NOTA DO CRÍTICO
Los Angeles. Um bar. Esposas. Festas com jam sessions. Esses foram os ingredientes que fizeram surgir a união entre o hard rock e o heavy metal, Estados Unidos e Inglaterra. Richie Kotzen, nome que já transitou em bandas como Mr. Big e The Winery Dogs, agora se une a Adrian Smith, do Iron Maiden, no projeto Smith/Kotzen cujo álbum de estreia recebe a mesma nomenclatura.
Um suspiro ácido. De repente, a atmosfera é tomada por um caminhar de escalas melódico que, logo, é acompanhado por uma frase quebrada de bateria que leva, de fato à introdução de Taking My Chances. As linhas que seguem, são regadas em um groove extremamente contagiante que mistura agressividade com sensualidade. Eis que entra em cena uma voz fina e afinada. É Adrian Smith ocupando, também, a função de vocalista. Curiosamente, o início do verso de ar não entrega destaque às estruturas vocais, mas, sim, para a arquitetura do baixo de Richie Kotzen, a qual se resume em uma linha simples, mas de um groove excepcional. É interessante notar que o pré-refrão possui tanta força harmônica e de atração quanto o próprio refrão, que se resume na expansão melódica em cuja sonoridade se pronuncia macia, mas sem deixar aquele swing com flerte na rebeldia, algo tão característico do hard rock.
Golpes de bateria extravasam uma energia acumulada. A guitarra que segue constrói uma sonoridade inebriante que possui groove, mas um groove com força consideravelmente menor àquele apresentado na faixa anterior. Apesar disso, Running, a primeira música gravada para Smith/Kotzen possui uma sensualidade latente em sua harmonia, algo que permeia a perversão, mas com um superego afiado. O que tanto Running e Taking My Chances se equiparam é na obtenção de um refrão de melodia extasiante e regado em musicalidade. Comandado por Kotzen nos vocais, o trecho da canção carrega, além de um tempero que levanta a energia harmônica, frases de impacto como “But in the end I guess I’m running from myself, so I can feel alive”, que se fixam com uma facilidade estonteante na mente do ouvinte.
Os pelos do corpo se arrepiam somente com os primeiros segundos de sonoridade. Assumindo tons acústicos, a guitarra base é acompanhada por um baixo de linha extremamente curta e simples, mas extremamente marcante. A guitarra solo então surge em meio a esse ambiente como um bocejo de despertar. É fato que a introdução de Scars é carregada por uma energia sinistra e até sombria, mas ela oferece uma expectativa devastadora por saber os próximos passos da canção. E eles são de uma crescente sonora arrepiante. Dando início ao verso de ar, o baixo, assim como em Taking My Chances, assume uma estrutura simples, mas de um groove amplo. Ele dá passagem para um Smith de lirismo visceral, totalmente entregue e sentimental. O conteúdo da letra pede essa energia, afinal, ele carrega uma reflexão sobre a fragilidade, a insegurança e a incerteza da humanidade que podem ser percebidas em versos como “I'm alone on an endless road looking for a sign”. Uma breve ponte instrumental baseada num blues groovado e sombrio é ampliam esse ambiente dramático que, após outro verso, fazem com que as características de entrega, visceralidade e sentimentalismo ganhem força com a entrada do refrão comandado pela voz igualmente potente de Kotzen. Assim como fizeram em Running, em Scars Smith e Kotzen assumem, com ainda mais potencia, o esquema Vedder/Cornell, o qual se baseia em versos de vocal sentimental majoritariamente suave com refrões de um vocal preciso, potente, visceral e de uma entrega anestesiante. Por esses detalhes oferecidos, Scars é, sem dúvida, o single de maior poder e musicalidade de Smith/Kotzen.
Swing e sensualidade se fazem presentes na introdução de Some People em uma estrutura que se baseia na forma mais clássica do hard rock. Nela, a guitarra solo grita em um refrão de arquitetura simples, mas de grande atração. Acompanhando essa ambientação está um lirismo que aborda a depressão, a consequente falta de rumo e a presença de pessoas que sugam a energia e o ânimo de outras pessoas. No ápice da faixa, a letra adota uma estrutura-chiclete baseada na colocação de rimas esdrúxulas que ampliam a capacidade de contágio da melodia.
Se em Some People havia swing e sensualidade, em Glory Road esses ingredientes atingem o apogeu. Afinal, logo nos primeiros segundos da introdução se percebe um caráter sexual no riff da guitarra bastante penetrante que lembra aqueles riffs presentes em músicas do Whitesnake como Trouble is Your Middle Name. É uma sensualidade sem agressividade, que ecoa uma sonoridade aveludada, mas sedutora e de cores quentes. Possui, inclusive, a melhor comunicação entre as guitarras, afinal, enquanto a solo grita e se pronuncia como a mais bela e atraente, a base se coloca firme e responsável por entregar, ao fundo, o caráter propriamente sexual da faixa. Curiosamente, enquanto Smith adota um vocal rasgado que entra em acordo com a proposta da música por assumir um caráter sexual, o primeiro verso de ar possui uma estrutura que se assemelha àquela construída em Come Together, single do The Beatles.
Com uma agressividade superior à Glory Road, Solar Fire se apresenta potente e calcado em um hard rock de sabor mais salgado. Para dar esse paladar, a canção conta com uma dose em dobro de Iron Maiden. Afinal, nela Adrian Smith recebe seu companheiro de banda Nicko McBrain, quem assume as baquetas e cria frases repicadas que levantam a energia desde os instantes iniciais da faixa. E é justamente nesse momento que as linhas oferecidas pela guitarra base oferecem ao ouvinte a lembrança do riff icônico presente na introdução de Immigrant Song, single do Led Zeppelin. Mudando a disposição, a faixa coloca Kotzen e Smith dividindo os vocais nos versos de ar, o que possibilita intercalar as potencias de cada um em uma perfeita harmonia. Por essas razões, o que Solar Fire faz é colocar a energia do ouvinte no alto.
Sinistro e suspense. Essas são características que se fazem presentes no despertar de You Don’t Know Me, uma música de groove áspero, mas de uma dramaticidade latente entregue, principalmente, pela guitarra base. Com o caminhar da melodia, a faixa se pronuncia como aquela que faltava em Smith/Kotzen: a balada melancólica.
Da melancolia, a harmonia convida o ouvinte a dar espaço à nostalgia. Afinal, é exatamente isso o que o riff macio da guitarra presente na introdução de I Wanna Stay oferece. Calcada no blues, a canção tem uma sonoridade que mistura tristeza e a própria nostalgia em uma melodia reconfortante e acalentadora. E nessa atmosfera, a guitarra solo assume uma melodia sofrida assim como acontece em Too Many Tears, single do Whitesnake. Mas não é apenas a guitarra o instrumento responsável por emanar esses sentimentos. Tal Bergman construiu, aqui, linhas de bateria de uma batida espaçada que conseguem imprimir com igual força a energia entristecida oferecida pela harmonia de I Wanna Stay. Um single encantadoramente sofrido.
É com a forma de jam session que se faz o despertar de ‘Til Tomorrow. Uma energia sinistra se forma com a união dos instrumentos de corda e o vocal de Smith, algo que se transforma em dramaticidade com a chegada do pré-refrão. Contudo, no refrão Kotzen oferece linhas vocais que sugerem que ao entoar “I can hear the call, I’m giving in my own, I’m gonna make it ‘til a new tomorrow”, o eu-lírico se rebela contra essas energias entristecidas emanadas pela canção numa clara tentativa de fugir da escuridão.
Obra do acaso ou não, o fato é que a combinação Smith e Kotzen funcionou. Um completou o outro com suas experiências, competências, destrezas e peculiaridades. A melodia se harmonizou com a rebeldia. A agressividade se adequou com o drama. E os temas vocais fugiram de questões políticas para enveredar num ambiente mais social.
Mas isso não é o único feito de Smith/Kotzen. O álbum é um produto que consegue combinar a forma como a Europa instituiu o hard rock, pesado, sombrio e mais metalizado, com a forma como os Estados Unidos o construiu, swingado, macio e melódico.
Kevin Shirley foi o responsável por manter e fazer ser notada essa questão. Afinal, a mixagem construída no álbum é clara, limpa e nítida, possibilitando com que o ouvinte saiba identificar as nuances e as assinaturas sonoras tanto de Adrian Smith quanto de Richie Kotzen.
Lançado em 26 de março de 2021 via BMG, Smith/Kotzen é definitivamente um álbum forte, potente e melódico. É a prova de que os músicos batizados Adrian Frederick Smith e Richard Dale Kotzen Jr. podem construir, juntos, uma carreira paralela sólida e cheia de grandes feitos.