Lagarto Rei - Mundo Flutuante

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O produto foi gravado em 2018. Por conta do intenso trabalho na lapidação durante a masterização e mixagem, seu parto foi acontecer apenas quatro anos depois com consentimento do duo fluminense Lagarto Rei. Esse é, enfim, o contexto que deu origem a Mundo Flutuante, o primeiro álbum da dupla.


Frio na barriga. Medo, insegurança e certo temor. O som dos tambores, ao fundo, soa quase como um alarme bélico, que prevê o caos. A partir de sua linearidade, outra tradução começa a surgir de tal espectro. Cada golpe no bumbo de Robert William representa o batimento cardíaco enquanto que o sonar do amplificador do baixo recria os fluidos uterinos. Causando uma espécie de hipnotismo regressivo, a faixa passa a causar certo incômodo para aqueles emocionalmente não preparados para reviver tais experiências. Mesmo sendo baseado em uma estrutura linear, Útero é uma faixa extremamente sensorial, emotiva e, ao mesmo tempo, caótica em seus delírios melódico-narrativos.


Uma arquitetura sinistra começa a ser moldada a partir do groove do baixo que se apresenta tímido, mas com um cinismo provocante evidente que se posiciona nas arestas de cada acorde. A bateria de Lívio Medeiros vai surgindo aos poucos com efeito fade in trazendo uma ambiência dramática, intensa e quase indígena à canção ainda em construção. Apesar de tensa, a melodia funciona como o anúncio do alvorecer de uma nova paisagem, de uma nova perspectiva de vida, de beleza e de atitudes. De linearidade extensa, Terra Nova acaba evoluindo para um ambiente de explosão entorpecida em que a roupagem rítmica flui para um tradicional stoner rock que flerta, inclusive, com o noise rock graças à estridência e aspereza assumidas pelas linhas do baixo durante o refrão, oferecendo, inclusive, uma ampliação na dramaticidade melódica.


De início súbito e acelerado, a presente melodia traz uma estrutura comum, na qual a sincronia dos instrumentos repercutem em uma sonoridade comercial, mas sem o sentido estrito do termo. Afinal, em comparação com Útero e Terra Nova, Ion não oferece um delírio experimental tão latente. Mesmo assim, é possível notar, além de semelhanças com o sonar efetuado pelo duo Crappy Jazz, uma nítida influência do Soundgarden em tal melodia.


O grito da distorção ressoado pelos amplificadores. É então que o baixo se coloca em posição de ataque e começa a produzir um som agressivo e ríspido que logo é acompanhado por uma bateria de golpes gradativamente crescentes. Unidos, baixo e bateria passam a proporcionar uma ambiência sonora que muito tem de semelhança com aquela criada em Breed, música do Nirvana. Catarse é uma faixa que mistura stoner, noise e grunge em uma receita de cocção homogênea, mas energizante.


Um som ambiente libera uma mista sensação fantasmagórica e transcendental. Ao mesmo tempo, é como se o ouvinte se visse imerso em uma incubadora em que todas as percepções se fazem opacas, tal como aconteceu em Útero. Embriagante, estonteante e ao mesmo tempo nauseante, Interstício-Advento é uma faixa que faz com que o espectador perca a noção de tempo, espaço, razão ou mesmo do senso de superfície. Durante seus mais de 15 minutos, o ouvinte se vê levitando em um estranho vazio existencial em que qualquer tomada de decisão lhe é vetada. É como a assumição de uma postura onipresente autoimposta.


Sinistro. Essa é a palavra que define a ambiência da melodia introdutória. De súbito, o ouvinte se nota em uma continuação da experiência sensório-ambiental promovida em Interstício-Advento. Sua impotência ante o casulo fluídico segue incômodo. Contudo, assim como o baixo vai se fazendo presente de maneira gradativa, uma estranha força parece nascer no interior do eu-lírico enclausurado.  Liberto do casco, o personagem se vê, enfim, solto, mas sentindo uma brisa gélida que é impressa literalmente pelo som de ventos inserido por André “Prateado”. Nesse ambiente inóspito, trovões se colocam sobre o céu a partir das rajadas graves do baixo que são seguidas de golpes descompassados da bateria que imputam a estética noise rock em Marun, uma faixa áspera, soturna, fantasmagórica, dramática e intensa.


Profundidade, experimentação e intensidade. Mundo Flutuante definitivamente não pode ser rotulado como um trabalho comercial, afinal, suas roupagens rítmicas fogem demasiadamente das opções dispostas no cardápio radiofônico. De maneira ampla, portanto, ele pode ser colocado como art-rock.


Construído pela sonoridade de apenas duas pessoas, é interessante perceber o quão ousado o álbum é por oferecer experiências diferenciadas e intensas ao mesmo tempo que é desenhado por faixas de longas durações tal como pede a bíblia do rock progressivo. É aí que entra a sabedoria do duo Lagarto Rei em encaixar melodias que, por si só, comunicam os múltiplos sentimentos, paisagens e texturas.


No decorrer das seis faixas de Mundo Flutuante, existe uma trilha sonora composta principalmente por stoner rock e noise rock. Em menores camadas, está o post-rock, cuja principal responsabilidade é o emprego das texturas sonoras. Apesar de parecerem subgêneros desconexos entre si, eles encontram uma perfeita sinergia por meio das habilidades do duo.


Por ser um trabalho exclusivamente instrumental, o álbum pede que a lapidação das camadas sonoras seja feita de forma impecável para proporcionar ao ouvinte a experiência completa. Felizmente, a tarefa foi bem executada por Francisco Patetucho, quem fez, além de uma mixagem equilibrada de forma a tornar evidente até mesmo os sonares ambientes, uma produção sensitiva que deu ao Lagarto Rei liberdade incondicional de criação.


Fechando o conteúdo de Mundo Flutuante está a arte de capa. Feita por Medeiros, ela encarna uma estrutura hipnótica que muito recria a psicodelia dos anos 70. Ao mesmo tempo, ela evidencia a exatidão da nomenclatura do álbum ao trazer dois grandes círculos dispostos de maneira flutuante que comunicam o perigo da colisão.


Lançado em 18 de março de 2022 via Abraxas Records, Mundo Flutuante é um trabalho em que o caos é algo muito experienciado nas paisagens rítmicas. Profundo, intenso e áspero, o álbum consiste em um instrumental que abre portas para sentimentos e cenários que, para aqueles ouvintes emocionalmente mais resistentes, nem sempre são fáceis de engolir.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.