NOTA DO CRÍTICO
Nos primeiros amanheceres do segundo semestre de 2022, um novo nome surge no circuito musical brasileiro. A paulistana e também, artista visual Natália Xavier escolheu o momento para anunciar, aos 31 anos, Eu Também Sou Teus Rios, seu álbum de estúdio de estreia.
Um swing nativo, natural e contagiante paira a partir da brisa que faz balançar as copas das árvores da mata. O pandeiro, junto aos batuques ocos do atabaque de Matheus Prado, dá um movimento amaciado que é surpreendido por um súbito silêncio. Eis que a guitarra distorcida de Eder Sandoli entra em cena com um riff distorcido e em tom azedo que começa a introduzir uma levada que flerta com o manguebeat. É então que uma voz limpa, levemente anasalada e forte assume seu posto ao começar a introduzir as linhas líricas. É Natália Xavier trazendo leveza e uma maciez mais contagiante à base rítmica do baião que abraça Não Morra De Sede, Meu Amor. De baixo tímido, mas cujas notas soam firmes pelas mãos de Gabriel de Goes, a canção tem uma estrutura sem grande pressão na base rítmica, mas que chama atenção pela sua mistura de leveza e aspereza transmitida pelas cordas presentes. Propositadamente ou não, são esses elementos que conseguem criar um senso nordestino enquanto Não Morra De Sede, Meu Amor vai evidenciando um enredo sobre autoconfiança, persistência e, principalmente, pela manutenção da essência comportamental do indivíduo. Falando da rotina como algo que muitas vezes prejudica a autoestima, a canção traz o marcante e metafórico questionamento “por onde verteu tuas águas nos últimos séculos?” que leva o ouvinte a uma intensa reflexão sobre onde foram depositadas toda a ânsia e a garra para alcançar seus objetivos.
O oco, agudo e aveludado som do cowbell aparece salpicando a valsa do violão. Ao seu lado no protagonismo sonoro está o tilintar do sino, responsável por incorporar maciez no movimento melódico em construção, que logo é completo por sobreposições vocais onomatopeicas. Assumindo forma de uma sutil continuação do enredo de Não Morra De Sede, Meu Amor, A Insistência Das Manhãs vem com um baião que acompanha a narrativa de esperança e positividade que traz no amanhã a possibilidade de um novo começo. Uma forma de começar uma nova história sem as vestes de um dia impregnado de desestímulos e desavenças. Trazendo à tona a fragilidade e vulnerabilidade da vida como forma de metaforizar as ações do destino, A Insistência Das Manhãs é um convite para a valorização de si mesmo para compreender de que existe a capacidade do enfrentamento de eventos desgostosos sob a máxima ideia de que tudo tem um motivo e tudo passa. No mais, a canção é de uma melodia que consegue construir a ambiência e a energia das danças de roda de maneira sensível e contagiante.
Dramática e reflexiva graças às notas semi-gélidas do piano de Cláudio Tegg, a melodia introdutória faz com que Natália assuma uma interpretação mais introspectiva de maneira a trazer um vocal que muito mostra influência de Elis Regina. Com a união dos violões de Sandoli e Marcelo Lemos, um ritmar sertanejo se constrói de maneira a fazer o ouvinte sentir o aroma do capim molhado pela chuva e uma energia levemente bucólica. É verdade que existe na canção, por meio dos violões, também um flerte com o latino e espanhol flamenco. Com auxílio do caxixi na construção da cadência rítmica, Olho De Tigre é uma canção que narra o ímpeto, o instintivo. A voz da emoção ante a razão. Alguém que sente antes de pensar. Olho De Tigre é a impulsividade com direito ao ensolarado solo de violão e com o compasso do bumbo de Gudino Miranda como auxiliador na pressão da base sonora.
Sons agudos e tímidos são ouvidos ao fundo. Surpreendido por uma gama de instrumentos percussivos que entram em uma valsa uníssona colocando o movimento sonoro, o ritmo em construção tem no violão o único elemento tangível e sensualidade mais evidente. Penélope surge não só como uma canção que critica o consumo da carne, mas também a cultura do delivery e do fast food como a evidência de um hábito alimentar degenerado e sem saudabilidade. Com auxílio do vocal agudo e aberto de Maria Fernanda Batalha, é possível dizer que Natália atingiu seu objetivo de chamar a atenção para tais hábitos culturais ao mesmo tempo em que deu uma ênfase ao refrão onomatopeico e chiclete de Penélope.
Com uma leveza entristecida, o violão dá passagem para um vocal lamentoso e dramático que, na presente faixa, assume o idioma espanhol com boa pronúncia. Minimalista, Recibe Mi Llanto é uma canção de base voz e violão que vem na forma de uma prece em nome dos corações indomáveis
Longe do sofrimento de Recibe Mi Llanto, o piano vem rápido entre suas teclas graves que, junto ao baixo e a pressão da percussão, traz um compasso preciso, enérgico e swingado à canção que amanhece. Com toques dramáticos e um flerte mais forte com a roupagem do flamenco em relação àquela de Olho De Tigre, a faixa-título dialoga sobre a negação da imperfeição, das emoções entristecidas, daquilo que não convém. É uma obra que traz à tona a insegurança de um indivíduo puramente emotivo e volátil.
O atabaque puxa a introdução com batuques secos. Em seguida, a percussão e o violão já começam a desenhar uma base branda sob a estética da MPB. Crescendo para uma melodia contagiante que bebe de fontes nordestinas, Revirada é uma canção que fala de amadurecimento, de aprendizado. Ao mesmo tempo, é possível notar um quê de teimosia por parte do eu-lírico que se vê na insistência de revisitar as mesmas situações sofríveis. É como um vício pela dor que, em Revirada, é acompanhado pelos tilintares do agogô e de ondulações ásperas e de teor quase alucinógeno da distorção da guitarra.
Dramática, épica, lamentosa. A introdução de Confios é como olhar pela janela a construção de um céu cinza cujas gotas de chuva caem bojudas e atiçam a fúria do mar. Do vidro embaçado, os olhos estão marejados e olhando para um ponto fixo que reflete, simplesmente, o inconsciente revivenciando as memórias de eventos nostálgicos, mas dolorosos. Esse é o cenário que as notas do piano oferecem ao ouvinte enquanto Natália vai construindo uma ambiência lírica introspectiva e reflexiva. Confios é uma canção que narra, de fato, a introspecção do indivíduo em um processo visceral de autoconhecimento e pela busca de uma sensação desmedida de pertencimento e acolhimento. É a busca pelo sentir parte de algo que motive e dê proteção.
Emotivo e dramático, Eu Também Sou Teus Rios traz em si uma estrutura que parece narrar, entre seus oito capítulos, um enredo que emana um aroma biográfico que apresenta uma mulher volátil, intensa, que dá voz à emoção e que é regida por um grande senso de impulsividade.
De musicalidade interessante ao fundir MPB, sertanejo, flamenco, manguebeat e baião, o álbum traz brasilidade e uma sensibilidade melódica notável que acompanha Natália Xavier em seus debruçares sobre terrenos introspectivos e chorosos que falam sobre identidade, autoconhecimento, pertencimento e que analisam de maneira crítica parte do que rege a cultura contemporânea.
Claro que, nesse processo, o time de músicos por ela recrutado, que também envolve nomes como Rogério Nascimento, muito coopera para a ampliação da emoção e da intensidade vivida a partir dos lirismos apresentados em Eu Também Sou Teus Rios. E é aí que entra a consciência e sinergia da mixagem.
Feita por Douglas Pardini e Miranda, ela apresenta sincronia e sinergia com cada palavra proferida por Natália. Afinal, as sonoridades aparecem límpidas e capazes de transmitir leveza, esperança, alegria e, ao mesmo tempo, dor e lamentação entre campos introspectivos e sedutoramente contagiantes. Tais méritos cabem também a Sandoli, mesmo que este também seja encarregado da produção.
Encerrando o escopo técnico do álbum vem a arte de capa. Assinada por Alice Gouveia, ela traz o busto nu de Natália afrente de um plano de fundo vermelho sangue que muito remete aos ambientes indígenas. Trazendo ainda um poema de grafia manual que traz a mensagem de legado, a arte acaba casando com a composição do álbum, que traz uma mulher forte, mas volátil.
Lançado em 05 de agosto de 2022 via Embornal Records, Eu Também Sou Teus Rios é um disco intenso, volátil e inconstante. É a descrição do instinto do indivíduo, do ato do impulso dualizando com a sutileza e a leveza. É o processo do autoconhecimento de alguém vivendo entre os extremos emocionais.