NOTA DO CRÍTICO
A mineira Letícia Coelho, pouco menos de um ano depois de anunciar No Passo Da Rabeca, presenteia agora seus ouvintes com um produto de inéditas. Intitulado Brota, o novo material estimulou a produção de um curta-metragem homônimo que pode ser conferido no canal da artista no YouTube.
Um som crescente de batuques em atabaque imerge no horizonte criando uma atmosfera natural e até mesmo indígena que é amplificada pela companhia dos tilintares do agogô e de uma voz amena que cantarola sons onomatopeicos. Sempre Viva é um interlúdio em estrutura de mantra que prepara o ouvinte na base da suavidade para seus sentidos sejam aguçados e a degustação do material que se inicia seja feita por completo.
A guitarra de Tom Cykman entra em cena com um swing desajeitado, mas com uma afinação que distribui sensações mornas e reconfortantes que se misturam com uma alegria embrionária. Surgindo em seguida, a bateria de Lucas Valadão entra a partir dos tilintares do prato de condução introduzindo a base do compasso rítmico. Assumindo uma estrutura linear, a melodia acompanha, quase como um cavalgar, uma voz aveludada e macia. É Letícia Coelho iniciando a narrativa lírica de Apontador, uma música que, adornada por uma curiosa tensão, fala sobre uma menina ousada, destemida e certa de seus interesses que se optou por mudar de horizontes na tentativa de desafiar o destino. Com direito a rompantes encorpados vindos do baixo de Mateus Romero, Apontador ainda exala um ar dramático que prende a atenção do ouvinte no desenrolar da narrativa, a qual surpreende ao desaguar em um ambiente mais alegre e enérgico que é agraciado pela textura do caxixi e pela base melódica swingada e extasiante. Nesse ínterim, Apontador ganha ainda mais harmonia com a companhia de Andarí enaltecendo os versos no refrão e salientando que a faixa, na verdade, se trata do processo da protagonista em construir e se apossar de seu próprio destino.
O dulçor e suavidade tomam conta da introdução com um breve momento solitário de Letícia enquanto o enredo lírico vai sendo cuidadosamente colocado. Acompanhada de uma guitarra singela e de um baixo encorpado na base rítmica, a cantora, assim como aconteceu na faixa anterior, recebe respaldo de uma segunda voz na criação de uma harmonia engrandecedora. Aqui, o timbre de Eloísa Gonzaga coloca um pouco mais de açúcar na já adocicada e macia melodia. Requentar Seu Coração continua acompanhando a personagem que, agora, se encontra no momento de encontrar moradia na nova cidade que passou a chamar de lar. Com um leve humor e misturando soft rock com samba, MPB e forró, Requentar Seu Coração ainda possui um tempero extra em sua base que é proporcionado pelo som do hammond trazido pelos sintetizadores de Renato Pimentel e Sam Nóbrega.
Introspecção. Momento solitário. A conversa com a mente, com o inconsciente. O momento seu. A faixa-título é outro interlúdio, mas um interlúdio diferenciado. Existe narrativa, cenografia e emoções que dela pairam. Nela, a personagem está caminhando pela noite dando vozes aos seus pensamentos, uma relação que é rompida pelos ciciares da cigarra, elemento que traz a protagonista de volta à realidade.
A brisa é fresca e traz consigo uma mistura de pétalas, poeira e sementes. O céu está crepuscular e prestes a receber o amanhecer. A energia é reavivante e quase tribal, como se fosse um personagem onipresente informando que uma mudança está prestes a acontecer. Enquanto isso, a personagem que Brota se atém caminha pelo gramado de pés descalços, olhos fechados e sentindo cada fio de seu cabelo dançando a valsa do vento. Quando abre seus olhos, ela entra em síntese com o swing e o groove da melodia que se inicia e evidencia um novo capítulo na jornada do indivíduo. Vislumbrado pelas falsidades, pelo falso senso de liberdade e pela cultura do julgamento e da intolerância, a persona se pronuncia como a figura responsável por evocar certo grau de transformação social. Cores Avulsas é uma faixa que, entre nítidas referências ao estilo de composição de Cazuza, traz imponência enquanto metaforiza a dicotomia entre o ser livre e o ser criado, moldado. No mais, a faixa é ainda agraciada por um solo amaciado e confortável de trombone e trompete que, no comando de Gabriel Guimarães e George de Farias, respectivamente, traz um senso de alerta e ao mesmo tempo coloca pitadas de suspense.
Swing abrasileirado. O baixo, com sua base baião, e o chacoalhar do chocalho trazem uma textura atraente e dançante tipicamente brasileira já nos primeiros sinais de luz no novo amanhecer. Com direito a frases ao estilo marchinha e com a presença da dupla trombone-trompete, Lady Murphy é uma canção bem-humorada e divertida que traz situações corriqueiras do dia-a-dia em que o conceito da probabilidade trazido pela Lei de Murphy acontece na prática.
Tal como na faixa-título, a personagem volta a se comunicar com seu inconsciente de maneira clara. O famoso pensar alto. Aqui pode se perceber lapsos de uma lacuna de falta de pertencimento ao notar as mudanças ocorridas em determinado lugar. Afinal, o constante diálogo “que chão é esse? Não conheço!” informa que Caminho, o novo interlúdio de Brota, está falando de espaço, de um ambiente que gera dúvidas se há um senso de pertencer ou apenas uma lembrança do que um dia foi um lar.
Macia, ecoante e quase ondulante, a guitarra vai se chegando com uma frase tímida, mas com capacidade hipnótica marcante. Na coxia rítmica, o baixo vem tímido, mas presente, se encaixando na levada da bateria de um embrionário reggae. Entre densidades e frases sujas que flertam até mesmo com o grunge, Terminal evidencia a transição. O último momento antes de a decisão se concretizar. A última chance de querer voltar e retomar de onde parou. Prestes a mudar a vida, o mundo para e a personagem se vê solitária em sua própria consciência. O desejo tem de entrar em um consenso com o ego e o superego. Todas as ponderações tem de ser feitas naqueles últimos minutos. Terminal sonoriza verdadeiramente a angústia da tomada de decisão.
O raspar do reco-reco traz uma textura levemente áspera e tátil na introdução que, simultaneamente, é abraçada por um amaciar singelo e sedutor do violão de Raphael Galcer. É justamente o violão que traz não somente uma ambiência bucólica, mas também sertaneja de maneira que o ouvinte consegue sentir desde o chão de terra batida ao couro da boiada. Com auxílio do grave e oco da caixa de congada e do ilu, a canção ganha um compasso mais cadenciado e até mesmo amaciado. Infinito Mar é uma música que fala de tempo, da saudade e de como ele pode servir como um artifício metafórico e até mesmo ilusório de conseguir diminuir a distância entre duas pessoas. Apoiado também em lapsos lúdicos e indígenas trazidos pela agudez do xilofone de Marcio Bicaco, Infinito Mar é também uma música que fala sobre a fluidez e rapidez com que a vida e os dias se movimentam.
O silêncio. A paisagem afrente parece não importar, mas a energia que dela emana é contagiante. O refresco da água jorrando da tromba d’água acalma, mas ao mesmo tempo dá liberdade para que o grito há muito represado tenha espaço e força para ser ouvido. Antes mesmo que ele encontre uma fresta para sair, um suspiro profundo acalma toda aquela emoção acumulada e o corpo se perde em uma leveza extrassensorial. Sem Volta é como a descrição de emoções que funcionam como um prenúncio daquilo que está prestes a acontecer.
Com um susto, as pupilas do ouvinte se dilatam, os pelos do corpo se eriçam, o coração entra em um batimento de frequência frenética. Em Peito De Fora, Letícia Coelho inova e se desprende de sua zona de conforto tradicional brasileira e nordestina ao trazer sujeira, punch e aspereza em uma levada com guitarra distorcida que mistura estéticas do rock alternativo e grunge com pitadas mais densas do metal alternativo. De notável influência da Pitty, Peito De Fora tem momentos de respiro calcado no MPB enquanto dialoga sobre a rotina de cidades grandes. Pressa, poluição e uma cegueira conformada perante uma vida além do trabalho, a música discute, ainda que de maneira subliminar, a questão de classe e o equívoco conceito de merecimento que permeia a sociedade personalista que preenche o Brasil. Até o momento, Peito De Fora é a canção de caráter mais protestante de Brota, pois, com auxílio dos vocais de Bruna Barreto, evidencia questões sociais amplas e outras mais intimistas. É a explosão de um desejo de basta pela pressão comunitária para que as novas gerações sejam sempre melhores que as anteriores que tem direito até mesmo ao canto de um dos versos marcantes de Partido Alto, single de Cássia Eller.
Saindo da densa Peito De Fora, o ouvinte escorrega para um ambiente em que o beatbox de Pedra Que Ronca é o elemento de construção do compasso rítmico durante a introdução. Se engana, porém, aquele que pensa que a presente canção será calcada na base do pancadão carioca. Afinal, ela flui para uma atmosfera puramente swingada e regida por um groove encorpado e contagiante que, sob a estética do soul, dialoga sobre as emoções represadas no interior do indivíduo e como elas acabam encontrando saída quando começam a transbordar. Com influências sutis de Maria Rita, Transborda é uma canção de instrumentação moderna que fala sobre o desabafo, o extravasar, o se sentir leve depois de expor todos os pensamentos e sentimentos guardados e acumulados.
Um crescente e ensolarado frevo amanhece conquistando a atenção do ouvinte. De súbito, a melodia recai para uma atmosfera sensual e amaciada propagada pela bateria suave de Carol Miranda e pelo sonar agudo e adocicado do teclado enquanto Letícia dialoga sobre solidão e a vontade de se ver livre desse sentimento. Por isso, Paradoxo foi construída sob duas óticas, a da fuga das emoções depreciativas e aquela mais introspectiva, que representa a saudade e a falta de algo curiosamente não existente. De outro lado, ainda, Paradoxo traduz a dicotomia das vontades do ser importante a ponto de estar amarrada em algo, tal como no sentido de origem, e de ser descartável, no sentido de ser dono de si e completamente livre. É inegável, porém, que a faixa é a ilustração de medidas quase desesperadas para sair do sofrimento quando se chega no fundo do poço.
Misturando melancolia e nostalgia, a melodia inicial exala um ar profundamente reflexivo muito estimulado pela floral e adocicada brisa trazida pela sanfona de Paola Gibram. Contudo, a inserção do som do violino, que aqui se posiciona de maneira animada e aquém daquela mais entristecida e potente da roupagem clássica, traz uma atmosfera folk interessante à estética melódica. Apesar dessa conjuntura enérgico-cenográfica, a forma como Letícia se posiciona ao introduzir a narrativa dá à canção uma atmosfera fabulesca e quase mitológica sobre o vaivém de emoções e da fluidez da vida. A água, no contexto, é inclusive trazida como um artifício de purificação e leveza, do expurgo do medo e da insegurança. Cais ainda evidencia a relação da personagem com o tempo, uma arma irreal que induz a ordem que beira o caos. Melancólica e chorosa, a canção ainda proporciona ao ouvinte uma singela e lenta execução do xaxado, o que aumenta a brasilidade ao mesmo tempo que dá mais densidade e dramaticidade ao enredo lírico.
Um mantra. Um hipnotismo verbalizado e motivacional. Uma introspecção autoestimulante que se excita pelo incerto, pela vulnerabilidade, pelo fluido. Que compra a ideia do risco. Entre sobreposições vocais femininas e uma sonoridade que cenografia o inconsciente, Arriscar Sempre é a aceitação dos desafios do destino e o enfrentamento daquilo que não se pode prever.
Um convite. Uma experiência em que o ouvinte também se sente pertencente. Um enredo marcante, que exala proximidade e uma densidade realisticamente rotineira. Brota é um trabalho penetrante que dá ao espectador a chance de acompanhar a personagem central em seu processo de autoconhecimento e independência de si mesma.
Conceitual, ele não apenas traz a questão de um moderno êxodo rural, mas a relação com o novo. Uma relação que apresenta emoções díspares de excitação, expectativa, medo e insegurança. A dicotômica e tênue divisa entre a felicidade e a tristeza. O presente e a nostalgia. O disco escancara a vontade do se autodescobrir rompendo as barreiras sentimentais impeditivas.
Brota traz uma personagem ousada, corajosa e certa de seus desejos que tem que dialogar com o tempo, o passado e com seu próprio conflito interior. E nesse processo, as narrativas recaem por atmosferas doces, sublimes e suavizantes. Atmosferas essas que também podem se transformar para algo áspero, sujo e intenso.
É aí que Letícia Coelho, junto com o time de músicos recrutado, desenhou melodias que extravasam brasilidade. Afinal, Brota tem MPB e samba. Tem forró e tem xaxado. Contudo, assim como o enredo do álbum narra o intercâmbio cultural, assim é na questão rítmica. Então junto com tamanha brasilidade, o ouvinte se depara com uma mistura de soft rock, grunge, metal alternativo, reggae, folk e até mesmo com o groove swingado do soul.
Para sintetizar um enredo tão amplo e denso é preciso conhecimento de causa e uma grande sensibilidade. Foi aí que Letícia Coelho se aliou a Lucas Romero da Silva e a equipe do The Magic Place. Com tal sinergia, todas as emoções são exploradas ao máximo de forma que cada som, cada timbre e cada nota consegue contar uma história em paralelo que se soma com o enredo central.
Fechando o escopo estético de Brota vem a arte de capa. Feita entre Letícia Ichnaz, Isadora Machado e Alice Assal, ela consegue misturar o místico e o lúdico. Consegue comunicar a melancolia, a nostalgia e a relação com o tempo que tanto é pauta no enredo do álbum. Além disso, ela dá destaque ao conceito de vida líquida ao mesmo tempo que exorta os desejos de mudança da personagem lírica.
Lançado em 14 de julho de 2022 via YB Music, Brota é um trabalho que, acompanhando a personagem central, evoca questões sobre melancolia, nostalgia, medo, insegurança, desejo e certeza. É um disco que narra o processo de autoconhecimento, autodescobrimento e pertencimento de alguém que tem sede por transformação e não consegue viver em locais padronizados em sua essência cultural.