NOTA DO CRÍTICO
Pouco menos de dois anos após o lançamento de A Smell Gravy, seu último e mais recente álbum de estúdio, o The Cumberland River Project alçou um novo voo rumo a um material inédito. Intitulado Vain Regrets o novo material chega na forma de EP e se configura como o primeiro extended play do grupo.
O Sol está surgindo além das montanhas desérticas fazendo, com seu calor crepuscular, subir o aroma árido desse ambiente terroso e seco. Ainda assim, a estrela de fogo fez a escuridão da noite dar lugar para um céu de azul límpido, proporcionando um revigorante senso enérgico. Junto à levada macia da bateria introduzida por programação, o baixo vem trotante na base melódica, enquanto o violão de Chris Kauffmann entrega um frescor muito bem-vindo. Nesse ínterim, é curioso ver como o timbre pode ser suficiente para ambientar e dar certeza ao ouvinte a respeito do gênero musical que a canção defende. Apesar de já ser perceptível a ambiência interiorana, quando Frank Renfordt insere seu vocal, seu tom grave e fanhoso comunica, de maneira inquestionável, o aroma folk que passa a ser transpirado em In Line. Com um adorável swing fornecido pela guitarra lap steel de Reggie Duncan, a canção tem sua harmonia enfim engrandecida com uma suavidade doce inserida pelo backing vocal de Jenny Sabi durante o refrão. Misturando leves toques de blues em sua receita melódica, In Line vem como um produto que dialoga sobre uma curiosa relação com a morte conforme a idade vai avançando. Inevitavelmente, a hora de passar para o outro lado chegará para todos, mas o que Renfordt enfatiza em tal enredo é para que o ouvinte não guarde arrependimento, aproveite o momento presente, não protele planos e, principalmente, aprecie o simples.
Ela já tem seu início marcado pela sua identidade solar e swingada. Muito dessa essência se deva à marcante sonoridade da gaita de Francesco Renna, a qual abrilhanta a melodia com seu dulçor agudo e estridente. Contudo, é fácil perceber como e quanto o restante dos instrumentos cooperam para a construção de uma harmonia completa, bucólica e amaciadamente contagiante. Com o dobro de Aaron Fabbrini se tem a alma do folk com seu sonar extremamente característico. Já com o violão, vem a suavidade e o frescor. E com a bateria de Simon Röll, a canção tem uma interessante quebra rítmica, a qual vai de rompantes acelerados entre as pontes e os versos de ar. Contudo, o que deixa Old Friend com um gosto nostálgico marcando o palato é a sintonia entre os timbres de Renfordt e Jessie Morgan. Com a suavidade e a delicadeza salientes que transpiram da sincronia entre os cantores, o ouvinte se sente acolhido e abraçado, um efeito que também é resultado de uma base adoravelmente confortável construída pelo dulçor delicadamente ácido do órgão de Sascha Miskovic. É com essa amplitude de texturas que Old Friend se matura como uma obra de cumplicidade, de altruísmo, de humanidade e sensibilidade para com a emoção do outro. É uma canção cuja principal mensagem é a força inabalável da amizade, mesmo rente ao tempo e aos conflitos da vida. Old Friend é um contagiante brinde à camaradagem.
Sua maciez esconde uma melancolia latente que não consegue se esconder no horizonte marítimo. E o que ajuda a salientar esse curioso, mas firme senso de tristeza embriagante é a forma como o piano de Neemias Teixeira se pronuncia: doce, mas lacrimal, cabisbaixo e até mesmo solitário. Se maturando com uma harmonia que comunica certo requinte de lamentação, Wish I Could Have Told You é a primeira balada de Vain Regrets, mas ela não traz, em si, um caráter propriamente romântico. Ela vem com uma grande dose de pesar sobre aquilo que poderia ter sido feito, mas que foi renegado. Dolorida, mas não tão visceral ou lancinante, a canção mostra um coração que sofre pela separação e pelas coisas não ditas, pelas demonstrações de afeto nunca feitas. Ainda assim, o fim de seu enredo se torna belo quando Renfordt assume que seu coração é destinado àquela mesma pessoa que se relacionou nos tempos de colégio. Um amor que ainda dura, mas sem reviravoltas consensuais. Um amor guardado na memória.
É curioso, pois é possível sentir a areia grudar nas botas de camurça, mas ao mesmo tempo, se sentir em um ambiente espacial. Com um teclado hipnótico e embriagante fornecido por Dane Bryant, quem consegue inserir doses interessantemente sci-fi ao folk tradicional, a canção segue com uma cadência rítmica linear e levemente trotante que, pelas mãos de Wayne Killius, surte em uma boa noção de movimento. Eclodindo em um refrão contido, sem explosão, mas com uma elevação na harmonia por meio da entrada do dobro de Wanda Vick e a curiosa combinação das guitarras de Mike Waldron e James Mitchell, a qual surte em uma interessante leveza embebida em frescor, Mr. Spaceman se transforma em uma canção marcante por conseguir ambientar o ouvinte na imensidão do espaço, mas com certo grau de lucidez. Ainda assim, a canção guarda outros importantes trunfos. Além de ser agraciada por um lirismo criado sob moldes do storytelling, Mr. Spaceman tem um grande viés crítico no que diz respeito à relação do ser humano para com a natureza, com a comunidade e tudo o que circunda as relações interpessoais. Uma mudança de paradigmas. Um outro ponto de vista sobre a caótica pandemia do Coronavírus. Uma marcante obra de Vain Regrets que incita a reflexão.
Ela já nasce macia e com uma essência acalentadora. Tal como a textura do veludo do lençol abraçando o corpo endurecido pelas lágrimas que escorrem sem controle pelo rosto, a melodia introdutória vem com agradáveis e aconchegantes sensos de conforto e, principalmente, compaixão. Serena não apenas pela suavidade do violão, mas também pela doçura inserida de maneira gentil pelo acordeão de Damiano Della Torre, House On The Cliffs garante uma silhueta tocante também por meio da delicadeza com que as notas do piano se pronunciam em meio à melodia. Contagiante em sua cadência quase linear, a canção, por meio de seu semi minimalismo estético, se transforma por completo em algo dramático quando Renfordt atinge o auge de sua narrativa. É nesse momento em que o espectador se convalesce frente convalesce à história de um casal que sucumbiu à crise econômica. Uma história que prende a atenção até mesmo do ouvinte mais desatento.
A bateria dá o movimento. A gaita, a doçura estridente. E o piano, a delicadeza. Com essa trinca, o despertar de Sweet Freedom já garante boa harmonia em meio a uma energia curiosamente nostálgica que se transforma em um senso desmedido de liberdade. É como observar uma estrada pavimentada em linha reta. Livre. Vazia. Apenas com o céu azul como companhia. Fresca e contagiante, mas principalmente, difundidora de uma energia latente e gritante de independência, a canção tem um refrão marcante, principalmente pelas palavras de impacto cantadas em dueto entre Renfordt e Jennie Sabi. Sweet Freedom é uma canção que, apesar de sua maciez estrutural, apresenta um turning point marcante em sua história. Afinal, quando parecia se tratar de uma canção de amor por alguém racional, se mostrou uma relação de paixão avassaladora por algo inanimado. Esse algo é a guitarra e a música. Uma espécie de liberdade que era negada pelas instituições sociais do casamento e do trabalho.
Um material fresco, doce, contagiante. Solar e doce. Vain Regrets é um EP que ressalta a força do folk como elemento a representar toda a camada social do interior de um país de proporções continentais. Por meio de seu som tipicamente sertanejo, ele dá vida ao deserto, refresca o céu de um calor escaldante e umedece a vegetação árida.
Entre suas seis faixas, o novo EP do The Cumberland River Project se torna marcante por diversos fatores. Sua melodia predominantemente macia é um detalhe que o torna acessível às massas. Já a inserção de instrumentos típicos do gênero musical a que representa é o seu grande charme. Acordeão, lap steel, dobro e gaita fazem de Vain Regrets um material charmoso e elegante.
As harmonias espalhadas em meio aos seus seis capítulos é um elemento que engrandece tanto enredo quanto melodia. Sempre serenas e doces, elas amplificam a sensibilidade do ouvinte em relação a toda e qualquer combinação sonora proposta pelo grupo. Mas são as letras as estrelas da festa.
Compostas inteira e integralmente por Frank Renfordt, cada uma das canções tem uma estrutura marcante, inquietante e penetrante. Por meio de sua estrutura narrativa calcada nas técnicas de storytelling, Renfordt torna faixas como Mr. Spaceman, House On The Cliffs e, em menor grau, Wish I Could Have Told You inquietantes devido à história que guardam por detrás das melodias. Old Friend entra na lista, mas não devidamente por conta exclusiva de seu enredo lírico, mas pela conjuntura de elementos.
Com um time de músicos eficiente, Vain Regrets se apresenta, então, como um material que consegue transitar de maneira fluida entre o folk, o blues e experimentações no campo da sonoridade sci-fi. Para deixar que cada sabor não se misture, o EP recebeu o trabalho de mixagem feito tanto pelo próprio Renfordt quanto por Dave Demay. Com o auxílio dos profissionais, o EP recebeu o tratamento necessário para que cada instrumento fosse degustado tanto em sua individualidade quanto como integrante de um corpo coletivo.
Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada entre Dirk Schmidt e Renfordt, ela captura a alma do EP. Não apenas pela simples razão de trazer a figura de Renfordt em evidência, mas por ser adornada por um tom de marrom que comunica, na ausência verbal, que o material abrange uma paisagem sertaneja e interiorana.
Lançado em 20 de março de 2024 de maneira independente, Vain Regrets é um EP feito por um time de músicos competente que transformam o folk em algo charmoso, belo e penetrante. Um material cheio de belas harmonias e enredos líricos bem construídos capazes de fazer com que cada ouvinte crie seu próprio longa-metragem mental.