Eva Figueiredo - Cria

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

No início do segundo semestre de 2022, a musicista Eva Figueiredo decide se lançar oficialmente no mercado fonográfico com o lançamento de seu debut. Intitulado Cria, ele apresenta, como a própria cantora sugere, as várias facetas e as inspirações artísticas da catarinense.


Uma voz afinada, aveludada e suave. Ao mesmo tempo com firmeza e força, Eva Figueiredo surge solitária em seu monólogo responsável, inclusive, por desenhar a cadência rítmica durante a introdução. Exalando ares MPBs e simultaneamente vanguardistas, a canção recebe, na repetição da primeira estrofe, uma instrumentação acústica e crua. Ainda assim, o racionalismo do violão colocado em evidência na melodia coloca um movimento amaciado e swingado sob uma base mais séria. Com direito a notas florais do clarinete, Torvelina flerta com uma espécie de bossa nova tropicalista com marcante presença do baixo encorpado de Guilherme Kafé enquanto dialoga sobre liberdade. Com auxílio de Mateus Romero também no coro formado por Luiz Sebastião, Paulinho Brandão e Juliana Ben, Torvelina ganha texturas mais ásperas e graves que salientam o sabor adocicado e macio da melodia, que também acompanha devaneios mistos de pertencimento, acolhimento e saudosismo.


Novamente o contágio se faz com o riff presente do violão. Em interpretação melódica mais cavalgante, ele é acompanhado por dedilhares agudos e levemente bojudos vindos da guitarra, o que acaba dando à atmosfera um visual cheio de bokeh. Animada e estimulante, Carnaval, assim como seu próprio título, é uma canção festiva que retrata um recorte temporal em que não há leis ou governantes. Um momento quase anárquico de pura liberdade que faz com que todos, dos mais serenos aos mais sérios, tenham a chance de extravasar tudo aquilo que há muito está represado no interior de cada indivíduo. 


Sorridente, swingada, leve e contagiante. A dança feita entre guitarra e violão traz o Sol, a alegria, o riso frouxo e uma curiosa energia de união. Erré é uma música em que Eva brinca com o prefixo de algumas palavras do vocabulário brasileiro com notável despretensão e diversão enquanto a melodia se enche de groove, malemolência e imerge na área estético-melódica infantil da cantiga de roda. É isso o que faz de Erré tão sedutoramente cativante e ao mesmo tempo simples.


A guitarra vem firme dando ênfase à cadência vocal durante a introdução. Imergindo para uma súbita ambiência psicodélica que beira o alucinógeno, Coração Vagabundo é uma canção que fala de desejos, de vontades, de sonhos. De querer realizar todos os planos e, ao mesmo tempo, absorver toda a experiência que o mundo pode oferecer. Ainda assim, Coração Vagabundo consegue dialogar sobre falsas memórias de um alguém marcante em determinado período da vida.


Ao lado da guitarra aguda, o batuque oco da conga trazida por Nanda Guedes na coxia melódica e o agudo seco do tamborim de Pedro Henning já constroem, com maturidade, o compasso rítmico da canção em processo de nascimento. Já é possível de se perceber, mesmo que ainda tímido, um imergir no campo do samba que já oferece ao ouvinte pitadas de malemolência. Curioso notar que, mesmo com swing, Samba Da Utopia tem tensão e densidade enquanto Eva, ao lado de LAZÚLI e seu timbre de caráter firme e ao mesmo tempo leve, vai trazendo a poesia e a força das palavras como arma contra a pressão do mundo, da rotina e da sociedade. Samba Da Utopia tem como intenção, também, mostrar a personalidade dos vocábulos. É aí que, nas entrelinhas, existem críticas ao autoritarismo, à tirania e ao retrocesso no desenvolvimento humano. Por isso, até mesmo a sonoridade aparece propositadamente dissonante, levemente caótica e com flertes com o manguebeat, uma forma de incorporar a mensagem intrínseca naquilo que, superficialmente, parece uma brincadeira com termos do vocabulário brasileiro.


Aberta pela harmonia do coro agridoce do duo Mundo Aflora, a canção já exala, desde seu despertar um swing groovado atraente e contagiante que convida o ouvinte a sentir o aroma da brisa reenergizante. O que chama a atenção em Janela é que ela é uma música que fala de superação amorosa, de uma nostalgia melancólica de alguém que não mais faz parte do cotidiano. Uma faixa que fala simplesmente sobre superação e a receptividade às mudanças.


Psicodélica, hipnotizante e até mesmo incômoda, Coração Financiado surge como uma espécie de interlúdio que fala sobre o amor, o relacionamento, a desilusão. Uma faixa que parece recriar até mesmo o cenário de um Brasil cafeeiro em que as mulheres eram prometidas aos homens antes mesmo de atingirem idades maduras. Suaves prestações. Altos custos e juros intermináveis.


O som da sanfona surge cambaleante de maneira a se dissipar em uma corrente que leva o ouvinte para um cenário levemente melancólico. Nesse novo ambiente, o instrumento sonoriza pseudo forró que dá voz ao choro e ao sofrimento enquanto Eva vai introduzindo, por meio de sua cadência vocal, um amaciado folk que suaviza tal sentimento de dor. Contudo, esse mesmo folk é o que adorna todo o enredo penetrante e narrativo de Canção Primeira, uma obra que, com auxílio da ampliação da harmonização vocal com a convidada Aline Fernandes, fala sobre memória, sobre saudade, sobre a necessidade de ser cuidado e amparado.


Batuques singelos. Nisso, Brandão insere um violão ameno e de presença dissipante como o vento. De melodia linear, O Futebolista tem na guitarra aguda e onipresente posicionada na coxia rítmica, o elemento que representa um misto de melancolia e esperança enquanto a narrativa se utiliza da figura do jogador de futebol para metaforizar um mundo fora do eixo, desritmado e até mesmo sem propósito aparente. É aí que o clarinete faz aquilo que a sanfona fez em Canção Primeira: sonoriza as lágrimas.


Saindo da tristeza que inebriou o ambiente durante a execução de Canção Primeira e O Futebolista, Eva apresenta ao ouvinte algo mais cadenciado, contagiante e até mesmo divertido. Sob a base de um baião elétrico cujo guia inicial do atraente compasso foi o pandeiro, Dona Fia surge, também flertando com o samba, apresentando um enredo propriamente leve que entretém o espectador ao trazer um enredo de narrativa rotineira sobre compra fiada. 


O tilintar do cowbell somado ao sonar do caxixi e do violão cria uma atmosfera bucólica e sedutora. Com auxílio do grave do clarone de Joana Queiroz imergindo para a superfície em momentos pontuais, a canção fica penetrante ao dialogar sobre o acaso, o destino. Aboio é uma canção que se utiliza do contexto da boiada para falar do sertão e da rotina.


É criação, mas também é herança. É identidade, mas também é característica comunitária. É cultura popular, mas ainda assim é individualista. Cria é um disco de autoafirmação que comunica, entre tantas coisas, que apesar de o Sol nascer para todos, cada um tem, nele, sua própria interpretação e percepção.


Delicado, sutil, feliz e ao mesmo tempo amedrontador, o disco é como uma dissecação da artista até o encontro de sua mais íntima essência. Afinal, Cria expõe a vulnerabilidade, a confiança, o medo, a beleza, a singularidade e a padronização a que Eva Figueiredo se submete a cada dia enquanto vive em um planeta miscigenado de interesses, visões, percepções e anseios.


Mais do que qualquer outra coisa, Cria é também um disco de militância que mostra o empoderamento da mulher ao mesmo tempo que exorta a sensibilidade do gênero feminino. Nesse ínterim, o ouvinte percebe  que a catarinense se mantém firme, consciente e madura de suas posições e emoções.


Do amor à liberdade, do passado à necessidade de mudança, o álbum é regido por uma miscelânea rítmica que compreende o samba, a MPB, o tropicalismo, a bossa nova, o folk, o baião, o forró e o manguebeat. Um produto que encarna a brasilidade enquanto se aventura na descoberta do que define o indivíduo que, no referente país, vive.


E nesse processo, Klaus Sena conseguiu captar cada emoção e cada intenção que Eva Figueiredo optou por passar entre as 11 faixas do álbum. Passando leveza, mas ao mesmo tempo seriedade e dramaticidade, Sena pode ser considerado uma peça-chave para que a mensagem de legado do disco seja compreendida em sua máxima.


Então, Kafé entra como a cabeça do projeto. Alguém que constrói um único ambiente que funda harmonia, melodia, ritmo e letra com sensibilidade capaz de olhar além de cada conteúdo. E assim, Cria obteve sua alma analítica, pertencente e consciente de sua essência.


Não por acaso, a arte de capa capta certa felicidade ao perceber que a personagem central atingiu seu ápice de autoanálise. Assinada por Alice Assal, Isadora Machado e Letícia Ichnaz, mesmo que adornada em preto e branco, a obra evoca satisfação, conformação e felicidade. Um verdadeiro alívio reluzente que é movido pelo orgulho de ser quem se é.


Lançado em 07 de julho de 2022 via YB Music, Cria é um trabalho que funciona como a autoanálise de Eva Figueiredo: uma mulher forte, certa, confiante. Uma mulher que sente, que chora, que sofre. Uma brasileira que ama. Cria é uma obra que milita pela arte de expressar toda a essência que as pessoas possam ter, mas que por algum motivo seguem ofuscadas de si mesmas.

Compartilhe:

Cadastre-se e recebe as novidades!

* campo obrigatório
Seja o primeiro a comentar
Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.