NOTA DO CRÍTICO
A proposta é unir poema e música para falar, de maneira profunda, sobre diversos temas da atualidade. Assim nasceu a parceria entre o sexteto Projetonave e Caco Pontes, um projeto que culminou com o lançamento de Órbita, um álbum que reflete o presente com olhos no passado.
Chiados ásperos. O vento uiva e produz o único sonar que abraça a estranha tensão da canção, uma sensação fomentada pela expectativa do incerto. Sem demora, uma nova, palpável e literária textura preenche o ambiente. É Caco Pontes, que com sua voz grave, estridente e ecoante, inicia uma narrativa adornada por propositadas pausas dramáticas que criam a sensação de o espectador estar ouvindo a voz da própria consciência. Tempo (Prólogo) é a anunciação da invenção do tempo como algo tátil e real, algo capaz de transformar por completo a cultura mundial. Algo capaz de tirar cada indivíduo de seu próprio eixo orbital, ou seja, seu equilíbrio.
O chiado segue sendo um ingrediente importante na construção melódica e aquele atributo que confere, mesmo que apenas por alguns instantes, uma interessante textura lo-fi à canção. Como uma espécie de anunciação serena, a guitarra de Marcopablo Vittorino se une ao synth de William Aleixo e à bateria de Flávio Lazzarin na estruturação de um ambiente mântrico, natural e com fortes aromas bucólicos. Com a entrada do grave e bojudo sonar do contrabaixo de Alex Dias, a melodia começa a ter seu corpo sonoro amadurecido. Se identificando como representante de cânticos africanos de estrutura que remonta os candos umbandistas, Thelema é preenchido por um swing terroso e um canto que flerta com a estética de mantra, assim como sua melodia. Curiosamente, a faixa se fixa, no que tange o lirismo, sobre a propagação do conhecimento nos diferentes tempos, épocas e civilizações. De toques dramáticos graças aos tímidos sobrevoos do teclado, Thelema se perde entre frases de hipnótica ambiência psicodélica enquanto funde o devaneio sobre o legado do saber e a criação da cultura de novos povos.
Quase como uma marcha militar, o raï surge crescente ao fundo introduzindo uma ambiência fortemente marroquina. Um tilintar solitário e sonorizado e sua ressonância caminha pelo amplo e ainda inóspito cenário. Recebendo uma crescente presença da bateria a partir dos gradativamente precisos golpes na caixa, a introdução flui para um ambiente respaldado por um groove bojudo produzido pelo baixo e por sonares entorpecidamente aveludados que dão uma conotação de trip hop à Sétimo Selo, uma canção embriagante que, sob uma base rap instaurada graças ao groove do baixo, tem um diálogo que se assemelha ao de Tempo Prólogo pelo fato de ao menos parecer escancarar o susto perante ao rápido passar do tempo no que tange a ocorrência da vivência de obstáculos promovidos pelo destino. Ao mesmo tempo, Sétimo Selo questiona a negação da culpa e aristocracia do conhecimento. Tudo em uma base contagiantemente sinistra em sua curiosa sensação de desconforto e insegurança construída pela melodia.
Densa e tensa em calafrios rappeados que se misturam ao trip hop, a canção tem uma base rítmica marginalmente urbana construída com o auxílio do synth, do grave e obscuro caminhar do baixo e da precisa e firme levada da bateria. Novamente embebida em uma narrativa literal penetrante, Tela Preta dialoga sobre a cultura digital de forma a mergulhar no cenário do relacionamento virtual, na ação dos haters e, principalmente, no perigo que tal ecossistema representa para a integridade física e moral do indivíduo. Disseminação de ideias de ódio, preconceito e até mesmo ameaças fazem parte desse novo, ou talvez já velho, cenário que hoje, inclusive, recebe o nome de metaverso pela sincronização de equipamentos digitais. A fuga da realidade é algo que fomenta sua lucratividade e sua popularidade, mas em verdade, não existem maneiras de fugir daquilo que é real. Afinal, até mesmo a tecnologia é feita por humanos e, por isso, as mais suburbanas crenças, ideias e os mais íntimos preconceitos acabam também preenchendo a natureza cibernética. Tela Preta é isso, a tentativa de ser outra pessoa em um local que aparentemente se vende pela promessa de algo novo, belo e, por que não, promissor.
A chuva cai e, com o auxílio do tilintar do cowbell, um aroma sertanejo exala de maneira resistente. Eis então que a guitarra, com seu riff dedilhado, agudo e de caráter contagiante, constrói uma estética folk que evidencia influências vindas da estrutura rítmica da Legião Urbana. Sob utilização do lap steel, o quesito folk, no que tange o ar do interior e, mais expressamente, do sertão, fica ainda mais latente, fazendo até mesmo com que a canção flerte, mesmo que por apressados instantes, com o blues rock. Gradativamente aumentando em elementos sonoros, Autorretrato Falado ganha corpo com a entrada do baixo e um guia rítmico a partir da minimalista levada da bateria. Porém, o mais intrigante é a transformação que o som da escaleta dá à melodia, pois ela a faz mergulhar profundamente em uma estética contagiantemente nordestina, o que reforça ainda mais o caráter sertanejo de Autorretrato Falado. Nessa atmosfera de bang bang nacionalizado, a canção narra os efeitos da educação no lar e da cultura comportamental na criação da essência do indivíduo. Emaranhado em grooves bojudos, Autorretrato Falado narra, ainda, um turning point inesperado na vida do personagem. Vindo do interior, alvo de preconceitos diversos e proveniente de uma família humilde, ele rompe o estereótipo do desfavorecido e, com perseverança, atinge seus objetivos de maneira a surpreender todos aqueles que, nele, não enxergaram nenhuma possibilidade de evolução.
Recortes de reportagens jornalísticas dão um clima de alerta e já comunicam a possibilidade de que o teor lírico trate de impunidade e intolerância. Com base rítmica rap, tal união de trechos de reportagens traz um elo fortemente estruturado pela ebulição repentina de ações de extrema-direita em um período que sucedeu à entrada da família Bolsonaro na bancada política brasileira. É assim que enfim nasce Estranha Fração, uma música rap, densa, crítica, de início áspero e de ares sinistros que dialoga sobre impunidade policial, a marginalização dos desfavorecidos e o crescente preconceito desmedido fomentado por uma camada social personalista egoísta. Estranha Fração é, simplesmente, a hipocrisia do luto ao desmonte de uma sociedade aparentemente perfeita sob as óticas cegas do conservadorismo.
Chiados ásperos se fundem ao tímido beat inserido por DJ B8. Sendo continuada por notas graves que, com suas pausas espaçadas que criam uma semelhança estética com aquela do beat, a canção ganha conotações gelidamente dramáticas. Chorosa, sofrida e dolorosa, Os Uivos é uma canção que representa a superação que, no caso, é originada do fim de um relacionamento. Trazendo um personagem que se perde em devaneios sobre possibilidades não existentes e sobre arrependimentos de algo inconsistente, a canção expressa a nudez emocional do indivíduo como uma área a ser reestruturada após decepções viscerais. Os Uivos é a dor, o grito, o choro e a agonia do luto de algo que não deveria ter seu fim declarado. Principalmente, a música é o luto de uma superação indesejada.
Cantarolares vocálicos. Tilintares do cowbell. Sopros do berrante. Mais que Thelema e mais ainda que Autorretrato Falado, a canção que se inicia tem um perfume roceiro intenso que exala o dulçor do capim e deixa sensitiva a textura do chão de terra batida. Eis que a bateria entra com uma linha de groove ondulante em sua levada 4x4 que pincela, na melodia, caráteres de um indie rock sedutor. O baixo levemente ácido e os pontuais sonares agudos da guitarra fazem amadurecer esse cenário ao mesmo tempo em que lhe dão toques dubs extremamente tímidos. Ainda assim, o que prevalece é uma cama adocicadamente transcendental oferecida pela linearidade sistêmica do synth. Mantra Da Tara é uma música que, ainda com direito a frases progressivamente psicodélicas, dialoga sobre noções econômicas e, assim como Tela Preta, mistura situações viventes no cenário cibernético.
Como um looping narrativo, Órbita tem seu fim decretado da mesma forma como se iniciou. Como uma voz onipresente novamente se comunicando no inóspito cenário da consciência, Tempo (Epílogo) discute sobre o real e o irreal de forma que, assim como foi em Tempo Prólogo, traz uma previsão hipnótica e propositadamente confusa sobre um possível futuro que, levando em consideração a sonorização tenológica que beira até mesmo o sci-fi, assume caráter distópico.
Não fugiu à regra ou à proposta. Em momento algum nem os lirismos, nem as melodias, saíram dos trilhos do escopo melódico-poético acordado para moldar os enredos de Órbita, um disco linear cujos enredos promovem um looping narrativo sobre sociedade, sobre cultura, sobre política. Um trabalho poético que propõe um mergulho nas profundezas da relação com o espaço-tempo, inclusive no que tange o cenário cibernético.
Com brilhantismo e sabedoria, a fusão entre Projetonave e Caco Pontes fez nascer a perfeita sintonia entre arte escrita e arte musicada. Um cenário em que um som, e não mais uma imagem, vale mais que mil palavras. Afinal, com tal sensibilidade sinérgica estruturada entre os dois times criativos, a vanguarda musical entrou em contato com o virtuosismo do clássico ao mesmo tempo em que dialoga com experimentações estéticas.
E nesse sentido, os nove capítulos de Órbita, por meio de melodias que transitam entre ambiências como a do dub, trip hop, rap, indie rock, lo-fi, raï, rock progressivo, rock psicodélico, folk e blues rock, mergulha em reflexões sobre caráteres comportamentais da sociedade, sobre a máquina política, sobre a fragilidade emocional do indivíduo.
Para atingir o grandioso objetivo de ter todas as suas mensagens bem sintetizadas pelo ouvinte, a dupla Projetonave e Pontes recrutou DJ B8 para fundir poema e melodia de forma que o conjunto da obra soe didático, mas, ao mesmo tempo, contagiante, literário e, principalmente, penetrante. O interessante nesse campo é que todas as sonoridades, seja de qual instrumento vier, são nitidamente ouvidas e delicadamente degustadas em Órbita.
Com produção conjunta entre banda e Pontes, o que conferiu uma desmedida liberdade criativa, o escopo técnico do álbum se encerra com a parte visual, o primeiro convite que indica o sucesso ou o fracasso de qualquer obra sonora. Assinada por Lazzarin, ela encarna bem o conceito da relação tempo-espaço, mas também evidencia a multiculturalidade em que o álbum está inserido. Cheia de cores vivas e psicodélicas, a capa é nada mais nada menos do que uma hipnótica imagem que une passado e presente, crença e imaginação, legado e uma noção do ‘novo clássico’.
Lançado em 23 de setembro de 2022 de maneira independente, Órbita é um livro poético-melódico que fala do presente e relembra o passado. Que pensa o futuro e reflete o agora. Um trabalho que tem a capacidade de deixar a previsão do caos atraente em som e tenebrosa em palavras. Órbita é simplesmente o poema melodicamente multicultural que atrai o ouvinte em suas reflexões culturo-comportamentais ácidas e realistas.