NOTA DO CRÍTICO
Três anos depois do anúncio de Piano Reductions Vol. 2, um disco com 12 músicas de seu catálogo adaptadas ao piano por Miho Arai. Seis anos após a chegada de Modern Primitive, o trabalho tido como elo perdido entre Flex-Able e Passion And Warfare. Foi nesse intervalo que Steve Vai decidiu lançar Inviolate, seu 10º disco de estúdio.
Suspense, tensão, calafrios. Guiados pelo groove ondulado do baixo, sons eletrônicos vão fazendo a vez melódica. É então que, como o Sol que banha a atmosfera com seu calor ameno ao amanhecer, a guitarra de Steve Vai surge com um veludo sedutor que rompe o nervosismo propagado pelos sonares iniciais. Se sobressaindo perante uma base rítmica acústica feita por uma bateria de linhas minimalistas e sutilmente swingadas acompanhadas de cordas tensionadas do baixo, a guitarra consegue proporcionar ao ouvinte uma série de texturas diferenciadas entre si e uma ambiência mista de progressivo com um hard rock mais denso típico daquele propagado pela Europa. Ainda assim, é possível notar rastros mais amaciados que remetem ao som feito pelo Whitesnake. Em Teeth Of The Hydra existe, principalmente, uma identidade mística que abraça toda a composição, imputando pitadas de psicodelia em uma receita potente, swingada e entorpecida.
É verdade que existem diferenças e que elas são visíveis, mas também é verdade que em alguns micro instantes a melodia em construção pela guitarra de Steve Vai remete àquela presente na estrutura rítmica inicial de Zero, single do Dr. Sin. Macia, swingada e com pitadas explosivas, o riff de tom sutilmente áspero e vivo da guitarra é quem faz a função de guia da cadência sonora da faixa e que, consequentemente, pede a companhia de instrumentos que entendam sua necessidade. A bateria e o baixo surgem, portanto, imprimindo mais pressão e swing ao hard rock progressivo de Zeus In Chains, uma faixa de ambiência semelhante às composições do Dream Theater por conta do refrão explosivo de base inteiramente progressiva que recebe grande participação do teclado de Dave Rosenthal. É no solo, porém, que Zeus In Chains imerge sobre uma melodia mais obscura cujas densidade e pressão que muito se devem à desenvoltura de Vinny Colaiuta na bateria.
O chimbal surge com uma contagem de tempo acelerada. É quando uma sujeira intensa e swingada de roupagem inteiramente grunge toma conta do espectro rítmico. É a guitarra de Vai sobressaindo entre as camadas sonoras enquanto é acompanhada por um baixo de groove grave e encorpado que funciona como um personagem que obsedia a desenvoltura do protagonista, que claramente se vê perdido e com pitadas de desespero. Trazendo um refrão de estrutura dramática e recheado de um suspense amedrontador, Little Pretty ainda evidencia ao ouvinte um caminho obscuro em que as guitarras se unem em riffs graves unidas a golpes de bumbo duplo que intensificam o peso melódico que acaba mergulhando no universo do rock progressivo e recebe sobrevoos de um teclado que entrega doçuras contrastantes com a aspereza sonora enquanto que o solo oferece aspectos de uma psicodelia embriagante. Curioso notar que, em meio à experimentação instrumental, Vai constrói um solo finalista cuja melodia em alguns momentos remete à estrutura rítmica do refrão de músicas como Decisão Final, single do LS Jack, e Bubbly, single de Colbie Caillat.
Com um swing tropical atraente e uma base melódica reggae, a guitarra vem oferecendo uma paisagem amplamente ensolarada e alegre. Enquanto isso, a bateria de Terry Bozzio vai desenhando uma base bluesada e linear cuja cadência acelerada imprime um compasso repleto de uma fluidez embriagante acompanhada de um baixo grave e preciso. Com característica de jam session, Candlepower exala uma intensa atmosfera de improvisação.
Uma atmosfera folk adocicada é misturada à receita da sonoridade em formação a partir do riff acústico vindo do violão. Enquanto Vai imputa wha-whas amaciados com sua guitarra, Apollo In Color assume uma crescente que explode em uma melodia completamente cenográfica. Nela, é como se o ouvinte se visse embaixo de uma camada de chuva fina caindo como véu de noiva enquanto a luz do Sol, ao ser refletida pelas gotículas de água, forma camadas flutuantes de um arco-íris de cores vivas pairando sobre o gramado úmido. Interessante notar aqui que, no refrão, a desenvoltura do baixo reflete a competência de Billy Sheehan pelo intenso e groovado dedilhar das cordas do instrumento. É nesse trecho da canção que, inclusive, gêneros como rock progressivo, rock psicodélico e até mesmo o jazz dividem espaços consideráveis na melodia, causando uma abrangência rítmica notável.
Uma roupagem mais bruta é oferecida e uma melodia que, curiosamente, possui respingos de sensualidade áspera. É então que a bateria surge de súbito com repiques intensos e crescentes que levam o ouvinte para uma introdução enérgica, excitante, elétrica e correspondentemente sexy que deságua em um verso metalizado, sujo e grave com base em uma roupagem que flerta com o grunge de maneira a remeter à sonoridade de grupos como Rev Theory e The Mayfield Four, aqui com uma menção especial à sua respectiva faixa Loose Cannon. Mas é emocionante a forma como a melodia de Avalancha caminha em direção à redenção, à luz e exaustivamente tenta se desvencilhar da escuridão. É nesse momento que o power metal entra em cena com uma estrutura macia, mas ao mesmo tempo regada a pedais duplos que imprimem uma suave aceleração ao compasso sonoro de Avalancha. Um single de fato enérgico, excitante e devidamente melódico de Inviolate.
O blues amanhece com força total. Ao fundo, um adocicado ácido é percebido em meio à intensa maciez melódica a partir das notas tímidas, mas presentes do teclado Hammond. Singela, aveludada, contagiante e embriagante, Greenish Blues é como um sentimento melancólico sendo vencido pela felicidade e alegria. É como a falsa satisfação de se manter na zona de conforto quando ela claramente incomoda. Mas é também como uma avalanche de insatisfações sendo expelidas para que o bem-estar prospere. Greenish Blues é uma faixa em que os protagonistas são os instrumentos de base cuja atenção especial vai para Rosenthal. Os solos de Vai são embriagantes, mas não se sobressaem em beleza ou excitação como aconteceu em músicas como Zeus In Chains, Little Pretty e Avalancha
Sem tempo do ouvinte respirar, a faixa surge como um rompante já com estrutura pronta, potente e consistente. Puxada pelo acelerado groove da bateria, ela se evidencia a partir de uma melodia progressiva que é agraciada por lampejos de uma luz solar poente proporcionada pelas notas do teclado. Knappsack se mostra um produto extremamente melódico durante toda sua execução, mas nada que a torne uma beldade. Porém, ela é uma música em que Vai tocou toda a camada da guitarra somente com a mão esquerda, pois a direita estava apoiada sob uma tipoia usada na recuperação de uma cirurgia feita pelo músico no ombro direito. Sabendo disso, nota-se a maestria, a competência e a desenvoltura máxima de Vai. Outro ponto interessante é que a canção foi nomeada em homenagem ao médico Thomas Knapp, que além de ter conduzido o procedimento cirúrgico, desenhou a tipoia usada pelo músico.
Um progressivo e psicodélico blues se evidencia ao sair de trás das rochas. Acompanhado de uma base inebriante e cativante, esse mesmo blues é pronunciado demasiadamente por uma guitarra que caminha entre o veludo e a acidez estridente, entre a doçura e uma agressividade sensual entorpecida. Apresentando uma boa e improvisada desenvoltura de Colaiuta, Sandman Cloud Mist é uma faixa de ambiência completamente transcendental e mística.
Um instrumental recheado de ambiências rítmicas diversas em cujas texturas conseguem ser notadamente palpáveis. Um instrumental que, por muitas vezes, soa como uma jam session guiada pelo simples e genuíno espírito da improvisação. Um instrumental ríspido, transcendental, místico, enérgico e melancólico. Isso é Inviolate.
Não apenas pela desenvoltura que Vai, no auge de seus 61 anos, consegue oferecer, mas o disco evoca competência e maestria também pela perspicácia do corpo musical recrutado por Vai, o qual se completa com nomes como Henrik Linder e Bryan Beller, os quais se dividem na função de baixista.
É assim que o virtuoso guitarrista caminha por entre bases rítmicas sólidas que vão do folk ao power metal, transitando, no meio dessa trilha, por subgêneros como jazz, rock progressivo, rock psicodélico, hard rock e o blues. Não por menos, a acidez e o swing são ingredientes muito presentes na receita de Inviolate.
Feito a partir da produção também assinada por Vai, o disco se concretiza como um material que exala liberdade criativa evidenciada por meio de uma madura estrutura de composição. Isso faz com que Inviolate seja repleta de músicas fortes, tais como Zeus In Chains, Little Pretty, Candlepower, Apollo In Color e Avalancha.
Lançado em 28 de janeiro de 2022 via Favored Nations, Inviolate é um instrumental amplo, competente, preciso e, principalmente, híbrido. Um disco em que o brilho de um se encaixa sobre o brilho de outros. Um disco em que não só os solos impressionam, mas também as próprias bases rítmicas oferecem viagens dos mais distintos destinos imagéticos.