Sara Não Tem Nome - A Situação

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Ele nasce pela inspiração de um momento que promete mudanças. O partir de uma governança a outra é sempre motivo de expectativas. É esse viés que captura Sara Não Tem Nome a compor A Situação. Álbum surge oito anos após Ômega III, disco de estreia da cantora mineira.


O clima é de marchinha carnavalesca: animado e dançante. A união do trompete de Juventino Dias com o trombone de João Paulo Buchecha e a caixa de Larissa Conforto é o que dá essa impressão. Curioso notar que, nesse contexto, a opacidade típica do coquinho e a secura do bumbo vão auxiliando na criação de uma parte mais racional e palpável da sonoridade que se encontra em processo de maturação. O tilintar do carrilhão surge como um divisor de momentos. A partir dele, a introdução se encerra e o primeiro verso dá seus primeiros passos ao trazer uma voz serena e leve ao contexto melódico. É Sara dando a Pare o elemento restante: o lirismo. Com auxílio de um coro composto por outras seis vozes, a faixa surge como um basta, uma ordem para que o presente pare antes de se tornar passado. Uma tentativa quase desesperada de evitar que mais coisas desagradáveis continuem acontecendo. “Pare para eu descer” é o verso que fica gravado na mente do ouvinte e, curiosamente, é a expressão coloquialmente usada pelas massas quando algo não está de acordo com certos ideais. Inteligente da parte da cantora adotar esse palavreado social e inseri-lo na canção de abertura. Afinal, mais que em clima de abre-alas carnavalesco, a festa que sai da canção como um convite é quase que uma recriação melancólica e dolorida de todos os levantes contra governos já vividos na história do Brasil e que foram marcados por intensa repressão do Estado, seja ela verbal ou física. Pare, nesse sentido, é como o encontro da década de 60 com os últimos quatro anos.


É como observar a garoa fina e gélida escorrendo pelas paredes de acrílico de um horizonte acinzentado. A melancolia acaba, nesse cenário, dando as mãos ao fúnebre de maneira tímida, mas convencidamente cabisbaixa, como se não houvesse saída. A guitarra tem grande participação nesse universo, pois surge a passos quase inaudíveis como se não quisesse ser notada. É então que a dramaticidade começa a mostrar sua força quando véus esvoaçantes e lacrimais são lançados à estrutura a partir do violino de Desirée Marantes. A súplica e a dor estão ali, na beira do abismo olhando aquela paisagem sem cor, mas curiosamente conscientes em seu torpor. O interessante é notar que, de uma forma bastante inesperada, a estética melódica tangencia com a proposta sonora de Dois Rios, single do Skank. Ponto Final é totalmente o contrário de Pare no que tange a melodia, mas a ela se completa na questão da esgotável energia em conviver com algo que não condiz com o certo, o direito e com a moral do desenvolvimento humano. Para onde ir?, se pergunta o personagem lírico enquanto mostra que suas forças em suportar tal ambiente se esgotaram. 


Não há dramaticidade nem ar funesto. Há, sim, a continuidade da melancolia de uma forma mais macia e menos dolorosa. Há, inclusive, um tom hipnótico na forma como a guitarra se movimenta na introdução sinistra e minimalista que cria uma similaridade com o amanhecer de Wet My Bed, single do Stone Temple Pilots. Mais surpreendente ainda é perceber que, dentro desse manipulatório hipnotismo, existe, no fundo, uma consciência de mudança, de melhora. É aí que entram rompantes de uma maciez reconfortante que tangenciam com aquela presente na segunda metade da introdução de Better Man, single do Pearl Jam. Ainda assim, o desespero é algo latente que transpira das sobreposições vocais fantasmagóricas e denotativamente entorpecidas de Sara.  Enquanto a dupla trombone-trompete vai dando cores que transitam entre o vivo e o calado, a bateria entra a partir dos repiques opacos da haste da caixa dando o compasso rítmico. Dejà Vú é, como o próprio nome sugere, a vivência de algo já vivido. É como se a personagem lírica vivesse no presente e no período do pico da repressão político-governamental brasileira ocorrido na Ditadura Militar. E nesse ponto, Dejà Vú se une a Pare, pois ambas, à sua maneira, acabam retratando a vivência de situações já experienciadas pela população brasileira e que, hoje, recobraram o status de ‘experiência presente’. É algo dramático e triste. E por isso, o violoncelo de Fernanda Koppe encarna essa melancolia e sonoriza as lágrimas agonizantes que dão vida ao desespero pelos vícios governamentais que recobram vida.


O compasso rítmico é, sem demora, oferecido pelo chiar do chimbal. Logo seguido pela dupla baixo e guitarra trazida por Sara, ele acaba entregando um curioso aroma de suspense a sonoridade nascente. Entre rompantes mariachis feitos a partir da dupla trompete-trombone, um coro de seis vozes entra com um tom entorpecido e aconchegado em uma aparente zona de conforto da comodidade em meio ao caos. “Deixa pra lá, vamos deixar como está”, diz ele. Porém, é aí que Sara entra na tentativa de desmontar essa espécie de hipnotismo cômodo e visa instigar a luta pela mudança. Isso é Incomoda, a luta entre o cômodo e o incômodo. 


A guitarra consegue manter a maciez mesmo quando seu sonar inspira pinceladas de azedume. Trazendo aqui uma nítida influência lírica de Rita Lee em seus tempos de Os Mutantes, Sara traz um enredo que beira o cômico ao retratar a relação do personagem lírico com as obrigações burocráticas em relação ao pagamento de contas bancárias. Com auxílio da agudez doce do piano elétrico de Luiza Rozza, o humor tem mais peso enquanto que, a partir do groove do baixo de Victor Galvão ao lado da bateria, Revés, Volte 4 Casas acaba apresentando o blues como sua base melódica. Até por isso, é capaz de dar à faixa o título de primeiro single propriamente comercial de A Situação.


O sinistro, o drama. A acidez da guitarra exala expectativa por parte da melodia que dela nasce. Fluindo para uma sonoridade cheia de azedume trazido pelo sintetizador


e fincada no britpop graças ao groove da bateria, há um misto de new wave com uma pegada rítmica mais industrial. Com versos rappeados e uma energia urbana latente, Agora tem a participação de Tantão nos vocais, trazendo pitadas de surtos de loucura e repentes de consciência enquanto Sara divaga sobre o individualismo, o egoísmo e o egocentrismo, mas também traz um tom impaciente para que a população sinta que o momento da necessidade de mudança de fato chegou.


A guitarra recria a estética introdutória assumida em Dejà Vú enquanto a bateria eletrônica vai desenhando um ritmo propositadamente truncado. A melancolia e o fúnebre novamente se encontram graças a uma narrativa sobre a hipocrisia de uma parcela da população que diz ser a favor do bem quando, na verdade, são expoentes e marionetes do ódio, da intolerância e do preconceito disseminados pelo Governo Bolsonaro. E Cidadão De Bens é exatamente esse retrato: o da realidade versus intenção. 


Um dueto agridoce estruturado entre Sara e Randolpho Lamonier é o primeiro som a receber o ouvinte, seguido, quase imediatamente, pela base rítmica formada pela bateria-guitarra-baixo. É como olhar, tanto da janela, quanto das ruas, um horizonte acinzentado pintado a partir das fumaças das indústrias. Retratando a insensibilidade e a vivência de uma rotina calcada na incessante e mecânica busca por dinheiro, Parque Industrial representa a quebra da inocência e da ingenuidade que regem a pureza da criança, aquela personalidade existente em todos os indivíduos e que é dona do ato de sonhar.


Vindo com mais força e protagonismo, o violoncelo marca presença com sua dramaticidade cortante através de seu sonar grave que acompanha a melancólica valsa da guitarra. Enquanto o violino surge em seu choro sentido, o ouvinte é subitamente capturado pela sensação de vazio e desproteção. Nós é a dicotomia da solidão e da união. Do egoísmo e da parceria. A dúvida da salvação paira pela voz de Sara, que se vê consciente de que novas tentativas de mudança apenas surtirão inéditas decepções. Nós, a palavra que sugere união, senso de comunidade e preocupação mútua intencionadas por atitudes que buscam o bem comum. Nós é a canção em que esse sentido se desfaz.


Novamente a melancolia surge como grande ingrediente de uma nova melodia que nasce. Resistir, persistir, coexistir. Existir. Hoje Não é quase como um interlúdio. Introspectiva e de uma desesperança dilacerante, a faixa consegue, em poucas palavras versadas, transmitir a solidão, a tristeza. Viver em uma realidade que não gera incentivo de transformação é angustiantemente desestimulante. E é esse o tom de Hoje Não: de desestimulo e desesperança.


O tilintar catedrálico do sino é ouvido enquanto a maciez ácida trazida pelo sonar do teclado oferecido pelo sintetizador dá a conotação de fim. Do todo ao nada. Formado por versos bem divididos entre os timbres sussurrantes de Sara e Bernardo Bauer, Vazio é uma canção que mistura fé e reflexão social. Um produto em que o diálogo da desistência e da fluidez do covardismo que esconde a insegurança. 


Os sonares agudos do xilofone trazidos pelos efeitos de som sugerem um ar infantil e puramente ingênuo que é cessado e, metaforicamente, destruídos a partir da representação dramática do piano. Existe na melodia um tom até mesmo gótico que flerta com as sonoridades instrumentais melancólico-dramáticas do Evanescence. É assim que Volta se apresenta ao ouvinte, um produto tenso, intenso, sombrio, dramático, melancólico e, inclusive, nostálgico, que narra a relação com o tempo. 


Assim como sua faixa de encerramento, A Situação é um álbum denso, intenso, sombrio, dramático e nostálgico. Soma-se a isso características como pessimismo, angustiante, melancólico, hipnótico e alucinante. O momento recém-passado da política brasileira inspira uma miscelânea de emoções negativistas, enquanto que, o presente, incentiva a esperança. E é nesse vaivém que caminha o novo trabalho de Sara Não Tem Nome.


Quase como um diário sonorizado, o álbum é fortemente opinativo, emocionalmente sincero e enlouquecidamente representativo. Transitando entre esperança, negativismo, tristeza, absurdez e revolta, A Situação é um álbum cuja harmonia consegue ser contagiante em sua pluralidade melódica.


Com auxílio de Alejandra Luciani na mixagem, Sara conseguiu fazer com que seu novo trabalho soasse dramático, triste e angustiante entre as adoções de gêneros que passam por blues, new wave, mariachi, britpop, industrial, rap, marchinha carnavalesca e gótico. Todos eles ajudam a ilustrar e dar força à nova era da MPB, que se mostra cada vez mais plural e livre para experimentações.


Fechando o escopo técnico do trabalho, vem a arte de capa. Assinada por Lamonier e Galvão, ela representa bem a angústia socio-política vivida por Sara. Colocada em pose de protesto, ela se encontra em um quadro dividido entre setores urbanos e naturais, simbolizando a prioridade econômica e a desvalorização da fauna e flora por parte de Bolsonaro. Os incêndios, ali muito bem colocados, fazem menção aos desmatamentos intensivos e à falta de recursos disponibilizados para proteger as florestas.


Lançado em 13 de janeiro de 2023 via Grão Pixel, A Situação é a angústia, o desespero, a tristeza e a inquietação perante o comodismo relacionado às inspirações de mudança socio-políticas. Não precisa, mas por meio de seus sons, Sara grita, chora, enlouquece e se decepciona. Cada uma de suas canções são como páginas cheias de sinceridade retiradas de um diário.



















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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.