NOTA DO CRÍTICO
Passados cinco anos desde sua estreia no mercado musical francês com Prisme, seu álbum de estreia, o M’Z retoma os holofotes para si ao anunciar seu mais recente material. Intitulado La Civilisation De La Graine, o segundo disco de estúdio da banda vem após Cool Is Watching You, o primeiro EP da discografia.
É possível sentir um líquido viscoso, como a placenta, envolvendo os corpos. Cores frias e quentes formam valsas repentinas do lado de fora dessa espécie de doma enquanto a sensação de conforto vai dando espaço para o despertar da iniciativa de se desvencilhar de tal proteção quase uterina. Ainda de olhos fechados, o personagem começa a abrir, lentamente, suas pálpebras e começa a enxergar, com uma visão turva, a paisagem realista e um pouco distante daquela calmaria extasiante que o inconsciente lhe oferecia. Isso acontece quando, entre notas agudas e em sintonia hipnótica, o baixo invade a cena e começa a destrinchar doses conscientes e racionais ao ambiente. De cadência marcante e um corpo que entrega certos toques de pressão, o instrumento passa a receber o auxilio dos tilintares da cúpula do prato de condução, quem auxilia na construção de um compasso mais ativo e de embrionária excitação. Com a entrada do teclado, há uma entrega de energias psicodélicas, introspectivas e até mesmo alucinógenas que possibilitam o livre caminhar por um estado de transe. Enquanto isso, um som de uma alegria entorpecida e de luminosidade resplandecente vai criando novas texturas ao êxtase que se desenha a partir de uma melodia que mescla ambiências sessentistas e setentistas a partir do swing, e do misto de psicodelia e progressividade. E nesse ínterim, Des Re Cits surpreende na entrada de uma segunda guitarra que entrega agressividade, pressão e consistência na base rítmica. Em meio ao seu dialogar pela transição emocional por meio do amadurecimento, paz e caos dividem o mesmo espaço. E assim o é também entre os gêneros que regem sua melodia. Afinal, além de ter rock psicodélico e progressivo, Des Récits também traz, por meio da guitarra rítmica e do baixo, um singelo imergir no campo do jazz. A canção funciona como a corrupção da ingenuidade.
Tons de um vermelho opaco rasgam a escuridão da noite. Puxada pelo baixo grave, preciso e com presença cuidadosamente colocada, a melodia vai ganhando ares sombrios e temerosos enquanto bateria e guitarra vão assumindo seus respectivos postos. Curioso notar que as duas guitarras passam a funcionar como dois personagens onipresentes e de criação mental. É quase como o anjo bom e o anjo mal tentando, simultaneamente, persuadir o hospedeiro. Ainda assim, o ouvinte pode se perceber, por meio da densidade sonora de Edifions De Temples Absurdes, em meio a um levante. Janelas estilhaçadas. Fogo para todos os lados. Carros tombados. Sangue. A fúria nos olhos dos protestantes. A sede insaciável pelo caos. Pela desordem institucionalizada. De certa forma, o diálogo proposto em Des Re Cits tem continuidade em Edifions De Temples Absurdes, uma música que traz, ainda, um swing áspero que fornece uma imersão curiosamente contagiante pelo campo do hard rock, do blues e hardcore em rompantes que ajudam a levantar a energia da canção.
A forma como a guitarra se apresenta fornece a construção de um cenário mais introspectivo e até mesmo reflexivo. É como se o ouvinte se visse no alto de uma colina observando o mar enquanto o vento, em uma valsa suave, mas descoordenada, trouxesse os resquícios de um dia que deveria ser esquecido. É então que, ainda no transe do momento, o espectador passasse a sentir a brisa balançar seus cabelos enquanto os pensamentos imergem para a lembrança de um momento específico que, de súbito, faz com que as lágrimas represadas comecem a fluir pelos seios da face. Não por acaso, existe em Au Confort De La Memoire Qui Sublime uma pincelada generosa de nostalgia que captura a plateia e a coloca em perfeita sintonia com a energia melódica. Com direito a rompantes medievais, Au Confort De La Memoire Qui Sublime confirma seu caráter emocional e melodramático, a tornando a balada entorpecida de La Civilisation De La Graine.
A melodia que amanhece é quase como um medley enérgico de Au Confort De La Memoire Qui Sublime. Afinal, sua introdução macia e levemente chorosa faz com que o ouvinte comece a fazer uma transição fluída para o novo enredo que se inicia. A estratégia é algo necessário, pois de súbito a canção deságua em uma roupagem rítmica rappeada e compassada. No entanto, essa atmosfera casa bem com o contexto de Assemblée Populaire, pois sua sonoridade faz com que o ouvinte se veja em uma espécie de reunião reivindicatória expondo suas visões de mundo e suas insatisfações como cidadão. É curioso, mas ela passa, inclusive, a impressão de algo voltado para o povo propriamente dito e não instituições endinheiradas. Por essa razão, pode se dizer que Assemblée Populaire funciona como uma espécie de trilha sonora da vertente da esquerda francesa que quer derrubar aquele que se vendeu como candidato do centro Emmanuel Macron, quem decepcionou inúmeros eleitores ao reduzir o imposto sobre a riqueza daqueles mais abastados.
Está à noite. A iluminação de velas evidencia uma roda em que diversas pessoas estão sentadas e de mãos dadas enquanto envoltas em uma mata virgem. Cantos onomatopeicos e vocálicos começam a criar uma atmosfera mística e quase religiosa ao cenário. Contudo, conforme o baixo vai assumindo sua posição de maneira provocante, tal senso de espiritualidade vai se perdendo de maneira que as verdadeiras intenções vão sendo evidenciadas. E é, com o intuito de causar uma quebra de paradigmas, que a melodia vai assumindo, com a entrada da guitarra e da bateria, um senso crítico notável. Como a faixa mais longa de La Civilisation De La Graine, La Spiritualite Marketing, como o próprio nome sugere, critica e rechaça a forma como a política conquista os eleitores a partir de falsas posturas e enganosas frases de efeito. Por essa razão, e mesmo que tenha uma linguagem mais branda, La Spiritualite Marketing entra no mesmo espectro de Assemblée Populaire no âmbito de crítica ao sistema político vigente no país.
Grave, brutal e áspera, a sonoridade chega a espantar o ouvinte pelo ousado distanciamento com a roupagem padrão do progressivo. Mais metalizada, a melodia transita entre a desordem e um falso senso de organização social. Com direito a sons dissonantes e desarmônicos entre si, a intenção de M’Z em construir um ambiente crítico se torna claro ao inserir, entre as linhas do metal, flertes com o noise e o stoner rock. Interessante perceber que, nesse processo, Bureaucratie Be Mol é a responsável por formar a trinca política de La Civilisation De La Graine, pois ao lado de Assemblée Populaire e La Spiritualite Marketing ela fecha o diálogo de descontente posicionamento em relação às políticas vigentes e apresenta, em determinadas pontes rítmicas de aparente calmaria, o cinismo e o deboche congressista em relação aos anseios da sociedade. Interessante perceber que até mesmo a nomenclatura da música indica tais interpretações. Be Mol, no contexto musical, sugere sonoridades mais graves e, ao juntar com a palavra ‘burocracia’, já se tem a ligeira ideia de que a canção abordará o conceito burocrático de forma crítica, o que de fato acontece.
É como os ventos da mudança. O ar da esperança. A energia motivacional. O tímido dissipar da insegurança. Com suavidade e leveza, a melodia vai apresentando uma base blues que vai amaciando os ouvidos do espectador que ainda se encontram aturdidos pela brutalidade de Bureaucratie Be Mol. Enquanto as guitarras acabam funcionando como uma espécie de morfina, é o compasso quebrado e levemente acelerado da bateria que vai imputando consciência ao ouvinte. Enquete Payenne, pelo título, pode sugerir tratar tanto de suborno e corrupção quanto o próprio pagamento de salário. É aí que, entre versos melódicos de uma melancolia inebriante, que o M’Z convida o ouvinte a refletir sobre as diferenças salariais e as prioridades monetárias a que o governo dá mais atenção. Talvez por esse motivo que Enquete Payenne seja adornada por uma sonoridade reflexiva e, ao mesmo tempo, entristecida e chorosa.
Denso, preciso, grave e com forte groove. A melodia introdutória faz com que a canção que nasce tenha forte parentesco estilístico com Bureaucratie Be Mol. Metalizada, ela possui guitarras sincrônicas em riffs graves e uma bateria de levada bastante presente e bem marcada que tem no bumbo duplo o símbolo de seu compasso. Mesmo com uma sonoridade inicialmente linear, a estrutura rítmica consegue fazer com que o sangue do ouvinte entre em processo de ebulição, as pupilas dilatem, os punhos se fechem e a cabeça comece a balançar no tempo melódico. Como ambiência cenográfica, o ouvinte se vê em meio a escombros e faíscas que queimam o restante dos destroços. O céu e escuro e preenchido por relâmpagos que, com seus clarões, atemoriza qualquer um que ouse caminhar ao relento. Mas no centro de tudo está uma mulher de feição cinicamente satisfeita dançando uma valsa monologa e desajeitada. É Ishtar, a Deusa grega da guerra reverenciando o resultado desastroso e carniceiro da belicosidade. Em meio a tantas disputas armamentistas ocorrendo em simultâneo no planeta, como a Guerra da Ucrânia, a Guerra da Síria e os conflitos bélicos em exercício em países como Iêmen, Etiópia, Mianmar, Haiti e Afeganistão, Ishtar Dance, ao mesmo tempo em que soa como uma provocação aos líderes das nações que financiam tais eventos, se torna um alerta sobre as consequências sociais que tais situações podem acarretar.
É interessante e ao mesmo tempo curioso quando um trabalho puramente sonoro consegue se transformar em algo audiovisual aos olhos inconscientes e intimistas do ouvinte. Mais interessante ainda é quando um álbum instrumental consegue atingir esse feito. La Civilisation De La Graine é um exemplo disso e com um detalhe a se somar: as melodias funcionam como completos versos que verbalizam todo o conceito por trás do álbum, que é a insatisfação popular.
Por meio de melodias progressivas e que abraçam outros subgêneros do rock como o metal, o hardcore, o jazz, o stoner rock, o noise rock e o hard rock, o álbum caminha por uma atmosfera política abundante e repleta de críticas às medidas governamentais em vigor na França. Questões salariais, monetárias e que põe em cheque as prioridades de um governo que se diz de centro são alguns dos assuntos perfeitamente verbalizados em cada acorde, nota ou groove que se ouve.
Não por acaso, La Civilisation De La Graine é marcado por um grupo de canções politizadas formado por títulos como Assemblée Populaire, La Spiritualite Marketing, Bureaucratie Be Mol e Enquete Payenne. Cada uma dessas composições ajuda a ampliar a atmosfera de levante proposta pelo M’Z.
Contudo, o álbum também traz delicadezas traduzidas em cenografias melódicas reflexivas, melancólicas e nostálgicas que convidam o ouvinte para olhar ao redor e, principalmente, para o próprio interior e dialogar com as memórias mais profundas e doídas. É o caso da balada Au Confort De La Memoire Qui Sublime.
Para sintetizar todos esses pensamentos conflitantes e até mesmo inquietantes, Mathieu Torres, responsável por toda a instrumentação do álbum, se desdobrou também entre produção e mixagem. Foi em tais funções que ele mergulhou em um estado contemplativo, analítico e sensível para deixar que o som falasse por si. Para isso, a mixagem, em especial, teria de ser impecável, o que aconteceu. Nela, todos os sons estão em perfeita equalização enquanto que a produção ajudou a fechar o conceito rítmico.
Fechando o escopo de La Civilisation De La Graine vem a arte de capa. Assinada por Stéphanie Artaud, ela já comunica o conceito de classe com uma mistura de caça às bruxas por ilustrar a execução daqueles que pensam diferente. Vindo de um álbum de significativo peso político, tal obra diz muito sobre protesto, heterogeneidade de pensamento e luta pelo direito de ter as insatisfações ouvidas pelos donos do poder. Um ponto interessante do desenho em questão é o céu que adorna a paisagem em preto e branco. Cheio de formas arredondadas e circulares identificadas por linhas pontilhadas, ele apresenta grande influência de Van Gogh, em especial à sua obra Noite Estrelada.
Lançado em 24 de junho de 2022 via Luminol Records, La Civilisation De La Graine é um álbum que dá voz à boa parte das inquietações e insatisfações do povo francês. É um trabalho que, principalmente, distorce a máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Afinal, cada esquina rítmica funciona como um livro sócio-político cheio de opinião.