NOTA DO CRÍTICO
Saindo em definitivo do estigma de dois álbuns por banda, Slash firma mais um capítulo em sua empreitada ao lado de Myles Kennedy e o The Conspirators. Sob o teto de uma nova casa e com a proposta de trazer um produto com roupagem de música ao vivo, o supergrupo Slash feat. Myles Kennedy & The Conspirators anuncia 4. Álbum é o sucessor de Living The Dream e, como o próprio nome sugere, o quarto disco de estúdio do conjunto.
Como uma cascata, a guitarra de Slash surge com um riff limpo e linear que recebe uma densidade através do baixo de Todd Kerns que é percebida ao fundo. Com um golpe na caixa, Brent Fitz logo dá passagem para uma melodia grave, suja, agressivamente swingada e imersa em claros moldes do grunge que abraçam a segunda parte da introdução. É então que com o auxílio do reverb, Myles Kennedy entra em cena com um vocal ligeiramente ácido seguido por uma base rítmica grave. Trazendo um lirismo que mistura críticas ao extremismo político, o universo das fake news e o ato ludibrioso empregado tanto por políticos e indústrias farmacêuticas em relação ao convencimento daqueles frágeis de senso e opinião, o vocalista consegue misturar sutileza e potencia durante as transições entre versos e refrão, momento em que a guitarra solo funciona como jatos de luz perante o soturno da base rítmica. Espontânea, The River Is Rising ainda conta com um solo de guitarra enérgico e acelerado que, dividido em duas partes, é acompanhado por um groove exercido pela bateria que recria aquele de The Call Of The Wind, single do álbum anterior do supergrupo.
Como o sentir da pressão de pedras rolando abismo abaixo, mas com uma velocidade ligeiramente suave, a bateria surge solitária trazendo um groove quebrado e que, já de início, sugere algo swingado e salgado. Quando o sino apita, como em sinal de alerta, a pupila do ouvinte dilata, os pelos se eriçam, a mente fica atenta, a adrenalina inicia seu percurso pelos canais venosos e o suor frio começa a escorrer pela pele. Pose de alerta. É então que a guitarra solo insere uma levada que de fato traz swing, mas um swing sujo que beira o nojento, a repulsa. Trazendo um sabor azedo à melodia ainda em construção, essa mesma estrutura de riff proporciona agressividade à canção. Quando o primeiro verso se inicia, ambos Slash e Frank Sidoris assumem uma postura sombria como se fossem um único personagem obsessor posicionado na espreita, apenas observando sua vítima agir naturalmente. Ao atingir seu ápice melódico, a canção assume uma maciez embriagante entorpece o ouvinte de maneira a deixá-lo de olhos caídos, mas com fundo de repulsa. Whatever Gets You By discute o vício em celulares e apps sob a ótica de um relacionamento doentio e puramente sexual. A estrofe “I'm fool for your misery. Like a drug lying next to me, I'll consume what you give to get me high”, por sinal, traduz bem essa simbologia.
Com um talkbox, Slash vem com um swingado eletrônico que é repentinamente surpreendido por golpes unidos entre guitarra base, baixo e bateria que mais se parecem com trovões que assustam essa maciez inicial. Quando a bateria acelera solitariamente a sua linha rítmica, o ouvinte se segura na cadeira para se preparar para algo que promete ser grande. Eis que uma levada demasiadamente mole e suja é desenhada afrente do ouvinte. É curioso ver que, enquanto a guitarra solo parece representar a luz do Sol rompendo as nuvens densas, a base melódica funciona o oposto: o obscuro, o trovão, o breu que impede qualquer sensação de alento invada seu reino da escuridão. Eis então que, no primeiro verso, a sonoridade que salta aos ouvidos é a do baixo grave e linear que funciona como um guia melódico sedento por brilhantismo. Misturando toques melancólicos e dramáticos no refrão, a faixa consegue até mesmo ter repentes de comoção. Não por acaso, C’est La Vie tem um lirismo que fala sobre ter forças para seguir em frente. Perseverança e persistência perante as adversidades da vida de maneira a romper os lapsos de negatividade e de pensamentos depreciativos também fazem parte do tema lírico. É como uma das estrofes do refrão destaca: “c'est la vie If there's salvation down the road” e “heaven waits for you beyond the hell you've known”.
O som agudo do atrito entre as baquetas fazendo a contagem do tempo instiga a curiosidade. A guitarra vem com um misto de maciez e acidez com seu riff introdutório. Uma crescente enérgica se inicia enquanto, ao fundo, Kennedy vai balbuciando vogais quase inaudíveis, mas que já indicam uma grande mudança na estética. Eis que, quando o ápice dessa crescente é atingido, The Path Less Followed vem com uma alegria entorpecida que carrega consigo notas melancólicas e embriagantes. Com um groove em 4x4, Fitz fornece à canção uma estética transitória dos anos 70 aos 80 que, em diversos momentos, soa como a trilha sonora de um conselho. E não é para menos, afinal, a canção parece ser parente de Boulevard Of Broken Hearts, canção presente em Living The Dream. Seguindo os passos de sua irmã mais velha, o que The Path Less Followed oferece é um enredo que funciona, de fato, como um conselho entre amigos que diz para seguir o coração e não o fazer porque deve ser feito. O desejo pela fama, no caso, deve ser secundário à vontade de fazer música. Tal como acontece em inúmeros casos, a voz protetora e amiga do consolo sempre estará presente nos momentos em que o fracasso desaponta o objetivo do sucesso. É isso o que o antagonista da canção diz de maneira a ecoar pelo inconsciente do protagonista: “but you should know I'm only tryna help you out”.
O riff surge estonteante. A sensação emanada é de enjoo, mas curiosamente, um enjoo bom de ser sentido. Com swing mais presenciado, a canção vai ganhando ares alegres que contagiam com facilidade o ouvinte a partir de seu hard rock setentista. A melodia, inclusive, traz em sua estética uma semelhança com aquela desenhada na canção Roller, single de April Wine, mas também com o swing desleixado e amaciado de Love Me Two Times, single do The Doors. Actions Speak Louder Than Words talvez seja a canção de título mais literal e denotativo de 4, afinal, ela traz consigo uma crítica visível a política, que se baseia em promessas que ludibriam as mentes e as almas mais frágeis no alcance da confiança e votos, mas que, no fim, pouco fazem sobre o que foi jurado. É uma canção que clama para que as verdadeiras intenções sejam mostradas, pois, como o próprio nome já diz, ações falam mais alto do que palavras. E o que fica de recordação por ser marcante são os versos provocativos que emanam aroma de ameaça “so if you please just show a sign” e “your true intentions, well they better be pure”.
A guitarra constrói uma sonoridade árabe que ambienta toda a atmosfera da canção. Há, em tal melodia, traços de um misticismo latente e instigante. O ouvinte se percebe atento e curioso conforme as evidências vão tomando forma e se anunciando. O baixo é o instrumento que surge como um raio crescente entregando corpo e uma linearidade constante à sonoridade. Com os pratos de ataque sendo sonorizados com golpes crescentes, Spiritual Love enfim tem o apogeu de sua introdução com um instrumental de teor fantasmagórico. De identidade mais sombria, a canção em si possui um lirismo que retrata um enredo baseado na estética ultrarromântica de autores como Álvares de Azevedo. Isso porque o personagem principal se vê em uma relação romântica com um espírito feminino e se questiona, por diversas vezes, se aquilo é de fato real. E no fim, se descobre que inclusive ele também está morto, o que torna capaz a concretização de tal relacionamento extracorpóreo.
É como enxergar a luz do Sol sob uma camada fina de chuva que reflete o arco-íris. Existe um misto de sensações proporcionado pelo veludo da guitarra que vão do conforto, aconchego, carinho e atinge a proteção. É quase como um abraço apertado e nostálgico. De uma delicadeza e sutileza contagiantes, Slash se pronuncia com um riff linear acompanhado de uma base macia enquanto Kennedy solfeja sons que, sincronicamente ao início da melodia, transmitem o cuidado. O baixo estridente presente no primeiro verso não destoa da delicadeza, mas sim salienta a sensibilidade branda construída entre a guitarra base de Frank Sidoris, a bateria de Fitz e a guitarra solo de Slash. Completa por linhas líricas que aparentam trazer um enredo romântico entre pessoas, Fill My World é uma experiência em que Kennedy colocou em forma de palavras como Mozart, seu cão, se sentiu durante tempestades atravessadas sem o apoio de seu dono. Versos como “and when the silence comes It breaks my heart. When I'm lonely, I always fall apart”, “thе wind is screaming out. I pace the floor And I wondеr: will I see your face once more?” e “you were always here to save me like a sentinel in the dark as the thunder keeps on rolling through my heart” deixam evidentes essa constatação. Emocional e com solo blues, Fill My World não deixa de ser uma declaração de amor. A presença, quando feita de boa vontade, sempre criam laços fortes de união e companheirismo.
O som da guitarra traz em si um tom cômico e debochado que recebe explosões repentinas que amplificam o peso da melodia em formação. Swingada, provocativa e até mesmo sexy. A maciez cínica da guitarra durante o instrumental introdutório chega a formar sorrisos de canto de boa que comunicam não o cortejo romântico, mas algo atrevido e inquietante. Penetrante, a melodia conquista sem dificuldade o ouvinte com o seu gingado de identidade californiana. April Fool é uma canção divertida que ilustra a pessoa que assume ter a função de ser a engraçada ou, em outras palavras, ser o tio do pavê que faz todos rirem com piadas frouxas e simples.
Sem pestanejar, o quinteto oferece uma curva acentuada para sair da energia emocionalmente amaciada. Com um swing selvagem, a guitarra solo desfila por entre riffs aceleradamente lineares enquanto a bateria, firme e precisa, faz a contagem do tempo. Ao fundo, Kennedy lança um grito que mais funciona como um uivo, indicando uma selvageria palpável a ser notada na canção. Ao lado de Frank Sidoris, a melodia assume um swing imponente e provocativo que claramente recria a atmosfera tanto de It's So Easy, single do Guns and Roses, quanto a majoritária base rítmica presente nas canções de Appocalyptic Love. Como enredo lírico para esse cenário, Kennedy apresenta o relato de um relacionamento predatório, propositadamente agressivo e de notas sexualmente provocativas que são traduzidas em sonorização através do solo de Kerns na ponte. O verdadeiro poder de sedução. Isso é Call Off The Dogs.
Grave, crescente, sombria. A melodia introdutória chega a ser temerosa com sua sonoridade mais densa, mas ela desemboca em um solo de extrema dramaticidade melancólica que prende o ouvinte em seu tom sofrido. Curiosamente, essa mesma silhueta sonora recria a estética melódica de Blind Faith, single do trabalho solo de Myles Kennedy. Com uma ambiência que mistura o transcendental, o pacifista e o torpor psicodélico, Fall Back To Earth é ambientado no ambiente astrológico em sua narrativa lírica que conta a história de uma pessoa que cresceu economicamente na vida, mas que, por ventura, acabou perdendo todos os louros anteriormente conquistados. A metáfora que se baseia o título é uma menção de que, quando se está em apuros, sempre haverá um outro alguém para estender a mão.
Não é apenas a comemoração do quarto álbum com sua nova banda. É, também, a constatação de um relacionamento duradouro, de alicerces rígidos e de intensas reciprocidades musicais. 4 é o disco que contabiliza os 10 anos que Slash, Myles Kennedy e o The Conspirators estão juntos fazendo música.
Para Slash, é um disco, talvez, ainda mais importante que Living The Dream. Afinal, suas bandas anteriores Slash’s Snakepit e Velvet Revolver lançaram dois álbuns de estúdio. Com 4, o guitarrista não apenas reafirma a competência de seu novo grupo, mas também reforça que há entrosamento e a química não é somente de faixada.
Para Myles Kennedy, é mais um capítulo que mostra sua versatilidade como interprete e como compositor. A diferença de temas e abordagens entre suas composições com o Alter Bridge, Slash e em carreira solo é até gritante, mas ambas guardam sua essência e seu ponto de vista sobre os eventos do mundo. Com 4, ele não apenas fala de coisas do coração, mas traz descontentamentos políticos e sociais de maneira a representar toda uma parcela de pessoas que se sentem desamparadas na mesma medida.
Para o The Conspirators, 4 é a representatividade de sua musicalidade, de sua capacidade de entrosamento e de sua postura aberta, flexível e sem preconceitos. Um grupo que já se conhecia, manteve a amizade e ampliou seu circulo de amigos em comum.
Para o Slash feat. Myles Kennedy & The Conspirators, 4 é um disco repleto de swing, maciez, provocação e reflexão. Com músicas sujas como The River Is Rising, Whatever Gets You By e Call Off The Dogs, o disco imerge tanto no campo do hard rock como no do grunge.
De outro lado, o número quatro da discografia do supergrupo comprova a sabedoria e a química entre Slash e Kennedy em compor baladas macias, sentimentais e contagiantes. Afinal, desde Appocalyptic Love, a dupla compôs, em ordem decrescente de trabalhos, grandes músicas como Fill My World, The One You Loved Is Gone, Battleground e Far And Way.
No âmbito estrutural, 4 mostra uma ousadia do supergrupo. Deixando de lado o parceiro de longa data tanto de Slash quanto de Kennedy Michael ‘Elvis’ Baskette, o novo trabalho teve direção de uma mente fora do espectro do hard rock e do heavy metal. Dave Cobb é um conhecido produtor de country que, com sua expertise, conseguiu entregar outro aroma à leveza das baladas e à sujeira das músicas mais metalizadas. De outro lado, é mérito de Cobb, responsável inclusive pela mixagem, também o fato de que 4 foi gravado totalmente ao vivo, com todos os músicos captando suas partes em um mesmo cômodo e ao mesmo tempo, como em um show propriamente dito. Isso fez com que o trabalho soasse fresco, vivo e original.
Lançado em 11 de fevereiro de 2022 via Gibson Records, 4 é um disco sujo, swingado e groovado. É um disco que emana ousadia, exala um aroma de perigo e personaliza a imagem da competência. De outro lado, o que mais fica evidente de 4 é que esse é um disco espontâneo.