NOTA DO CRÍTICO
O grupo é do Rio de Janeiro (RJ), terra da luz do Sol, do calor, da alegria e que deu corpo ao samba. Porém, o estilo musical adotado por ele foge, e bem, dessas características. O Devaneio preferiu se aliar à Europa e seu típico clima frio e temperado. Preferiu não o samba, com idade já centenária, mas sim o progressivo com seus meros 56 anos. Disso tudo veio o disco homônimo.
Um som sinistro, que desperta um pavor masoquista, é ouvido na introdução de Teogonia. Ao fundo, aquilo que parece ser um grito rouco, áspero e gutural remete, de alguma forma, à religião, mas mais precisamente, à igreja. De supetão, surge um violão de notas rápidas que logo recebe a companhia do baixo, da guitarra e da bateria. Apesar disso, o que se tem, de início, é uma calmaria que, surpreendentemente, divide espaço com a agressividade. O ritmo, que recebe influências do blues rock, do boogie-woogie e, mesmo que de forma sutil, da música mexicana, é contagiante e envolvente. A voz suave e harmônica de Leo Corrêa traz a questão do desconforto de seguir sem fé.
Um despertar de energia sentimental é o que pauta o início de E o Verbo se Fez Deus. Corrêa imprime, com o violão, notas singelas, melódicas, mas que ao mesmo tempo informam sofrimento e melancolia. Enquanto Teogonia teve grande semelhança rítmica com Love Me Two Times, single do The Doors, a presente canção, com as frases do violão, se assemelha a Tears Of The Dragon, single solo de Bruce Dickinson. Há, no instrumental introdutório, uma energia mais espiritualizada que na música anterior. De tom ameno, singelo e, até de certa forma exotérico, ela evoca uma noção de ancestralidade que se estende por toda sua execução. Contudo, com a entrada do vocal, a música ganha uma acentuação no groove com a entrada das linhas cadenciadas bateria de Gabriel Loddo. Mas é a guitarra de Christian Dias, com seus gritos inebriantes de lamento de desespero, que captam a energia lírica da busca de sentido.
A dupla violão e baixo é quem puxa Bezerro de Ouro. Ela consegue recriar, mas de forma mais alegre, aquela energia astral tão presente na introdução de E o Verbo Se Fez Deus. Porém, uma noção de caos é posta na melodia a partir do punch pontual e devidamente espaçado. Ela se transforma em delírio e desespero conforme o instrumental caminha para frases sombrias, mas mais melodiosas. Cheio de referências conceituais de campos da filosofia, o conteúdo lírico ainda aborda passagens bíblicas em sua estrutura.
De início fortemente groovado, Entre a Espada e a Cruz possui um peso diferente daquele apresentado nas canções anteriores. Assim como em Bezerro de Ouro, a presente faixa também possui, em sua estrutura, referências às musicalidades nordestinas, como o manguebeat. Referências às passagens bíblicas, trazendo a dualidade do certo e errado, do alternativo o conteúdo lírico vem com um Corrêa de voz mais rasgada.
Acelerada, groovada, contagiante e sedutora. Essas são características sentidas e percebidas logo nos momentos introdutórios de Miragem. É possível notar, na melodia, influências do post grunge se fundindo com o manguebeat e o rock alternativo. Na canção, ainda, o baixo de Matheus Schmidt possui momentos de solo em que deixa clara a sua importância na construção tanto da base rítmica como a questão da atração e do contágio do público. A questão melódica, ainda, se assemelha com a estética sonora do The Doors e, inclusive, com trechos da canção Partigiano Reggiano, single de Zucchero.
Em A Cura fica claro que uma das assinaturas sonoras de Devaneio é o violão dedilhado em tom mais introspectivo, flertando com o triste e o reflexivo. A forma como a harmonia introdutória da canção foi construída remete aos rituais indígenas de cura propriamente ditos. As sonoridades aqui presentes reforçam essa sensação ritualesca. Ao mesmo tempo, as linhas do violão, aceleradas, remetem à mente do ouvinte o característico som do flamenco. Na questão lírica, a desenvoltura está na conexão entre a cura e a transformação como um ato único.
Não apenas a melodia possui um flerte na MPB, mas também a interpretação lírica em Hoje, Não Amanhã. Com um swing sutil, a canção possui uma guitarra que se apresenta em notas alegres e uma bateria em compasso 4x4 bem marcado. Com o apoio do blues e do hardrock, o lirismo da canção abriga questões de união e igualdade entre cor e raça, de liberdade.
Progressivo nas introduções. Progressivo no que se refere à união de elementos. Fusão, em alguns momentos, dessa progressão com a psicodelia. Essa é a melhor definição de Devaneio, um disco que possui característica do estilo progressivo até nas temáticas líricas, as quais sempre abrangem uma mescla entre mitologia, religião e astralidade.
Produzido pela própria banda, o disco não é apenas progressivo ou mesmo psicodelia. Ele possui uma mistura complexa de elementos. Possui flertes com a música nordestina, mexicana, espanhola. Com o rock estadunidense e inglês. Com o sombrio e a alegria. Com religião e mitologia. Com questões sociais e exoterismo.
De uma forma ou de outra, esses elementos estão presentes na arte de capa. Mas verdade seja dita, o trabalho conjunto de Ezekiel Moura e Hélcio Queiroz deixa em evidência as questões mitológica, indígena e astral. Tudo a partir do personagem central, que mais faz lembrar figuras esculpidas pela civilização inca. É curioso de notar, também, que ao mesmo tempo que a arte abrange todos esses elementos, por conta das cores e da disposição das formas ela se assemelha à capa de Blood Sugar Sex Magik, álbum do Red Hot Chilli Peppers.
Lançado em 26 de março de 2021 de forma independente, Devaneio possui mixagem de Angelo Wolf e Kayan Guter. É a partir da mão desses profissionais que o disco soa consistente e ao mesmo tempo com toques frescos do amadorismo. Em suma, o trabalho de estreia do grupo é fora da curva do que é consumido pela massa nacional. E justamente por isso, é um produto cult.