilidade sonora explorada na canção. É assim que a faixa-título se apresenta: como uma espécie de mantra, uma prece, um diálogo com um indivíduo desligado de seu corpo terreno e que agora se torna onipresente. A faixa-título é como um agradecimento, uma reverência ao legado de um artista cujas músicas continuarão ressoando mundo afora pela eternidade.
É um material clássico. Capaz de misturar, de maneira equilibrada, experimentação e tradicionalismo, mas sem perder a mão da complexidade associada à simplicidade de sua coesão melódico-sensitiva e de sua consistência estrutural. One Deep River vem como um material que, entre narrativas autobiográficas, traz um Mark Knopfler se reencontrando com um passado de emoções auto-reprimidas que, agora, finalmente, podem ser devidamente sentidas.
Cheio de charme, o álbum desfila delicadeza e sensibilidade por meio de melodias que transitam livremente entre complexidade e linearidade. Uma sonoridade de elementos tão distintos que pode capturar o ouvinte tanto pelo coração quanto pelo ouvido por meio de suas texturas abrangentes.
Do veludo ao ácido. Do torpor ao racional. Das idas e vindas entre passado e presente. Refinado em sua totalidade, One Deep River não é apenas repleto de texturas sonoras proporcionadas pela inserção de diferentes gêneros musicais na receita melódica. Ele é um material em que a guitarra é a estrela e é ela quem possui densas e refinadas camadas que se misturam entre as delicadas ambiências proporcionadas pelos outros elementos sonoros.
Profundo em seus lirismos que dialogam com um ar tocante sobre despedidas, tal como acontece em faixas como Watch Me Gone e Before My Train Comes, o álbum também se emaranha entre ambiências de folk céltico como em Tunnel 13 e Sweeter Than The Rain. Two Pairs Of Hands, Ahead Of The Game, Janine e a faixa-título fecham a lista das canções de destaque do álbum.
Esse último grupo se deve pelo seu nível de contágio, nostalgia, sensibilidade e grandeza harmônica. Quesitos que tornam One Deep River não apenas charmoso, mas fino, elegante e bem estruturado entre suas transições de texturas folks e blues com toques transcendentais. E essa foi uma importante ação de Fletcher.
O músico, também responsável pela parte de mixagem e, ao lado de Knopfler, da produção, fez com que o álbum soasse maduro, amplo, delicado e imersivo em suas propostas líricas e sensitivas. Por meio de sua atividade na área da engenharia, cada instrumento pode ser agraciado e cada melisma sonoro pode ser detectado, permitindo ao ouvinte uma profusão de sensações e aromas.
Lançado em 12 de abril de 2024 via EMI, One Deep River é um material com lirismos profundos e autobiográficos. De melodias delicadas, charmosas e finas. Um produto que cativa pela sua simplicidade estética convertida em precisão e consistência, que sabe dialogar com as emoções do passado e do presente. É em One Deep River que Mark Knopfler, finalmente, se permitiu sentir o que há muito tempo escondeu.