NOTA DO CRÍTICO
A pandemia do Coronavírus ainda está longe de terminar. Por conta disso, se deparar com trabalhos musicais feitos no período pode não ser uma tarefa tão difícil. Entrando para esse time de extensos nomes está Duda Fortuna, músico porto-alegrense que, agora, oferece ao público seu novo trabalho. Intitulado Noite Dos Abraços, anúncio é o segundo álbum de estúdio de Fortuna.
Repiques de bateria já indicam algo saliente. O swing, a leveza e o groove intenso, ingredientes tão característicos do reggae guiados pelas teclas espaçadas e entorpecidas do teclado de Cau Netto, desenham contornos de silhuetas latinas ao mesmo tempo em que trazem uma calmaria entorpecente. Misturando elementos psicodélicos, Duda Fortuna, com seu timbre de sutis asperezas e gravidade, traz um ar fanhoso que se enquadra com a estética rítmica proposta. Curioso notar que, em Cansaço, o sopro agudo e quase estridente do trompete inserido pela programação de Vini Cordeiro faz a vez do piano ao imprimir dramaticidade, mas uma dramaticidade que, pela roupagem melódica, é encoberta por uma fina camada de luz e vivacidade. Sua transparência é tão notável que permite ao ouvinte enxergar além e perceber que o ato de entorpecer e o se deixar levar pela brisa ocasionada pelo seu efeito são maneiras encontradas por muitos para suavizar a dor, a tristeza e a falta de perspectiva perante a atuação em uma força de trabalho não valorizada. Cansaço é a paisagem repaginada do êxodo rural de maneira a mostrar que o próprio movimento, em pleno 2022, ainda carrega características da década de 70. A marginalidade socialmente imposta aqueles que almejam uma vida melhor. A xenofobia regida por um falso senso de superioridade. Cansaço, apesar da malemolência, é um grito de basta que conta com a companhia de Lilian Rocha imprimindo, com seu timbre empostado e consistente, mais incredulidade e tons empoderados de protesto a partir da segunda estrofe.
Uma leveza inebriante e, ao mesmo tempo, nauseante é construída a partir dos riffs iniciais da guitarra, os quais remetem à sonoridade construída pelo Kid Abelha. Se aproximando de um misto melódico entre o rock alternativo de roupagem oitentista e do indie rock, a canção traz uma maciez embalante que conduz o ouvinte de maneira fluída perante seu desenrolar rítmico. Com lirismo de significância quilômetros mais leve que aquele de Cansaço, Procurando Graça é uma canção que, em sua receita letrada, pincela romance, despreocupação e uma leve demonstração de falta de ânimo ou mesmo incentivo por parte do eu-lírico. Procurando Graça não é necessariamente sobre amor, mas sim sobre propósito e estimulo.
O uníssono da bateria com o piano soa estranhamente melancólico. Quando a baqueta faz um som baixo e trepidante, a impressão é de que a música se encaminharia por entre melodias mais calcadas na MPB, mas outra roupagem se concretiza. Não existe tanto Sol, calor e swing como em Cansaço, mas o reggae aqui apresentado guarda uma malemolência mais doce e macia. Sem rispidez ou groove intenso, as linhas melódicas vão sendo desenhadas por contornos fluídos e aconchegantes que são guiadas pela desenvoltura de Dado Silveira sob o comando das baquetas. Voo Solo é uma música que dialoga tanto com o tédio quanto com a liberdade, a vontade do se ver livre, desimpedido e com o mundo pronto para ser desbravado. De outro lado, é possível sim notar pitadas de MPB impregnadas entre os gingados do reggae e, o mais interessante, perceber um movimento melódico semelhante àquele construído em Olhos Vermelhos, single do Capital Nacional.
Se em Voo Solo a MPB estava presente nas entrelinhas, aqui ela é a base. Perceptível logo a partir do doce riff do violão introdutório, ela traz uma modernidade estética proporcionada pela bateria linear de texturas crocantes e o baixo de riff cavalgante, o que por si só já cria um movimento empolgante e atraente em meio à maciez transpirante. Em Voy Y Vuelvo, canção cantada inteiramente em espanhol, existe uma temperada melódica com elementos que remetem tanto ao bluegrass quanto ao folk. Ganhando uma velocidade mais cadenciada na segunda estrofe, Voy Y Vuelvo assume uma influência do flamenco a partir dos estalares de dedos responsáveis pela contagem de tempo, os quais, por sinal, se assemelham às castanholas. A maior beleza da canção, no entanto, está na participação da poeta chilena Lota Moncada, quem, declama de maneira seca, mas visceral, trechos de seus escritos retirados de um poema homônimo.
Acelerada e com toques sensuais, surge uma melodia vivaz e instigante. Trazendo a ação do destino, do imprevisível, do inesperado, a canção assume uma dramaticidade latente a partir da inserção de uma guitarra cuja afinação distorcida soa densa e propositalmente opaca. A esperança e a vontade de um novo mundo também estão presentes no lirismo quase cacofônico e rimado proporcionado por Fortuna, que recebe o respaldo de Pedro Poeta durante o refrão dando maiores ênfases nos versos cantados. Em verdade, apesar da linearidade melódica, Tem Sim Tem Não dialoga constantemente com a contradição da humanidade e com sua pequenez, sua insignificância ante eventos de grande porte.
O bailar amaciado do caxixi trazido por Marcelo Callado traz um veludo e uma tranquilidade extra-sensoriais que são intensamente estimulados pelo violão de linhas MPBs. E para acompanhar tamanha simplicidade melódica, somente um lirismo de igual tom de singeleza. Afinal, os sonares dos instrumentos fazem com que o ouvinte se perceba abraçado por uma mata verde rodeada de grandes e frondosas árvores cujas folhas abraçam educadamente a presença de um novo corpo. Essa ambiência natural ganha maiores corpos conforme Fortuna vai, com seu vocal mais internalizado, citando uma série de itens alimentícios encontrados na mata. Banana-da-terra, jambu, tucupi são alguns exemplos. Oferecendo, durante o refrão, entonações vocálicas que recriam a melodia do ápice de Ela Partiu, single de Tim Maia, Terra e Chuva é uma canção profundamente simplória e de essência humana. Ao mesmo tempo, a faixa exorta a tentação perante produtos naturais de características alucinógenas e anestesiantes a partir de ecos de intensa psicodelia regidos pelo batucar do atabaque e pela programação de Dazluz.
Um veludo sensual e embriagante é ouvido ao fundo de maneira a abraçar calorosamente o ouvinte. Além da leveza com que o som da bateria feito por programação se movimenta, essa maciez muito se deve pelo amaciado sonar do saxofone de King Jim. De maneira gradual, o soar percussivo vai tendo seu volume aumentado indicando que algo está prestes a acontecer. Eis que uma melodia mista de rap e soul se forma em frente ao ouvinte colocando beat e maciez no mesmo caldeirão em processo de ebulição. Com uma voz sussurrada que beira um aspecto sensual e relaxado, Fortuna insere um lirismo que nada mais é do que a descrição quase ultrarromântica de Porto Alegre. São cenários descritos com tanta sutileza que o ouvinte facilmente consegue visualizá-los a poucos metros de distância, como reflexo em seus olhos. Pra Ti Poa é uma canção macia cuja medida certa de swing a torna atraente em demasia. Uma música construída sobre a sinergia entre soul, rap e o lo-fi.
Uma voz aguda e sob naturalmente estruturada sob uma ideal balanço entre estridência e maciez surge ao fundo acompanhando uma sonoridade igualmente macia proporcionada pela programação. É Dana Farias caminhando por entre notas do teclado que entregam uma espécie de psicodelia entorpecida devido ao seu açúcar embriagante. Da mesma forma como Pra Ti Poa, aqui a bateria assume igual função de ponte entre introdução e primeiro verso, momento em que Fortuna assume a dianteira do microfone com uma voz sensualmente sussurrada e rouca de maneira a entregar certa textura de crocância à melodia de Laptop, uma faixa que mistura o MPB a partir do violão, lo-fi pelos ruídos propositalmente presentes, rap pelo beat intenso, mas também psicodelia pelo teclado e, no âmbito conjuntural, uma maciez reconfortante que beira flertes do soul. Laptop é uma música sobre amor, sobre paixão e sobre simplicidades de momentos singelos com quem se ama que conta ainda com uma ponte estruturada devidamente na métrica rap com lirismos cadenciados e repletos de rima que recebem a companhia balbuciante do Terminal 470.
O swing, a atmosfera tropical e o cheiro do mar pararam em Cansaço, mas enfim retomam seu espaço com uma dose extra de leveza. Para trazer essa roupagem de intenso contágio amaciado, quem assume o microfone é, logo no início, o convidado Zeco Darde inserindo, com seu tom agridoce, uma atmosfera reggae semelhante àquela criada pelo Natiruts em Me Namora ou mesmo pelo Chimarruts em Verso Simples. Melodicamente macia, simples e contagiante, Dando Voltas é uma canção que narra o amadurecimento de um relacionamento amoroso. É uma canção que traz o temporal como uma clara menção aos conflitos, mas sob uma visão construtivista de maneira a enxergar, nele, a oportunidade de aumentar a força da relação.
Levemente acelerada, nauseante e ao mesmo tempo embriagante. É verdade que o que fica, a partir do despertar do primeiro verso, é uma maciez contagiante que facilmente chama o público para si. Regida pela sutileza do riff do violão que desenha sutis contornos de MPB, Paraíso é uma música que se embriaga na simplicidade das coisas e na beleza das paisagens. Trazendo um refrão alegre que traz breves semelhanças energéticas com aquele de Além do Horizonte, single de Roberto Carlos, a faixa traz uma vivacidade e um swing truncado que reenergiza o ouvinte de maneira a deixa-lo com um sorriso realizado no rosto.
Uma guitarra de riff cadenciado cuja afinação recria a ambiência de um Brasil oitentista oferece certa dose de swing. Com forte groove inserido de maneira pontual nos contornos melódicos, Hortelã evidencia sem rodeios uma temática de sede pela vida, de impulsos, conquistas e desejos. Curioso notar que, para que esse cenário seja de fato concretizado, o período comumente escolhido é a noite e, aqui, isso não é diferente. O clima de festa é inegável, a curtição, algo difícil de ser ignorado. Hortelã, além de falar com a diversão, fala de romance enquanto mistura pop e eletrônico a partir de uma melodia swingada e atraente.
Todos querem a vida de 2019 de volta. Aquela em que se podia sair, abraçar, beijar, dançar, viver despreocupadamente. Todos querem namorar, beber, comer como antes. O estranho desejo pelo passado como resposta a uma liberdade muito desejada, mas que em muito será mudada. Noite Dos Abraços é um disco que representa esses anseios sociais de maneira a abranger texturas das mais diversas.
Seu misto de estilos proporcionado pela mente desbravadora de Duda Fortuna constrói um ecleticismo que muito lembra aquele exercido pelo Braza. Afinal, em um mesmo trabalho, o ouvinte pode se deleitar com o MPB, com o bluegrass, com o folk, o reggae, o soul, o pop, o indie rock, o eletrônico, o lo-fi e mesmo com o rap.
No que tange especialmente a roupagem reggae, é interessante notar como Fortuna e seu time de músicos conseguiram recriar uma sonoridade tão típica das bandas nacionais desse gênero. Sob o comando da produção de Marcelo Callado, Noite Dos Abraços representa fidedignamente nomes como Cidade Negra e O Rappa assim como a nova leva de grupos reggaeros, como Natiruts, Chimarruts e o Braza.
No aspecto melódico, inclusive, o estilo de canto de Fortuna acabou entregando à Noite Dos Abraços uma sensualidade muitas vezes despropositais, mas que acabou casando com as estéticas rítmicas adotadas nas narrativas das 11 faixas do disco. O produto, por sinal, possui uma sonoridade bem equalizada de maneira a permitir, além de o ouvinte degustar cada sonoridade em sua individualidade, sentir o exalante groove, peso, swing e precisão. Tudo graças ao trabalho de mixagem que Netto fez em 10 das 11 faixas do álbum e também do exercício de mixagem que Iuri Brito desempenhou em Tem Sim Tem Não.
Como aspecto visual e que convida o ouvinte a abrir o livro sonoro que é Noite Dos Abraços, Duda Fortuna recrutou uma dupla que capturou com maestria o coração do álbum. Feita por Vhera Xunu e João Salazar, a arte de capa mostra uma flor em sua esplêndida beleza e auge de vivacidade. Coberta por uma cor amarelada quente e vivaz, ela está totalmente aberta como em posição de receber luz, nutrientes e alimento. Ou seja, vida. A vida ainda nos pertence e é a vida que nos motiva.
Lançado em 11 de fevereiro de 2022 de maneira independente, Noite Dos Abraços é mais do que a narrativa de uma sociedade sedenta por reencontros. É um claro recado à Covid-19 que, nas entrelinhas e parafraseando Sérgio Britto, diz: “enquanto houver Sol ainda haverá”. Ou, de maneira mais direta, é como se dissesse ao vírus a seguinte frase: por você a vida não morrerá.