NOTA DO CRÍTICO
Sete anos após o lançamento de Aurt, seu EP de estreia, o quarteto chileno Sobernot enfim anuncia seu segundo álbum de estúdio. Intitulado Destroy, o trabalho é o sucessor do disco ao vivo Live Pandemic MMXX (Live Pandemic Sessions) e o primeiro com conteúdo inédito desde Silent Conspiracy.
Um grito agridoce e rasgado entoa como ordem para que a melodia dê seu despertar. É então que Piero “Pyro” Ramirez entra desenhando um groove de bateria acelerado, repicado e que já mostra uma embrionária agressividade a ser maturada no desenvolver da melodia. Como os raios de Sol quentes queimando a pele, a distorção da guitarra de Pablo “Chespi” La’Ronde é ouvida despertando em meio ao caos percussivo. “Are You ready?”, pergunta César “Vaigor” Vigouroux ao dar passagem para que a sonoridade se pronuncie com sua maturidade áspera, bruta e violenta acompanhada por um sobrevoo ríspido vindo de um urro calcado no screamo. Com direito a notas palatáveis de azedume, No Mercy vai se emaranhando pela roupagem thrash metal enquanto o lirismo vai desenhando um cenário mórbido que trata de tortura, dor e resistência ao desconforto. Ao mesmo tempo, é um lirismo que parece trazer em suas entrelinhas uma crítica à falsidade presente nos versos “let me see your mangled body” e “what’s left of skin?”. No Mercy é uma canção caótica em essência que traz muita semelhança estética à sonoridade do Judas Priest.
Áspera, precisa, potente. Como o anoitecer tenebroso preenchido por uma luz lunar gélida e assombrosa, a melodia já se comunica com um suspense inegavelmente desconfortável graças ao sobrevoo quase extrassensorial da guitarra. Mesmo que esteja acima de uma base ríspida, o azedume que o instrumento exala ajuda a favorecer um embrionário caos que se forma quando a melodia escorrega para um thrash metal mais cadenciado. Tendo o baixo grave e de leve estridência de Joaquín "Yakls" Quezada como o ingrediente a introduzir precisão, o instrumental acaba ganhando ainda mais corpo e potência. Amadurecendo com notável explosão, Smoke Masters (Gimme My Money Back) é uma canção que, entre imersões amplamente metalizadas, é carregada de insatisfações tanto sociais quanto políticas. Que evidencia um comportamento regido em falsidade para conquistar interesses egoístas. Mas também é uma canção que põe em cheque a fé como um suporte hipnótico para conquistar os ouvidos e corações mais frágeis.
O som da distorção surge como um relâmpago cortando o céu. A guitarra então surge com seus olhos cerrados e sobrancelhas franzidas enquanto o chimbal estimula uma postura imponente com sua contagem de tempo pausada e levemente suja até seu silêncio súbito. Quando a bateria aparece em uma frase repicada e quebrada, a canção é invadida por uma melodia metalizada, mas com uma curiosa maciez que é notada em um lapso temporal até se dissipar e dar lugar a um uníssono grave entre bateria e baixo que dá passagem para o retorno do sabor azedo. Death By Cunnilingus é uma faixa que mistura libido e luxúria sob um enredo de base mórbida ditado por um vocal rasgado de maneira a lembrar o timbre marcante de James Hetfield.
A guitarra vem com um riff grave, mas curiosamente em cadência mais controlada. Seguindo esse mesmo preceito, bateria e baixo surgem em seguida desenhando uma base melódica fluída e contagiante no compasso 4x4. Interessante aqui é notar que, mesmo sem explosão, a frase comunica ao ouvinte uma embrionária imersão no campo rítmico do hard rock, algo que se confirma com a maturidade melódica. Mesmo demasiadamente grave, é possível de se perceber o swing perambulando por um aroma ardentemente metalizado. Não por acaso, até mesmo a cadência lírica se mostra mais solta e provocante, mesmo que traga intensas críticas ao presente. Tyrant Machine dialoga principalmente sobre legado, um conceito que avalia as ações passadas e o que elas refletiram no agora. Colocando a humanidade em cheque para que ela reflita de maneira abrangente sobre o tempo, Tyrant Machine defende a ideia de que a comunidade global é merecedora do caos atualmente vivido porque isso é fruto do que foi plantado. É como um efeito dominó que hoje se voltou àquele que antes era o predador e hoje assume a carapuça de caça.
O som do vento sugere uma temperatura fria e de conotação melancólica, algo que é engrandecido pelas notas levemente sofridas e limpas da guitarra que vão lançando lágrimas tímidas pelo ambiente. As nuvens são densas e cinzas se movimentando rápido em harmonia com a valsa da brisa que sopra a memória. Quando o som agudo e tilintante do carrilhão surge, a canção flui para um primeiro verso de melodia densa, mas ainda assim melancólica. Nesse ínterim e mudando até mesmo sua postura, Vigoroux entra com um vocal mais empostado que dá ao ouvinte a capacidade de degustar mais facilmente de outras facetas de seu timbre. Macia, contida e concisa, a sonoridade de Across The Toxic Dew cria até mesmo uma semelhança com aquela de Halo On Fire, single do Metallica. Diferente da faixa do grupo californiano, Across The Toxic Dew é uma música que, sob um enredo romanceado, aborda o amor traído, um tema que, a primeira vista, foge do escopo lírico do Sobernot. No entanto, a faixa traz, em suas entrelinhas, uma visão desapontada e ferida sobre a sociedade como um todo, mas também em relação à política. Mesmo com uma surpreendente imersão em um hard rock de caráter europeu, Across The Toxic Dew assume o posto de uma pseudo balada chorosa e dolorida de Destroy.
Sínica e com uma agressividade embrionária, a melodia vem com um punch ondulante que foge bem da calmaria melancólica que permeou grande parte de Across The Toxic Dew. Ainda assim, a presente faixa mantém a estrutura de uma sonoridade mais digerível sem perder a essência áspera. Com influências nítidas de Metallica e System Of A Down, I Recommend Amputation é uma canção que mistura elementos de uma literatura bíblica com outras crenças religiosas sobre o lugar que os malfeitores vão após a morte. Preenchido por uma sede insaciável de governança a qualquer custo, o personagem se vê em um ambiente em que, para liderar, é preciso mais que desejo e masoquismo, é preciso sangue, uma boa metáfora para entrega. Com contágio metalizado, I Recommend Amputation se coloca ao lado da faixa anterior no time de singles do álbum.
Retomando aos poucos a brutalidade, a canção traz uma essência trevosa que se perde entre a base metalicamente azeda que proporciona um blend equilibrado de death metal e thrash metal. De cadência mais acelerada, a canção soa enérgica em sua aspereza e textura pontiaguda, a qual é envolvida em uma trovoada de pedais duplos que dão passagem para uma divisão melódica mais calcada no campo do metal. De baixo necessário para dar o corpo do punch, Servants Of The Yellow King se apoia em uma narrativa feudalizada que mistura questões religiosas e satanismo ao abordar a adoração por figuras malévolas. Guardadas as devidas proporções, Servants Of The Yellow King parece vir imbuída de uma crítica afiada à adoração falsamente mitológica da figura de Bolsonaro.
A caixa da bateria ressoa em intervalos curtos de tempo divididas por golpes duplos do bumbo que lhe conferem uma ligeira aceleração. Quando a distorção vem bojuda, a melodia deságua em uma mecânica áspera, acelerada, rígida, bruta e suja. Enquanto um urro gutural ecoa de súbito sob a sonoridade em construção, Nebulosa, densa e sutilmente sombria. Enquanto chamas de um vermelho e azul intensas se elevam pela atmosfera, é possível que o ouvinte se veja rodeado por vários seres onipresentes de olhares debochados, cínicos e maliciosos em sua direção. Enquanto o suor gelado escorre pela nuca, o espectador se depara com um lirismo de aparente crítica à má-fé. Contudo, o que amadurece é uma reflexão ardida sobre a forma como as pessoas lidam com a religião e seus preceitos, e, do outro lado, a maneira que certas vertentes religiosas encontram de recrutar mais seguidores. Isso é The Second Comming.
O repique da bateria puxa uma melodia macia, mas azeda em sua essência. De agressividade séria e mais dolorosa, a canção se apresenta com uma raiva evidente no olhar. Nesse ínterim, o ouvinte se percebe imerso na aceleração enérgica de Killer Winter enquanto tenta digerir um lirismo que trata, sob a metáfora do anjo caído, de alguém que representa todas as mazelas de uma sociedade atual refém da insegurança, da tristeza e de um intenso senso de desolamento. Uma ótima homenagem ao Psicosis.
Com uma pressão melódica e metalizada, a nova canção se apresenta. Rápida como um susto, ela entra em uma espécie de vácuo para então submergir em uma atmosfera que, puxada de maneira cadenciada pela caixa e pelo baixo que flerta com a introdução de Duff McKagan em Sucker Train Blues, single do Velvet Revolver, a canção entra em uma maciez áspera que contagia o ouvinte. Assim como I Recommend Amputation, a faixa-título é abraçada por uma estrutura que lhe confere o título de single de Destroy. Como uma canção que mescla críticas a um comportamento personalista e esnobe com um demasiado senso de insegurança intrincado à baixa autoestima. Ao mesmo tempo, a faixa parece soar como um convite estimulante para um levante contra o sistema.
Vendendo uma imagem brutal, ríspida, agressiva e azeda, Destroy é um álbum que tenta trazer vertentes mais densas do metal para uma região ritmicamente miscigenada. Com maturidade e pressão, o produto apresenta um thrash metal puramente metalizado que exala diferentes aromas e texturas.
Desde o azedume à maciez, o álbum consegue chocar e confortar, machucar e estimular. Em um mesmo material, o ouvinte consegue transitar de diálogos intrinsecamente religiosos com outros de puras análises socio-comportamentais e sociopolíticas. Ambas as narrativas possuem o mesmo tom ácido, ainda que pinceladas com um ligeiro espaço para respiro.
Mesmo sendo marcado por uma base thrash metal, os chilenos do Sobernot fazem de Destroy uma miscelânea de subgêneros ao incluir, no mesmo ambiente, death metal, thrash metal, metal e hard rock. Tudo sob um tom sombrio, maquiavélico, sínico e até mesmo masoquista.
Para alcançar tal resultado, o quarteto teve auxílio de Franco Gabelo, responsável pela mixagem. Foi ele o responsável por fazer a melodia soar brutal, com peso evidente e uma maturidade acima da média. Por sua vez, Gabelo, ao lado do Sobernot, sintetizou tudo o que Destroy deveria comunicar: uma agressividade áspera e desmedida que dialoga com firmeza e consciência sobre sociedade, política e religião.
Fechando o escopo de Destroy vem a arte de capa. Assinada por Sandeev Reehal, ela é ambientada em uma paisagem intergaláctica em que os integrantes do Sobernot assumem formas de um misto de zumbi e ciborgue enquanto reverenciam a figura dilacerada de Jesus Cristo sendo enrolada por uma cascavel. Tal imagem, que se apresenta em ótimo gráfico e em tons mais frios, representa a crítica ao cinismo, à falsidade e ao hipnotismo religioso que o álbum tanto prega.
Lançado em 07 de julho de 2022 de maneira independente, Destroy é um produto latino bruto, ríspido, azedo, metalizado e doloroso. É um álbum que critica o principal pilar que sustenta uma comunidade: a fé, a política e o comportamento social. Não por menos, o ouvinte deve ouví-lo despido do conservadorismo moral propapado por uma sociedade falsamente laica.