NOTA DO CRÍTICO
Nomes não param de surgir no universo musical independente brasileiro. Há poucos dias, foi lançado o EP Vibe Original, o qual anunciou o pernambucano Zé Vaqueiro ao mercado fonográfico brasileiro. Agora, com o disco Carta ao Tempo, Luísa Gouvêa também passa a figurar nesse ínterim.
Doçura. É como se diversos odores perfumados caminhassem livremente pela brisa do vento e encantassem o ouvinte. Afinal, a melodia é alegre com um quê retro por criar um ambiente cinquentista através da roupagem bossa nova. Aqui, enquanto a flauta de Maiara Felippe Moraes grita, a base rítmica se mostra tranquila, como um superego controlando os ímpetos do instrumento de sopro. De repente, um timbre misturado com Vanessa da Mata, Maria Rita e Clarice Falcão se pronuncia nessa atmosfera. É Luísa Gouvêa imprimindo uma dose extra de sutileza à faixa-título. Recheado de rimas agudas, o lirismo da faixa carrega uma estrutura poetizada que aborda os efeitos e a liquidez do tempo. Curioso é notar que, em meio aos dedilhados do piano e o groove suculento do baixo, há um elemento percussivo que parece estar tentando ser notado em meio à melodia.
Indubitavelmente o baixo de Rui Barossi tem participação necessária na introdução, não apenas por ser quem puxa o instrumental, mas por ser aquela peça responsável por entregar, desde o início, a cadência da melodia. E aqui, a sonoridade paira livremente pelo universo da MPB a partir do riff macio e pausado do violão de Filipe Fontão e possui um ingrediente que realça a harmonia. É o trombone de Fernando Cardoso que conquista democraticamente a dianteira ao instalar uma imersão sensorial de um Rio de Janeiro (RJ) dos anos 50 e 60. A voz de Luísa, com uma afinação superior àquela apresentada na faixa anterior, chega em Devo Não Nego para somar esse quadro preenchido por cores que caminham pela tênue divisa dos tons quentes e frios. O interessante na cadência vocal da cantora é que ele coloca pitadas de samba na sonoridade dessa que é uma canção que retrata cenários e ocorrências do dia a dia.
De Cuba com carinho. Não, não é uma menção ao livro de Yoani Sánchez, mas sim uma indicação de que um ritmo típico de Cuba foi fundido na sonoridade de Carta ao Tempo. Afinal, é macia e suave por ser estruturada com base no bolero. Talvez por isso o ouvinte vê uma revoada de pássaros nos céus. Ele está parcialmente nublado, mas traz um aconchego não convencional a partir das rajadas de luz do Sol que banham o gramado que sorri agraciado pelo calor momentâneo responsável por fazer suas flores respirarem aliviadas. O início de Eu e a Rosa é assim, estranhamente confortável por trazer notas melancólicas a partir da guitarra de André Bordinhon. Essa ambientação é harmonicamente sincrônica com o conteúdo lírico que aborda o ciclo da vida em meio ao autoconhecimento intrínseco a uma falsa ideia de que a solidão é a forma de encontrar paz e foco no caminho da vida.
Com ousadia doce, notas florais do clarinete de Maria Beraldo sobrevoa o ambiente que também é preenchido por um baixo de riff marcante que é regido por Ilya Amarante. De certa forma, a melodia de Chiclete Blues traz muito da essência rítmica de Monomania, disco de estreia de Clarice Falcão, pois tem um som que une França e Brasil, folk com um blend de bossa nova e MPB. Apesar de o nome da canção conter a palavra ‘blues’, ela não designa o ritmo, mas sim o ato da dança, do movimento com ápice de uma relação que, na história da faixa, começou em um vagão de metrô.
Macia e suave, mas com um gingado acentuado, surge Só No Ano Que Vem. A partir do groove da bateria de Pedro Prado, percebe-se que a melodia da canção é baseada no choro. E por isso, a faixa permite que o ouvinte se veja caminhando pelos arcos da lapa no Rio de Janeiro (RJ), pois ela emana uma energia resplandecente e um quê de malandragem. Ao mesmo tempo, porém, o ritmo serve como um incentivo para que o eu-lírico alcance objetivo de parar de sofrer e encontrar alegria e alento.
Melancolia. Esse é sentimento que resplandece para o ouvinte a partir das notas do piano de Chicão. A união de instrumentos como violão e baixo só faz essa noção aumentar. Porém, o lirismo de nada tem de tristeza, afinal, ele retrata nada mais nada menos do que o anseio pela chegada do raiar do Sol para acordar a vida e suas belezas. Atol é simplesmente uma descrição do ato de viver a partir do cenário de um recife elíptico.
Tons no limite do frio com o quente. Aromas florais dos mais diversos são soprados pelo vento. A união do clarinete com a flauta dá até mesmo a impressão de estar vivenciando o início narrativo de uma fábula. Em Até Pensei, porém, não há aquela doçura tal como aconteceu na faixa-título. Há, sim, uma ideia de caos, de um suspense atordoante. Quando o canto interage com a melodia minimalista formada apenas pelos instrumentos de sopro, a noção de fábula aumenta, pois a forma como a narrativa foi construída também oferece uma ambientação mitológica. Com a união de Rita Bastos e Lê Coelho, Luísa traz a história de um alguém amargurado pela vida que, em sua cegueira viciante, nunca percebeu o amor e o carinho que a ele tanto era desejado.
A doçura e a sutileza do cavaco. O tempero rítmico do pandeiro. O sério suavizar do violão. O que Felipe Bemol, Ivan Banho e Pedro Cury fazem com seus respectivos instrumentos é criar uma perfeita imersão ao puro samba. Com um molejo e maciez típicos do Brasil, Samba da Subida ainda é enfeitada com sobrevoos momentâneos da flauta. De lirismo recheado de rimas consoantes, o que Luísa Gouvêa faz é, ao lado da voz carismática de Luísa Toller, refletir sobre a pressa e o inconsciente desprezo com os passos rumo ao destino. A vida tem um destino, mas antes dele, têm paradas e paisagens. Essas etapas guardam belezas e grandezas que, na narrativa lírica, poucos notam.
A percussão de Bruno Duarte é a responsável por puxar um instrumental mais introspectivo, pensativo. O samba aqui presente é pausado, com um compasso mais controlado que serve de cama para os devaneios pensativos e reflexivos do eu-lírico, o qual olha para a origem de seus interesses e admite a perda de raciocínio. Samba Pra Eles é, nitidamente, uma homenagem de Luísa Gouvêa a Dorival Caymmi, Paulinho da Viola e Chico Buarque.
Dramaticidade. Melancolia e nostalgia. Tristeza e preocupação. Uma sincronia de sentimentos díspares se forma a partir das primeiras notas do violoncelo de Rebeca Friedmann, o qual, por conta do seu exalar de tensão muito traz da escola de Beethoven. Não haveria roupagem sonora melhor para servir de companhia para um lirismo sério que trata da liberdade do inconsciente e do conhecimento dos instintos mais profundos que moram guardados e inacessíveis na maior parte do tempo. Solidão, depressão, falta de estímulo ou interesse são situações que bloqueiam o superego e liberam o id no seu sentido mais puro. E isso assusta. Ao menos, assustou o personagem de Conto de Lobo.
O groove da bateria traz não apenas brasilidade. Traz um ar nordestino e uma imersão em um ritmo até então inexplorado em Carta ao Tempo. Disseminada pelo cangaço e, por isso, nascido em solo pernambucano, o xaxado é quem molda a base melódica de Pé de Luz. Esse estilo musical faz com que até as linhas do baixo desenhadas por Itamar Collaço tenham uma cadência própria, um groove acentuado que é deveras atraente. Há ainda, a partir das notas do violão de Gui Silveiras, uma ambientação sertaneja que faz com que o instrumental da faixa seja complexo e sedutoramente inquietante. Com a participação de coro, a faixa lírica inserida na música traz a pura mensagem da simplicidade, do se contentar com pouco e, enfim, saber viver.
Liricamente poético, melodicamente belo, ritmicamente miscigenado. Carta ao Tempo é um trabalho que exalta um conhecimento musical aguçado por parte de Luísa Gouvêa, mas também mostra o quão competente é o time de músicos recrutados pela paulistana para compor o instrumental do disco.
Há uma ampla exploração da brasilidade, pois o samba e a bossa nova se confundem com o xaxado e com a MPB. Mas há também flertes com o Caribe a partir da inserção do bolero e uma queda para com a sonoridade e a delicadeza francesas. Tudo misturado de uma maneira harmônica e singelamente manipulado e capturado pelas mãos do produtor Montorfano.
Indiscutivelmente, porém, é a brasilidade que fica guardada na memória afetiva do ouvinte. Afinal, esse caráter está até mesmo presente na arte de capa. Feita por Victor Grizzo, ela possui um caráter de cordel que transpira um espírito nordestino e cangaceiro, algo que se tornou latente com a melodia de Pé de Luz.
Lançado em 04 de maio de 2021 de maneira independente, Carta ao Tempo é um álbum delicadamente lapidado e cuidadosamente esculpido. É tanta sutileza e musicalidade que metáforas com cheiros e cores não conseguem traduzir a beleza que é ouvi-lo do começo ao fim.