NOTA DO CRÍTICO
Criado em 1957 pelo psiquiatra Humpry Osmond, o termo psicodelia se refere, exclusivamente, à manifestação do espírito. O punk, por sua vez, vem dos anos 70 como uma tentativa de reavivar o rock de 1950 e 1960. É comum de ver esse subgênero fundido com estilos como pop e o progressivo. Mas com bandas como Slift, Oh Sees e Jill Lorean, o psicodelismo se une ao punk. E dessa vertente também vem Shirushi, o álbum de estreia do grupo canadense Teke::Teke.
A luz da manhã vem surgindo em meio à neblina do anoitecer. O calor morno começa a ser sentido e trazido a partir das notas singelas e melódicas da shinobue de Yuki Isami que perambulam pelo ambiente como o canto dos pássaros em uma sincronia sinfônica. Um dos pássaros começa a tomar, calmamente, a dianteira. É Serge Nakauchi Pelletier pincelando o som do amanhecer com sua guitarra guiada pelo pedal wah-wah. Essa conjuntura de elementos trafega, suavemente, o ouvinte para o oriente, mais especificamente o Japão e a China. Ventos de um frescor sensorial são apresentados através do tilintar dos pratos da bateria de Ian Lettre, instrumento esse que coloca uma pressão sutil e momentânea que serve para aumentar as texturas de Kala Kala, uma música que evolui para uma sonoridade groovada e de riffs ásperos que se confundem em meio aos sopros doces e macios da flauta. Por essas razões, a faixa de abertura do álbum é uma completa experiência sensorial que transita ainda pelo progressivo. Isso se deve à extensa introdução, que se encerra pouco além da metade da duração da faixa, momento em que o ouvinte é finalmente apresentado à Maya Kuroki e seu timbre vocal agudo.
Uma explosão rítmica se forma. A sonoridade dos dedilhados correntes do shamisen se funde com a guitarra, o shinobute e a bateria. Depois do punch, o riff da guitarra de Hidetaka Yoneyama apresenta uma ambientação punk na ponte entre a introdução e o primeiro verso que dá uma maior apimentada na melodia. Em seguida, a bateria tem um momento de solo em que transita, na sua frase, pelas atmosferas funk e soul. Conforme a sonoridade vai tendo uma crescente, a guitarra invade com uma estrutura linear cuja sonoridade se assemelha com aquela criada por Taboo em Pomp it, single do The Black Eyed Peas, e Etienne Lebel imprime, com o trombone, notas pontuais, mas que proporcionam uma maciez e um leve toque de humor que transformam a harmonia de Yoru Ni. Mais do que Kala Kala, a presente faixa possui uma exaltação maior ao punk, mas um punk que, por conta do trombone, proporciona inclinação para a música mexicana. Por essa razão, Yoru Ni anda de mãos dadas com OC Guns e We Never Have Sex Anymore, ambas canções do The Offspring.
As notas do teclado deixam o ouvinte apreensivo. Apesar de sutilmente aveludadas e macias, elas possuem um tom sinistro que oferecem um perigo espalhado pelo ar. Conforme a canção vai se revelando, o trombone e a shinobue vão marcando território em Dobugawa e proporcionando uma melodia de igual estrutura àquelas empregadas para apresentar vilões em desenhos animados devido ao seu suspense característico. Eis que Maya entra em cena com uma interpretação lírica que mistura sensualidade com uma ampliação do receio e do medo alimentados pelo imaginário do ouvinte através da melodia.
Um pop punk se instaura a partir da introdução. A melodia que se forma se assemelha de maneira acentuada com aquela criada em Blood, Sex and Boose, single do Green Day. O ritmo se mostra mais acelerado, com um compasso mais acentuado e com um corpo mais suculento. Isso graças às linhas do baixo de Mishka Stein, as quais apresentam um groove não tão pesado, mas o suficiente para criar cadência. O primeiro verso, por sua vez, se mostra sujo, caótico até, mas com uma base que em muito tem de influência dos Ramones. Maya com voz rasgada e mais grave, trombone sobrevoando a sonoridade e coros no refrão fazem de Barbara um importante single de Shirushi.
Guitarra e teclado criam uma sinergia que proporciona uma sonoridade gutural, que beira até mesmo o gótico no instrumental introdutório. O shinobue e o shamisen dão um ar sinistro, mas ao mesmo tempo constroem uma expectativa crescente no ouvinte. Inebriante e até, de certa forma, alucinógena, conforme a sinergia da guitarra e do teclado segue mantendo uma linearidade, o ouvinte se vê até mesmo hipnotizado por essa melodia que acaba dando ares de mantra à Kizashi.
Noções folclóricas, flertes com o ska e com o rock alternativo são características que abraçam a introdução de Kaminari, uma música que faz o ouvinte recordar até mesmo os sambas brasileiros dos anos 50 e 60. Com um grito de socorro proferido por uma nota angustiada da flauta, Maya se apresenta com um vocal baseado nas músicas árabe e marroquina e calcado nos seus melismas característicos. Sonoramente, Kaminari é de harmonicamente minimalista.
Um som épico se constrói. Em seguida, uma mistura inusitada de blues e synth-pop é formada e mantida durante toda a execução de Sarabande, uma música que ainda apresenta um flerte com o chiptune e uma dramaticidade latente que persiste desde a segunda estrofe até o encerramento total da faixa.
Estimulante, excitante de uma energia crescente. Os riffs de guitarra, mesmo que de maneira sutil, mostram que se nutrem do conhecimento do heavy metal, aquele mesmo estuado por Tommy Iommi e aplicado nas canções do Black Sabbath. De outro lado, assim como aconteceu em Kuroki, o Egito e a Arábia Saudita também se mostram muito bem representados pela melodia firmada em Meiku.
A base é blues, mas o instrumental é dramático e com uma sonoridade que em pouco compete com aquela típica do gênero. Tekagami é uma música que exala calmaria e tranquilidade tanto pela sua sonoridade quanto pelo vocal sussurrado de Maya. Quase como um looping, assim como aconteceu com Kala Kala a presente faixa é um cardápio cheio no que se refere à tangibilidade de texturas e sensações. Além disso, detalhes de uma bossa nova e de uma amplitude do teor melódico-dramático podem ainda ser percebidos na canção.
Três palavras definem Shirushi: originalidade, ousadia e experimentação. Dos gêneros mais presentes aos menos perceptíveis, a psicodelia, punk, rock alternativo, folk, o indie e o exoterismo formaram uma mistura excêntrica e que transborda em musicalidade intercontinental.
A psicodelia presente no disco é daquelas das mais puras, pois possui influência na sonoridade oriental. O punk, por sua vez, tem base na escola mais clássica da vertente estadunidense do gênero, que é a dos Ramones. Por isso e apesar de estar se lançando agora no mercado, a Teke::Teke pode muito bem ser considerada uma banda clássica de psych punk.
Da conjuntura sonora, o que mais chama a atenção é a forma como instrumentos japoneses como shinobue, taisho koto, koto e shamisen casaram bem com a sonoridade ríspida, acelerada e áspera do ocidente. A presença deles foi de um caráter fundamental para o estabelecimento de uma assinatura sonora da Teke::Teke. Afinal, eles estão presentes com certo destaque em todas as músicas.
Não por menos, as letras das canções são cantadas em japonês. Esse caráter oriental está muito bem representado na arte de capa. Assinada por Maya, ela possui ainda uma forte imersão no universo psicodélico. E aqui é até possível dizer que há uma inspiração nas obras do diretor cinematográfico Tim Burton, pois além de psicodélica a capa de Shirushi é ainda alucinógena e hipnotizante.
Lançado em 07 de maio de 2021 via Kill Rock Stars em parceria com Before Sunsire, Shirushi é um disco cheio de texturas e de sentidos. Pela imersão sonora oriental, dificilmente a Teke::Teke seria tida como banda canadense. Mas é aí que mora a graça: quando há músicos competentes e curiosos, não existem limites para experimentação.