NOTA DO CRÍTICO
No segundo mês da segunda metade de 2022, o mundo ganha outro nome a preencher seu time de músicos. O mexicano Franco Bastida enfim decidiu se anunciar com o lançamento oficial de If I’m Not Here?, seu álbum de estreia que leva auxílio do projeto multilíngue Desert Kin.
A neblina impede a visão completa do horizonte. Sua camada espessa causa um misto de sensações que vai da insegurança ao temor. Eis que, estranhamente, a névoa começa a transmitir, tal como o aroma do propofol em procedimentos cirúrgicos, um aroma adocicado e entorpecente que, aqui, é acompanhado de doses melancólicas. Isso é ocasionado graças ao sinteizador de Luis Martínez, que logo recebe uma voz grave ecoando pelo ambiente. É Franco Bastida que, como um personagem onipresente, vai trabalhando uma espécie de mantra que, em Consider This, ensina o ouvinte a considerar o inesperado, a vazão das mais diversas emoções e sensações. Considerar estar a serviço dos outros motivado pelo senso de fazer o bem. Consider This é como um interlúdio que estimula os instintos e um senso positivo de benevolência no indivíduo.
Um swing sobrevoa uma ambiência criada pela mistura de new wave e psicodelia graças à junção da sonoridade sensual da guitarra, à maciez com que Daniel Ponce San Martin ministra a levada da bateria e ao cenário extrassensorial impresso pelo sintetizador de Eduardo Maldonado. É assim que o ouvinte passa a se sentir perdidamente embriagado por uma sensualidade atraente e amplamente macia típica do R&B enquanto Slow Drive convida o ouvinte a desacelerar. Cheio de elementos que ampliam a sensação de calmaria, tais como o sonar aveludado do fender rhodes e o macio-ácido do wurlitzer, Slow Drive tem no baixo de Álvaro Rodríguez o elemento que sonoriza a presença de um acompanhante, de alguém que está ao lado de braços abertos pronto para o acolhimento em abraços reconfortantes e aconchegantes. Slow Drive é o romance, é a paixão. É a melodia do toque suave e do beijo doce. Uma música apaixonantemente cativante pela sua ampla sensualidade.
Estalar de dedos. Eis que uma sensualidade blues rock se materializa a partir da maciez sincrônica entre baixo, bateria e guitarra de maneira a recriar estéticas rítmicas feitas pelo The Killers. Enquanto isso, sobrevoos macios e entorpecentes são transmitidos pelos sonares do hammond e do fender rhodes oferecidos pelo sintetizador. São esses elementos que acompanham em destaque a evolução melódica de Ducks In A Row, uma música que acaba desembocando, com auxílio do sopro agudo e fraco do trompete de Isaac Mireles, em uma espécie de melancolia contagiante estruturada sob a sonoridade do mariachi.
O baixo entra como protagonista na introdução do novo horizonte que se firma. Apesar de trazer corpo e um tímido swing, ele evidencia uma energia introspectiva que é reforçada pela desenvoltura da bateria. Nesse ínterim é que Bastida assume seu posto com um diálogo em espanhol que evidencia a busca por algo eletrizante em torno do autoconhecimento. Não por menos que Chipinque tem um refrão alegre e contagiante, pois é o momento em que o eu-lírico consegue extravasar sua vontade pela dissecação de sua própria alma como uma procura da essência de seu ser.
Um swing entorpecente se forma graças à maneira como a guitarra se movimenta, solitária, durante a introdução. O interessante aqui é notar que a sonoridade ganha elementos como o batucar do tantã e o tilintar do triângulo que, sob execução de Carlos Aguilar, entregam texturas mais táteis à sonoridade em desenvolvimento. Cheia de sensibilidade, Os Escultores Estão Vivos nada mais é que um enredo que busca a atenção no detalhe que, sob auxílio do delicado timbre da portuguesa Marta Moreno, exala ainda mais brandura. Sob o idioma português, Os Escultores Estão Vivos mergulha na base do samba com direito à inserção não apenas da suave agudez do cavaquinho, mas também do sonar folclórico e floral da flauta e do swingado coaxar da cuíca. Enquanto isso, o conteúdo lírico se matura com auxílio do grave e oco do surdo de Jorge Cancino a ponto de mostrar seu objetivo de enaltecer a figura do escultor, do artista de rua. Pessoas que sentem, que amam e que percebem moldam a paisagem urbana. Por misturar elementos do samba e da bossa nova, é até possível dizer que Os Escultores Estão Vivos é uma obra brasileira feita por não-brasileiros.
Dando continuidade ao suavizar swingado de Os Escultores Estão Vivos, o novo cenário é preenchido por uma base samba-MPB introduzida pela bateria. Suave e reconfortante, a melodia de El David assume estéticas lineares enquanto dialoga sobre aceitação de maneira sensível e sob as vestes do português. Com direito a um solo de guitarra que, regido por Rodrigo Sarmiento, transforma toda a sonoridade em jazz, El David é o som do desabafo do cansaço do sofrimento causado por esconder a própria essência. Por isso que a principal mensagem da canção é assumir a própria identidade e enfrentar o julgamento daqueles que vivem em um padrão de desigualdade.
A guitarra vem delicada em sua timidez aguda e macia. Sozinha, ela consegue construir um cenário que mistura conforto e nostalgia através de um terreno sereno e swingado. Surpreendentemente, o que aparece para acompanhar esse minimalismo é um vocal agudo, de toques graves e suaves. Vindo de Paulina Parga, ele apresenta nuances que o assemelham ao vocal de Dido, e imputam toques curiosamente romanceados à melodia. Dividida em atos que são evidenciados a partir do dueto entre Paulina e Bastida, cuja harmonia recria a estética regimentada pelo Roxette, This Time é uma música emocional que mistura a tristeza da despedida com interpretações que beiram a ausência da sensação de pertencimento e acolhimento. Uma música que, com o suavizar da percussão de Juan Pablo Alarcón, mistura legado, lembranças e vontades de um presente ainda não realizado.
Não apenas pela versatilidade em transitar entre o espanhol, o inglês ou o português. Não apenas pela melodia repleta de maciez e swing. If I’m Not Here? é um trabalho de caráter introspectivo que avalia questões sociais e, à sua maneira, clama por aceitação e pertencimento.
É verdade que entre seus sete capítulos assuntos como amor, paixão e autoconhecimento a partir de ritmos que caminham entre MPB, samba, bossa nova, new wave, psicodelia, R&B, mariachi e mesmo o jazz, mas o que transcende do álbum é a delicadeza com que lirismo e melodia se combinam.
Mesmo com um time instrumental robusto, If I’m Not Here? consegue criar um alicerce por meio da sutileza. É essa qualidade que acompanha Franco Bastida no estudo de si mesmo, no estudo do seu passado, presente e futuro. Uma avaliação que visa recuperar um senso fortificado de aceitação e autovalorização, ou seja, a empatia consigo mesmo.
Nesse processo, a mixagem de Ricky Anaya tem grande peso. Afinal, ela conseguiu fundir gêneros musicais diversos de maneira a criar um som único, autêntico, sincrônico e limpo. É a miscigenação americana sonorizada que teve como maestro os produtores Anaya e Andrés Medellín. Juntos eles foram como verdadeiros guias que funcionaram como elo entre a razão e a emoção, qualidades constantemente duelantes no álbum.
Encerrando o escopo técnico de If I’m Not Here? vem a arte de capa. Assinada por Deduce Design, ela é minimalista em elementos, mas representa todo o conceito por trás do álbum. A fechadura da porta abrigando a chave com um chaveiro contendo o nome do disco sugere o acesso - ou não - das camadas emocionais e profundas do indivíduo. Não por menos que o título do trabalho funciona até mesmo como um questionamento reflexivo. E se eu não estiver aqui? Se minha essência não estiver aqui? O que seria de mim ou aqueles que me cercam?. Ouvindo o compacto, essas respostas certamente vão aparecendo aos poucos.
Lançado em 11 de agosto de 2022 de maneira independente, If I’m Not Here? é um trabalho repleto de suavidade swingada que, por meio da multilinguagem, visa acessar o máximo número de pessoas e convidá-lo a um processo profundo de autorreflexão rumo ao autoconhecimento. Multicultural, If I’m Not Here? é simplesmente a delicadeza do intimismo individual rumo à compreensão de legados esquecidos.