NOTA DO CRÍTICO
Vindo de Brasília (DF), terra fértil de bandas com um propósito lírico de crítica à sociedade e à política, tais como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Desse mesmo solo vem Beholder’s Cult, grupo que agora anuncia, com Our Darkest Home, o segundo capítulo da carreira.
A brisa movimenta os cabelos. A maresia refresca e traz paz. O canto do quero-quero e o som das ondas criam uma ambiência de tranquilidade e despreocupação. Uma crescente dramatização se instaura com a crescente instrumental. Tímida, a guitarra base de Felipe Stock entra dando passagem para uma solar ululante e de riff aveludado que serve de protagonista de algo que inicialmente se mostra ser um power metal cheio de lamúrias e melancolia. Com uma aparição momentânea de linhas vocais, Samsara é majoritariamente instrumental e possui um turning point que exala uma energia extasiante trazida a partir de um refrão ativo e amplamente melódico calcado na métrica mista de hard rock e metal progressivo.
É bom não confundir. A guitarra introdutória, apesar de imersa em distorção, não traz aquele típico ingrediente agressivo. Ela proporciona, sim, uma estrutura que mistura melancolia com nostalgia. De certa maneira, é até possível dizer que suas linhas muito possuem da energia criada em Enter Sandman, single do Metallica. O teclado de Pedro Paes, assim como em Samsara, impute um caráter power metal. Mas em Shadows, especialmente, seus dedilhares de notas frias e aveludadas despejam quantidades suculentas de melodia. Os pelos de todo o corpo então se eriçam. O instrumental ganha uma engrenagem crescente que fazem as pupilas dilatarem e os ouvidos ficarem ainda mais atentos. Tudo isso porque os instrumentos entram em uma sintonia sincrônica que jorra uma paleta de cores que transitam intensamente entre tons quentes e frios. Uma perfeita roupagem para um personagem lírico que busca redenção, sentido e, acima de tudo, paz.
“She comes”. Como um aviso em coro estruturado por falsetes femininos, um andamento lento, mas com aquela melodia que já se mostrou ser a assinatura sonora do Beholder’s Cult, se forma no horizonte. Isso é algo intrigante. Afinal, ao mesmo tempo em que a faixa assume uma estrutura de pé no freio em união a um vocal rasgado de toques levemente agressivos, tal como pede a roupagem doom, não há escuridão na essência sonora de Starry Queen. Não há temor. Há, sim, uma combinação de subgêneros do rock, como metal e o power metal, que criam uma coexistência capaz de fornecer um ambiente sonoro novo e cheio de experimentações sensoriais. Um instrumental que denota toda a aflição e desespero de um eu-lírico lutando contra seus instintos, que vive entre a dicotomia do bem e do mal em um mundo dominado por malfeitores. Na transição para a segunda estrofe, um instrumental é acompanhado de um coro ululante que dá a ideia de algo folclórico e astral. Eis a máxima de Starry Queen.
O metal impõe a sua ousadia, seu peso e seu groove. As linhas instrumentais introdutórias de Crestfallen falam por si só. Formam uma roupagem metalizada tal como a melodia construída pelo Alter Bridge. Porém, como um bom expoente do doom metal, há ingredientes que muito refrescam a sonoridade dos primeiros anos do Black Sabbath, em que o obscurantismo flertava com o pop do rock em uma Inglaterra setentista, o heavy metal. Para fechar essa receita, uma letra sobre dor e depressão incute um horizonte noturno recheado de nuvens densas.
Há algo de épico intrigante na introdução. A partir da sonoridade, é como se o ouvinte pudesse ver, a sua frente, o vencedor de uma batalha se levantar enquanto seu rosto é banhado por feixes de luz solares. A união do riff singelo e distorcido da guitarra com o groove controladamente explosivo da bateria de Rafael Giraldi, essa cenografia apenas se amplifica em Conceiving Silence. Que excitação extasiante é oferecida nessa introdução, a qual prossegue durante toda a execução da faixa. Um ponto importante a destacar é o lirismo sobre um alguém que tenta se libertar dos sofrimentos de um passado não tão distante.
Uma sensação mista de aflição e desconforto é sentida. Um coro ululante solitário trabalha como se estivesse permitindo o despertar de uma nova fase do dia, a que emana toques de um folclore mágico entre névoas de uma noite incandescente. Isso tudo é Whispers of Dusk.
Algo gótico é sentido no ar a partir das notas catedrais do teclado. Lenta, distorcida, agressiva e grave, o riff da aguitarra diz muito de Weight of the Sun. Há um toque sombrio excessivo que cria uma atração sadomasoquista por meio do ouvinte, que se vê hipnotizado por essa que é uma música densa como a lama, escura como a noite e fria como a neve.
Um vocal limpo acompanha o teclado de notas alentadoras. As falas do narrador soam como um padre, um pastor falando com seus discípulos, seus fiéis. No que tange a sonoridade, o peso e a precisão do baixo de Luciano Dias são tão potentes que logo lembram a pressão empregada por Billy Sheehan em Goodbye Divinity, single do Sons of Apollo. No decorrer de Ivory Tower, é possível notar, ainda, uma forte influência de Bohemian Rhapsody, single do Queen, na estruturação de alguns trechos com coro.
O instrumental é crescente e proferido em tonalidades sinistras. Uma expectativa tensa se faz sentir pelo ouvinte. Ao despertar do primeiro verso, há uma peneira sonora em que apenas o baixo e o teclado mantêm a união. Empty Inside é uma canção que, ritmicamente, transita entre o power metal e o próprio metal. Traços do doom podem ser percebidos na letra, a qual carrega um misto de escuridão e questões pessoais que envolvem uma série de sintomas da psique.
É curioso como o Beholder’s Cult conseguiu trazer o doom metal às massas. Our Darkest Home traz de fato esse estilo musical que é neto do rock e filho do heavy metal. O feito aqui é na união de outros subgêneros do universo do rock and roll que suavizaram o teor sombrio e tenebroso do doom.
Afinal, em meio às ruínas há cores das mais diversas, trechos épicos, flertes com a música clássica, e, claro, peso. Tudo possível pela combinação de subgêneros como o heavy metal, power metal e até mesmo o rock progressivo que em muito se faz presente nas longas introduções e na ambientação clássica que perambula pelo disco.
No que tange as letras, os temas em destaque na temática doom dominam sem discussão, mas questões sociais e da psique pessoal também estão misturadas nessa receita. Esses ingredientes são originários de outro filho do heavy metal, o sludge metal. É ele quem traz como temas líricos questões inerentes ao sofrimento.
Graças ao time de músicos, Our Darkest Home soa então potente e ao mesmo tempo limpo no que se refere à sonoridade. A única coisa que chama a atenção é o inquestionável sotaque brasileiro na pronúncia do inglês, o qual é denunciado sem piedade a todo o momento em que a palavra ‘to’ é dita pelo vocalista.
Esse obscurantismo excessivo que muito tem de Black Sabbath foi, inclusive, muito bem digerido e apresentado na arte de capa. Feita por Zakuro, ela traduz perfeitamente o nome do álbum e o conteúdo lírico das canções, o que acaba fechando o ciclo do primeiro álbum do Beholder’s Cult.
De maneira curta e grossa, Our Darkest Home mostra o quanto o quarteto brasiliense é ousado. Afinal, enquanto toda a região é dominada por gêneros como sertanejo e sertanejo universitário, o Beholder’s Cult além de escolher o rock, decidiu se afiliar ao doom metal, um subgênero que, no Brasil, ainda é pouco explorado.
Lançado em 13 de maio de 2021 de maneira independente, Our Darkest Home é visceralmente um disco sofrido. Sua sonoridade machuca no início, mas sua conjuntura o torna intrigantemente confortável a partir da ampla gama de diferentes texturas que preenchem as melodias.