NOTA DO CRÍTICO
O projeto de Ciro Lubliner é recente. Pode se dizer com seu pouco mais de um ano de vida, apenas alguns sons e sílabas saem conscientes de sua boca. Por outro lado, a mente já está à frente de sua própria capacidade de articulação com um turbilhão de ideias e pensamentos inconscientes. É nesse ínterim que o mevoi anuncia Seja Lá O Que Isso Seja, seu disco de estreia.
Uma atmosfera leve que beira o astral se forma diante dos olhos do ouvinte. Existe leveza e uma sutileza sonora vindas dos acordes da guitarra em sutil distorção que acompanham um ecoar transcendental vindo de uma sonoridade lançada pela programação de Rafa Well. Sons vocálicos quase ululantes surgem no momento em que a melodia engata uma linearidade cambaleante cuja sonoridade encarna estéticas psicodélicas e amplamente sensoriais que são guiadas pelo compasso minimalista da bateria de Hiro Ishikawa. Eis então que tudo evapora e apenas o que se ouve é a estridência grave do sonar das cordas do baixo que funcionam como uma ponte entre o que até então se caracterizou pela dobradinha intro e primeiro verso para o refrão, momento em que Voo assume um caráter ácido, hipnótico e embriagante que desemboca em um explosivo mix de estéticas sonoras como stoner rock, post-rock e rock alternativo. Em sua máxima, porém, muito se percebe de uma sonoridade reflexiva que beira a superfície da melancolia.
O violão invade o horizonte proporcionando um adocicar bucólico que cria uma ambiência folk. O lampejo encorpado do baixo vem repentinamente romper, por alguns instantes, a sonoridade linear e ondulante que se concretizava no decorrer da melodia. Apesar dessa maciez embriagante, o que Serguei guarda de surpresa ao ouvinte é que, por meio do timbre agudo de Ciro Lubliner, o enredo que se evidencia é sobre autoafirmação. Porém, no que tange as profundezas do lirismo, essa autoafirmação vem acompanhada de aceitação, assumição da própria identidade e o consequente enfrentamento das situações que por ventura sejam vivenciadas a partir de tal atitude. Há também, ainda, menções discretas à impunidade e intolerância que permeiam a sociedade atual. Construída a partir da justaposição de duas palavras, Sergay é a narrativa que ilustra o que passa o público LGBTQi+ no momento da descoberta de sua atração sexual e o processo que segue no caminho para o assumir a própria identidade perante uma comunidade hipócrita que esconde diversos preconceitos.
Nauseante, denso e até mesmo com toques sombrios e tensos. É assim que o violão se posiciona solitário nos primeiros contornos da melodia. Elementos percussivos trazidos por Henrique Rocha entram em cena dando texturas e movimento à sonoridade que vai desenvolvendo certa linearidade estética até o momento que um sonar semelhante a uma sirene ecoa lentamente pelo ambiente. Sussurrada, a voz de Lubliner aparece oferecendo um lirismo falado que casa homogeneamente com a calmaria rítmica que, de súbito, é rompida por um urrar rebelde, raivoso e distorcido da guitarra que dura apenas alguns instantes, mas já consegue abalar o marasmo construído até então. Despreparado é uma canção que, de certa forma, casa com o conteúdo de Sergay apenas pelo recorte do modo de enfrentar a vida. Afinal, como o próprio nome da presente faixa sugere, o que o enredo narra é uma pessoa que está, de fato, despreparada, destreinada e desprovida da capacidade de lidar não só com a flexibilidade da vida, mas com sua falta de previsibilidade e todas as surpresas emocionais e externas que ela pode oferecer. Depende.
Com um groove macio, a bateria volta à tona a partir de um uníssono repentino. De levada lenta e espaçada, ela oferece despropositalmente um senso de incerteza e dúvida que flertam com o sentir da desproteção e da insegurança. Formando uma atmosfera de rock alternativo por meio da distorção ácida da guitarra solo que sobrevoa o melancólica harmonia formada entre guitarra base e bateria na base rítmica, Jogo De Espelhos se concretiza como uma balada inebriante que flerta em alguns momentos com certo tom embrionário de um metal adormecido. Dramática e amplamente melódica, Jogo De Espelhos é uma canção que exorta o sentimento da falta de acolhimento e até mesmo pertencimento por, metaforicamente, refletir algo diferente da homogeneidade presente nas massas. É a tristeza pelo vitimismo ocasionado pela falta de liberdade de expressão e, novamente, pela intolerância social perante tudo aquilo que foge à regra de uma equívoca normalidade. Curiosamente, ainda, no quesito melódico pode se perceber uma semelhança com o tom dramático que a melodia da canção assume com aquele presente nos refrães de Amor Maior, single do Jota Quest. Definitivamente, Jogo De Espelhos pode ser considerado um importante single de Seja Lá O Que Isso Seja.
Leve e emanando uma energia mais alegre com a mistura das estruturas da MPB, da música alternativa e das pinceladas de psicodelia, Deixa Pra Lá traz um swing diferenciado, mas ainda contagiante capaz de trazer o ouvinte para si. Trazendo semelhanças estéticas com a sonoridade de nomes como Rita Lee e Os Mutantes pelo tom psicodélico e setentista, Deixa Pra Lá é uma canção que parece tratar de desistências, mas na verdade é o oposto. É uma canção que estimula o pensamento de ser capaz, capaz para todas as atividades da vida.
Alegre e contagiante de maneira a recriar, mesmo que por alguns instantes, a atmosfera melódica extasiante de I’ll Be There For You, single do The Rembrandts, Errei vem com um rock alternativo cuja estética recria perfeitamente os últimos respiros da década de 90. Não por acaso, o vocal de Lubliner surge ácido e levemente azedo de maneira a relembrar o timbre ácido e doce de Liam Gallagher. Oferecendo um veludo adocicado na ponte entre verso e refrão a partir das notas adocicadas do piano de João Paulo Paixão, Errei é uma canção em que o eu-lírico é estimulado a sair da zona de conforto em que se encontra, zona que o classifica socialmente como uma pessoa sem ação e iniciativa.
Uma bela e macia melodia surge com uma macies nostálgico-melancólica contagiante e mornas como um cobertor em noite fria. Assim como em Despreparado, a voz de Lubliner surge em sussurro cujo timbre, ao se assemelhar com o de Sami Chohfi proporciona uma atmosfera intimista e introspectiva que flerta com a estética indie. De energia mais entristecida, a melodia segue uma linearidade até o dissipar instrumental e o sonar do chiado e de uma agudez sutil. Eis que Atávica recebe outra divisão. Na nova métrica, ela exala um positivismo esperançoso e até mesmo transcendental por meio do instrumental regido pela guitarra de riff reenergizante e sensível de Diego da Costa. Na nova métrica, mais do que qualquer coisa, os sentimentos depreciativos e deprimentes dão lugar à esperança à própria positividade e até mesmo à noção de uma crença baseada em vida após a morte.
O compasso do violão traz uma alegria contagiante cuja métrica em rockabilly se assemelha com aquela executada por Brian May na introdução de Crazy Little Thing Called Love, single do Queen. Sob uma batida em 4x4 e uma voz radiofônica, a canção tem um leve quê de humor que beira uma singela visão de mundo cão. Ao mesmo tempo, O Mundo Que Ri é uma canção que aborda a preocupação com a opinião alheia, com os julgamentos e o consequente esquecimento na preocupação para consigo mesmo. Com raspas de blues, O Mundo Que Ri pode se juntar ao lado de Jogo De Espelhos no time de singles de Seja Lá O Que Isso Seja.
O baixo surge como trotes de tons decrescentes. A guitarra se une a ele posteriormente nesse mesmo trotar sonoro criando uma tensão que flerta sutilmente com o cômico e o provocativo. Velho Normal é uma música que já traz um humor ácido no próprio título ao brincar com a definição de ‘novo normal’ construído pela pandemia. “Não se perturbe se não é mais tão igual”, entoa Lubliner em uma clara tentativa de apaziguamento perante a nova realidade social. Com auxílio de Ishikawa nos vocais, Velho Normal critica ainda as fake news e o extremismo político de maneira leve e acidamente debochada. No mais, a versatilidade melódica da canção atinge outros patamares ao inserir versos na métrica do chiptune entre a aspereza e psicodelia da guitarra, o adocicado torpor do teclado e a sensualidade sutil da percussão pairando pela atmosfera dramática que finaliza Velho Normal.
De fato, creditar Seja Lá O Que Isso Seja somente como art rock seria menosprezar todas as texturas sonoras e rítmicas desenhada por Ciro Lubliner e sua prole de músicos. Afinal, o álbum é muito mais do que unidade. Ele é plural e é questionador. É eclético e é rebelde. É o último fôlego antes da rendição ao cansaço.
Oferecendo texturas ácidas, melódicas, aveludadas, estridentes, embriagantes e nauseantes a partir de uma trilha sem destino que passa pelo indie, psicodelia, rock alternativo, blues, rockabilly, stoner rock, post-rock, folk e mesmo pelo chiptune, o disco oferece noções de esperança, de autoafirmação, de perseverança e de autovalorização que passam pelas sensações da tristeza, da melancolia e da nostalgia. No fim, o que fica é a crença em dias melhores e de que tudo tem o seu propósito.
Autonomia é outra coisa que é emanada por Seja Lá O Que Isso Seja. Afinal, com produção assinada pelo próprio Ciro Lubliner ao lado de Well, a liberdade criativa é garantida na experimentação das mais variadas sonoridades. São esses mesmos sonares que são capturados em uma equalização que representa todo o devaneio palatável e degustativo que Lubliner projetou no álbum.
Curiosamente, a arte de capa do trabalho é um fator até mesmo lúdico e recreativo. Feita por Caio Kenji, ela consiste em uma arquitetura simples, mas cuja disposição dos detalhes a torna própria de uma era setentista e cuja conjuntura emite, além de uma noção hipnótica, a ideia de um túnel do tempo. Tal túnel do tempo, inclusive, emite a impressão de que as palavras que o compõem estão em movimento circular e em sentido horário, criando assim uma interessante ilusão de ótica.
Lançado em 22 de fevereiro de 2022 via Abbey Roça, Seja Lá O Que Isso Seja é muito além do que uma única textura. É a sonorização do experimentalismo e a tangibilidade do passado com o futuro. Uma faixa de tempo que, infelizmente, faz irromper as mesmas críticas sociais que, aqui são banhadas de melancolia, nostalgia, crítica humorada e bucolismo.