NOTA DO CRÍTICO
Desde 2017 produzindo música através de parcerias com slammers e MCs paulistas, o contrabaixista, arranjador e compositor Marcos Paiva, junto de seu sexteto MP6, conseguiu dar origem a Slamousike. O álbum é o ponto de partida para um projeto que propõe a fusão do jazz com o rap.
O vento balança as últimas folhas secas que lutam em se manter presas aos galhos de uma árvore já nua. A grama que a cerca, de cor acinzentada pelo volume de folhagem em decomposição, samba em sintonia com os sopros uivantes da ventania. Esse cenário inóspito, mas preenchido de uma melancolia extasiante, é construindo simplesmente através das notas graves espaçadas do violão da programação de Marcos Paiva. Como na música clássica, o espaçamento entre as notas dá voz à sonoridade do silêncio, uma estratégia que derrama toques dramáticos ao enredo melódico que, aqui, se encontra em processo de maturação. Eis que uma voz rasgada, aguda e levemente ríspida entra rompendo a embriaguez entorpecida da sonoridade minimalista. É Kivitz que, ao introduzir versos rappeados repletos de coloquialismos, evidencia a mescla entre o orgulho das origens com a realidade de um preconceito velado que ainda rege, de maneira às vezes inconsciente, grande parte da rotina social de um país construído com base na mão de obra forçada. Nesse ínterim, Maestro acaba sendo agraciada por tilintares que, vindos da bateria de Edu Ribeiro, entregam textura e uma amplitude de tensão à sonoridade. Não à toa que Maestro fala do preconceito, do personalismo, da hierarquia, do menosprezo daquele que um dia foi estereotipado como mais fraco, mas que carrega sangue quente e um orgulho de suas origens que o torna inquebrantável e inabalável. O que assunta é que, por mais que seu enredo seja baseado em cenários passados, ele escancara o fato de que o que antes era permitido e comum, hoje corre na surdina, é marginalizado. O preconceito nos dias de hoje só é escondido, mas não inexistente. E sob a doutrina do ódio, que libera atos descriminatórios e que faz prevalecer a intolerância, ele passa a, gradativamente, se tornar novamente legalizado representando um retrocesso no desenvolvimento de empatia e respeito mútuo.
Swingado e repicado, o ambiente que se constrói é mais alegre e agitado. Puxado pelas notas levemente graves do piano de Gustavo Bugni e de uma bateria inquieta, o cenário é estruturado sob a base do jazz de maneira a instigar a dança através de toques intrinsecamente dramáticos. Com o auxílio das notas florais da flauta de Cássio Pereira, que assume a função de regente para a sonoridade branda construída entre o trompete de Daniel D’Alcântara e o trombone de Jaziel Gomes, uma sensualidade começa, gradativamente, a tomar corpo enquanto mistura elementos da bossa nova e da tropicália de maneira a oferecer uma melodia conotativamente artística. Com a entrada do primeiro verso, é o trombone que se mostra no protagonismo de um verso sonoro que começa a flertar com uma roupagem mista de MPB e samba ao mesmo tempo que, a base estruturada pela bateria, se mantém em defesa do jazz. Eis então que uma voz aguda e ácida entra em cena. É Killa Bi que, entre rimas e versos de longas explanações, dialoga sobre perseverança, humildade e autoconfiança. Quem Vem Junto é uma narrativa que escancara a realidade da parcela social pouco endinheirada. Aquela que luta, que sua, que sonha. Aquela que tem e é grata a cada irrisória conquista. Imersa em fortes e ácidas críticas sociais, Quem Vem Junto ainda segue o legado de Maestro ao dialogar sobre conceitos personalistas que definem aquele que tem e aquele que deve. É uma nova ótica do preconceito que, aqui, recai sobre o pobre, o tido como favelado e desmerecedor de alegrias. É como se a canção fosse uma pergunta sem continuação que, com medo de represália, queria indagar: ‘quem vem junto lutar pela igualidade?’.
Alegre, doce e contagiante. É como o alvorecer de um novo dia ensolarado e repleto de brisas florais. Isso é o que o piano consegue oferecer em sua introdução solitária. Já comunicando swing, ele dá passagem para uma bateria de levada mais contida e introvertida. Grandiosa e quase épica, a canção entra em uma crescente que cria uma semelhança estética com Lady Marmalade, single conjunto de Christina Aguilera, P!nk, Mya e Lil’ Kim. Propriamente sensual de maneira a recriar a atmosfera de cabaré, Navegante Trêmulo é narrado por uma voz grave, firme e consciente de sua posição. Juliana Jesus vai narrando a relação com o tempo, sobre a imprevisibilidade da vida, sobre a inconstância emocional. Não à toa que Navegante Trêmulo é uma aula que ensina a não temer o destino, um evento que simboliza tudo aquilo que é incerto e imprevisível. Um poema musicado que, acima de tudo dialoga sobre a importância do legado geracional da intensidade. Um single de Slamousike que tem nos metais os elementos alicerçantes de um terreno maleável, sensual e, por que não, intenso.
O ácido aveludado do wurlitzer entra em contato com o swingar da bateria em uma sincronia contagiante e alegre. Com a entrada do trompete, a harmonia da canção, que ainda está em processo de maturação, atinge uma grandeza sensual que mergulha na roupagem do soul com maestria. É nesse momento que Max B.O. entregando um rap por meio de um timbre intermediário e suave de maneira a casar com a energia que emana de Meu Caminho, uma canção que discute o conceito de normalidade ao mesmo tempo que chama a atenção para a falsidade da personalidade, a insegurança, a impotência e a orfandade crescente de política. Meu Caminho é a história de alguém que se garante e que tem nas rimas um elemento de destaque na criação do movimento rítmico. Uma música que, pela interpretação de B.O., evidencia a influência da forma como Marcelo D2 dialoga suas canções, tendo, aqui, uma especial menção à Desabafo, canção parceria entre D2 e Cláudya.
O grave, levemente acelerado e swingado do piano surge em um uníssono com o minimalismo da bateria. Com a entrada do trompete, a alegria toma conta a partir de uma inclinação intensa no campo do samba, o que entrega uma malemolência brasileira típica à canção. Com frescor, suavidade e toques tropicais quase cariocas, é possível identificar semelhanças que vão desde Thiaguinho a Alexandre Pires. Inspiração é uma perfeita jam session que funde o preto dos Estados Unidos com o preto do Brasil, uma miscigenação entusiasmada que tem, ainda, o contrabaixo como elemento que levanta a energia melódica com seu encorpado grave que sobressai em voos sambados em meio à base jazz.
O wurlitzer volta à ativa junto a uma bateria de levada repicada e inconstante. Acelerado e introduzindo diferentes à canção, o instrumento percussivo, por meio de sua linearidade rápida no chimbal, dá uma estrutura tátil para um verso melódico que tem o grave do trombone como protagonista. Quando ocorre a fluência para a introdução do primeiro verso, o aveludado-agudo-floral do sax alto de Ferreira se torna um novo elemento que aprimora a sonoridade em desenvolvimento. Quase como se desenhasse a estrutura do folk francês, Danço E Passo segue sua sensualidade jazzada que, por meio de Max B.O., tem a sensualidade rítmica reforçada enquanto dialoga sobre preconceitos, estereótipos e a inconsciente conformação de uma falsa identidade socialmente imputada. Danço E Passo, então, é a representação daqueles que se garantem, que são educados pela rua e assumem um senso de autoconfiança desmedido que os defendem do julgamento terceirizado. Danço E Passo é o som da autoconfiança, da imponência e da predestinação.
Dramática e densa, a canção que se inicia é regida pela mesma linearidade sincopada e acelerada do chimbal que se manteve em Danço E Passo, mas tem um peso denso e tenso diferenciado pelo sopro grave do trombone que acaba se unindo à caótica sintonia entre o sax e o trompete. Swingado e encorpado graças ao contrabaixo, o primeiro verso recebe novamente o ácido rasgado de Kivitz para um diálogo que traz o rap como arma contra a desigualdade, como um meio de protesto que evidencia a infelicidade incrédula daquele que representa um povo que mendiga um espaço dominado por aqueles que negam a existência dos desfavorecidos. De Samba E Flor é uma canção que traz a arte da poesia como um escapismo da tristeza fomentada pelo preconceito com pretos, humildes e moradores de favela: a liberdade socialmente entregue à polícia para matar em nome de uma falsa ordem. Dividida em dois atos, De Samba E Flor tem também, sob a força timbrada de Juliana, a visão do preconceito perante o sexo feminino. O estereótipo do bandido, da empregada doméstica. A rejeição pela classe social e pela cor. Um som amplo, chocante e forte que atiça os compactuantes, machuca os pacificantes e entretém os negacionistas.
Ruído branco. O som de um silêncio trepidante rompido pelo grave do contrabaixo e de uma agudez estridente que se assemelha ao sonar do tamborim. Existe, aqui, um suspense incômodo e curiosamente caótico em seu minimalismo rítmico guiado pelo vocal de Kivitz. Linear, Corre Criança é quase um soco no estômago que, ao trazer a ingenuidade, a pureza e a imaturidade juvenil, dialoga sobre impunidade, intolerância. Violência. Dramática e intensa, ela é como um grito de desespero pela liberdade fundido em um choro agoniado que dá asas à impotência em proteger o frágil da brutalidade. É como uma prece calada para que aquele que nasce não seja corrompido pelas arestas agressivas de uma sociedade que julga, que mata, que ri daquele que ainda é indefeso. Parafraseando o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, o homem é bom, a sociedade o corrompe. Esse é o verdadeiro dilema intrínseco na narrativa dramática de Corre Criança, uma música que, através do violino de Wanessa Dourado, chora lágrimas de sangue criadas pela lamentação e decepção.
Revolucionário pode ser a palavra que define sua estética. Ousado ao unir referências negras dos Estados Unidos e Brasil. Crítico ao escancarar feridas de um país que cegamente se diz conviver em harmonia com seu passado. Poético pela forma com que traz as lacunas sociais passadas por gerações. Slamousike não é só a contracultura, é a sonorização da representação de um povo marginalizado.
O rap por si só já vem acompanhado da conotação da música que critica. O jazz vem com a classe, o swing e a reverência do ritmo que representa não só a comunidade preta estadunidense, mas também a origem do rock. Marcos Paiva ao lado do sexteto MP6 e convidados, conseguiu executar essa fusão de maneira harmônica e sincrônica.
Ao misturar a brasilidade e a malemolência de gêneros típicos de um país centenário como MPB e samba e outros que também assumem grande representatividade como rap, jazz e soul, o álbum pode até se vender pelo swing e pelo ritmo majoritariamente dançante. Porém, a verdade é que ele se caracteriza por um senso crítico desmedido que avalia, reflete e rechaça o preconceito em suas diversas origens.
Seja movido pela cor, pela raça, pela origem, pelo poder aquisitivo ou pela vestimenta, o preconceito está aí, andando de mãos dadas com uma sociedade que finge sua inexistência. E é exatamente esse o legado de Slamousike: mostrar que o preconceito racial no Brasil não só existe, como também é institucionalizado em sua cegueira fantasiada de normalidade.
Repleto de rimas, ritmo e coloquialismos, o álbum fala a linguagem da rua, do povo como forma de representar as pessoas postas às margens de uma comunidade falsamente perfeita. E nisso, Big Rabello teve grande peso ao executar uma mixagem capaz de oferecer uma sonoridade que grita por si só, mesmo no silêncio.
Claro que a produção de Paiva foi peça-chave nesse processo, pois o caminho por ele indicado, além de regado em liberdade criativa, proporcionou fortes alfinetadas nos pontos mais frágeis das feridas histórico-sociais ainda longe de cicatrizar. Por isso que é preciso estômago para digerir o que Slamousike tem a dizer.
Por fim, a arte de capa assinada Antônio Brasiliano traz luz e sombra assim como uma combinação de barroco e renascimento. Além disso, ela traz uma conotação clássica que pode até enganar o ouvinte sobre o conteúdo do álbum, mas em verdade, por ser arte ela já é clássica.
Lançado em 05 de agosto de 2022 de maneira independente, Slamousike é angústia, é desespero é rechaço. É um grito mudo de uma população renegada à marginalização por quebrar a imagem de falsa perfeição comunitária. O preconceito no Brasil existe, velado ou não e o álbum apenas ajuda a abrir os olhos daqueles que negam sua existência.