NOTA DO CRÍTICO
Com 39 anos de estrada e lançando material fonográfico há 38, o Red Hot Chili Peppers, com sua discografia de 11 álbuns de estúdio, viveu um longo hiato que durou pouco menos de uma década no campo de anúncio de material inédito. Depois de um ano de gravação no estúdio californiano Shangri-La, veio ao mundo Unlimited Love, o 12º disco de estúdio do quarteto.
A forma como soa a guitarra de John Frusciante já causa nostalgia. Nostalgia de uma sonoridade há muito deixada somente nos armários da memória. Macia, mas ao mesmo tempo também trazendo em sua essência o caráter nostálgico, ela pinta um quadro de uma paisagem que os olhos do personagem, agraciado por uma calma contagiante, refletem o movimento das nuvens sobre as montanhas de terreno esverdeado. É então que um vocal de timbre sutilmente grave e anasalado toma parte da estrutura melódica ainda em formação. É Anthony Kiedis entregando mais um ingrediente da sonoridade típica do Red Hot Chili Peppers enquanto desfila um lirismo de teor narrativo. Uma narração que, pela simplicidade, faz com que o ouvinte crie em sua mente os cenários descritos em cada verso lírico com riqueza de detalhes e sensações. Enquanto o baixo de Flea se pronuncia como um amigo acolhedor acompanhando seu companheiro em processo de introspecção fomentado por um princípio de depressão, a camada sentimental transita para uma melancolia de curioso aconchego que segue até mesmo na segunda estrofe, momento em que Black Summer ganha acentuação em seu compasso melódico com a entrada de um groove que, ministrado pelas baquetas de Chad Smith, bebe da base estética funkeada de Californication, single do também conhecido RHCP. Trazendo um refrão que quebra a energia introspectiva também em decorrência de ser seguido por um solo de guitarra estridentemente macio, Black Summer é como a narrativa do descontentamento e melancolia da sociedade frente à rotina imposta pela pandemia. Versos como “been a long time since I made a new friend” traduz o estado latente de solidão enquanto que “and China's on the dark side of the moon” descreve, de uma forma metafórica, a responsabilidade da China frente à pandemia.
De crescente dramaticidade tal como acontece em What I’ve Done, single do Linkin Park, a melodia flui para um baixo de linhas graves e provocantes enquanto a guitarra surge em relâmpagos ásperos entregando uma postura impositiva com base em uma estética mista de post-punk e rock alternativo. Fluindo para um primeiro refrão grave e protagonizado por uma bateria de levada quebrada e densa, a canção é preenchida por um lirismo de cadência acelerada que cria um contraponto com a linearidade em processo de pressa. Não por acaso, Here Ever After narra, conforme a melodia ganha a presença do caxixi na construção da cadência, um relacionamento regido pela intensidade, pelo estado platônico, pela impulsividade e pela selvageria. Um evento que beira o senso doentio de sugar as energias e despertar um estado de dependência profunda.
Com um puro, groovado e swingado funk, Flea puxa, solitário, a introdução de algo que promete ser marcante. Misturando roupagens de canções icônicas do quarteto californiano, como Hump de Bump e The Adventures Of Rain Dance Maggie, a presente faixa possui uma sonoridade mais tímida em que a grandeza está concentrada na desenvoltura das linhas do baixo. Porém, no campo lírico, Aquatic Mouth Dance também mostra certa qualidade. Sendo preenchida por uma narrativa biográfica, a faixa traz um enredo que relembra os tempos iniciais da carreira do RHCP e como era o cenário musical na época. Os versos “heavy metal the nest was dead” e “well, and the rappers gave delight” relembram que, no começo dos anos 80, o estilo tocado por nomes como Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple estava de fato morto e perdendo cada vez mais espaço para uma roupagem rítmica mais macia e swingada que abraçava, inclusive, a linguagem das ruas. Dando continuidade ao raciocínio, vem os versos “everyone and their best friend knew” e “that the west was overdue”, que confirmam que o oeste, uma alusão ao estado da Califórnia, estava atrasado no desenvolvimento no campo musical popular à época nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Aquatic Mouth Dance oferece um olhar singelo sobre uma passagem na vida de Kiedis em que ele se encontrava a caminho de se perceber um cantor. Uma faixa de lirismo indiscutivelmente atraente e ritmo dançante que, inclusive, é agraciado por um swing surpresa entregue pelo cowbell de Mauro Refosco e por um amornar sedutoramente aconchegante do bailar sincrônico dos metais trompete, saxofone e trombone ministrados por Nathaniel Walcott, Josh Johnson e Vikram Devasthali, respectivamente, que foi simetricamente encaixado no refrão.
O sol é poente. Sua claridade é quase ofuscada pelo mar conforme vai desaparecendo no horizonte. Em tal cenário, é quase possível ouvir o som imagético do vaivém da maré ou do grasnar das gaivotas que sobrevoam o céu crepuscular. Isso é possível graças ao amaciado e calmante riff de guitarra que se apresenta em estética havaiana. Eis que um instrumento não tão comum na sonoridade do RHCP se faz nitidamente presente no primeiro verso. Entregando um aconchego curiosamente dramático, as notas do piano e de Matthew Tollings vão abraçando confortavelmente o enredo lírico em início de construção. Em uma base blues, Not The One é uma canção de emoção amplificada pelos backing vocals de Aura T-09 e cujo enredo traz uma superfície que exala uma grande dose de auto-menosprezo ao passo que Kiedis abre seu sentimentalismo ao discutir os efeitos da síndrome do impostor. Uma desordem psicológica que, no enredo, é vencida por um amor comovente e verdadeiro que estimula a exibição da verdadeira essência do eu-lírico.
Swingada em uma base funk acentuada a partir das linhas do baixo em sincronia com a bateria, a melodia introdutória já vem recheada de versos líricos rimados e em estrutura non sequitur e justaposição que lembram canções icônicas do RHCP, como Can’t Stop. Fazendo referências a inúmeros nomes midiáticos da cultura pop do século XX, como Yoko Ono, Robert Plant, Billy Idol, Thin Lizzy, Ramones, Michael Jackson e Motörhead, citando apenas alguns exemplos, Poster Child é uma música que traz uma espécie de receita do sucesso muito consumida pelas personalidades da época. Encarando os astros do período como personalidades narcisistas, Kiedis toma consciência e, a partir da estrofe “you turn me on to, well and I can’t get up for no one else but you” confessa ser também uma espécie de vítima de tal receita do sucesso e consequente popularidade. No mais, Poster Child possui sobrevoos entorpecentes de um órgão de som nauseante pronunciado a partir de Cory Henry no refrão e uma acentuação de swing pelos elementos percussivos de Lenny Castro.
Curiosamente, o iniciar melódico recria a ambiência promovida por Klaus Eichstadt na introdução de Everything About You, single do Ugly Kid Joe. Enquanto em Poster Child Kiedis satiriza a cultura pop do século XX, em The Great Apes ele avalia não só os efeitos da fama sobre o indivíduo, mas também tenta frisar que, mesmo os famosos, são pessoas normais e fazem coisas normais. Ao menos, essa foi sua tentativa com o verso “superstar go do the dishes”. Entre refrães explosivos e enérgicos, Kiedis também ressalta que, às vezes, o excesso da fama pode aprisionar a pessoa e desabafa sobre a necessidade do se sentir livre. The Great Apes acaba que, pelo seu conteúdo lírico, entra no mesmo espectro de Knock’em Dead, faixa do Scorpions, e The Path Less Followed, single do Slash feat. Myles Kennedy & The Conspirators, como um produto que deixa de romantizar e enaltecer o conceito de fama e oferece uma visão realista do que ela se trata.
É com um soft rock funkeado que se forma a introdução. Com marcação precisa e fortemente presente do baixo, o enredo lírico logo é evidenciado. Longe de reflexões afiadas ou desabafos autobiográficos como Aquatic Mouth Dance, Not The One, Poster Child ou mesmo The Great Apes, It’s Only Natural trata da força do amor como forma de romper barreiras socialmente e conservadoramente constituídas. Por trazer um casal formado por pessoas regidas por contextos socioculturais completamente diferentes, a presente faixa acaba que criando um singelo elo com a narrativa de Sk8er Boy, single de Avril Lavigne.
Notas graves e compassadas do baixo. Ecos vindos do horizonte começam a crescer em intensidade. É então que uma melodia swingada e precisa entra em cena entregando grooves contagiantes do funk e uma roupagem que explora uma sonoridade soft rock que abraça o lirismo em construção. Recheada de rimas, repleta de inserções percussivas que entregam ainda mais swing e pincelada com backing vocals uníssonos posicionados no refrão, She’s A Lover é a história de uma mulher movida pelo mais puro sentimento humanitário e de amor ao próximo. Uma pessoa de espírito livre, mas com um instinto provocante latente.
De início suave e macio regido unicamente pela guitarra singela e pelo vocal de tranquilidade extasiante, a introdução possui cadência estipulada unicamente pelos compassos líricos empregados por Kiedis. Aqui, em contrapartida com as canções anteriores, Flea se apresenta mais contido tal como fez em Not The One e, por isso, deixa para Smith a função de trazer a acentuação do compasso rítmico, quem insere grooves repicados, mas completamente abraçados pela calmaria que preenche o escopo melódico. These Are The Ways é uma canção introspectiva, mas cujo lirismo oferece uma reflexão misturada a um desejo de como visualizar a realidade estadunidense. Os versos “lost in a dream”, “please step down from your bully machine” evidenciam a vontade de enxergar o país como um local que deixou de ser regido pelo julgamento e passou a ser um território de aceitação. Ao mesmo tempo, mesmo que de maneira singela, ele desconstrói também o antigo e tradicional imaginário sonho americano.
O primeiro uníssono promovido por baixo e bateria já traz um funk marcante que lembra a levada de Can’t Stop. A guitarra vem com um swingado soft rock, mas cuja essência traz em si uma estética hard rock que é evidenciada, mesmo que de maneira controlada, durante o refrão. Como mais um produto de sentimentalismo autobiográfico, em Whatchu Thinkin’ Kiedis discute a questão da colonização dos povos nativos dos Estados Unidos pelos Europeus. Versos como “I just got no reason to believe” e “just a theory that we do appease” retratam a desconfiança dos nativos para com os colonizadores. Em contrapartida, os versos “call me every name in the book” e “punk ass fascist and a dirty crook” evidenciam o abuso moral e o desrespeito para com os ameríndios. Inquestionavelmente, Whatchu Thinkin’ Kiedis é uma faixa de melodia marcante.
Um som eletrônico é unido ao grave e espaçado groove do baixo de maneira a inserir pitadas de synth-pop na introdução. Evoluindo de maneira surpreendente para uma melodia folk com pitadas de ambiência havaiana, Bastards Of Light é uma música de base amplamente alternativa que narra o senso de selvageria social no que tange uma postura imponente e protestante. É a descrição de um levante em prol de melhorias sociais. Ainda assim, Bastards Of Light é de uma tranquilidade amena extasiante que atrai e contagia com facilidade.
Com uma base repicada e uma superfície amena, a introdução traz um toque extremamente sutil de swing em meio a um ritmo que se mostra imerso na temática do soft rock. Com cadência lírica rappeada, o vocal cria um contraponto estético com a melodia que o circunda enquanto narra uma rotina moldada por um relacionamento apaixonado. Contendo a presença de backing vocals uníssonos no refrão dando ênfase em alguns versos, White Braids & Pillow Chair é uma canção tranquila e contagiante que possui uma ponte folk marcante.
A sonoridade oferece um ânimo diferenciado há muito não provado em Unlimited Love. Não somente a energia, mas o vocal se pronuncia com uma cadência típica do Red Hot Chili Peppers que serve como base para a narração de um enredo cômico que evidencia um senso de liberdade autêntico vivido por um eu-lírico que se vê na necessidade de fugir de uma comunidade que segue o caminho que, para ele, é regido por um marasmo e desinteresse pela alegria da vida que nasce com o casamento. Alegre e contagiante, One Way Traffic ainda é uma canção que possui um refrão forte e chiclete que atrai facilmente o ouvinte. Surpreendentemente, a faixa oferece uma ponte excitante montada sob uma estrutura hard rock que traz evidente referência ao som promovido pelo AC/DC, com especial menção àquele de Walk All Over You, single do quinteto australiano.
Macia, morna e apaziguante. A introdução é regida até mesmo por um vocal mais calmo de maneira a até poder traduzi-lo como introspectivo. Com simplicidade melódica, mas uma capacidade grande de atrair o ouvinte pela levada de estrutura curiosamente mais radiofônica, Veronica é uma música de refrão dramático, mas cujo enredo lírico é a promoção do amor pelo sentimento de empatia por todas as direções dos Estados Unidos. De Chicago a Nebraska, de Omaha a Miami. A balada declarada de Unlimited Love.
Um swing diferenciado que, ao mesmo tempo em que soa funk, flerta com o soul, é construído nos primeiros sonares. Misturando elementos do reggae no primeiro verso, Frusciante acaba entregando uma elevada leveza macia na melodia ainda em construção. Se firmando em uma energia amaciada e leve, Let ‘Em Cry recebe, no refrão, a presença do órgão e dos metais, os quais sobrevoam toda a atmosfera sonora de maneira a amplificar a ambiência reggae dessa que é uma canção sobre as coisas simples da rotina e do cotidiano e como as pequenas ações influenciam no bem-estar das pessoas.
Estranho reparar que a melodia introdutória desenhada pela guitarra recria o mesmo movimento da trilha sonora da campanha Eu e Peugeot. Peugeot E Eu. Sobressaindo perante a base da bateria e baixo, o instrumento domina a superfície sonora com um riff sutilmente swingado enquanto a forma como o vocal se apresenta refresca na mente do ouvinte a estrutura rítmica presente em Sou Dela, single do Nando Reis. Misturando o rock alternativo em sua receita, The Heavy Wing oferece uma feliz surpresa para o ouvinte ao trazer um pré-refrão em que Kiedis divide espaço com Frusciante, quem, surpreendentemente, assume o protagonismo vocal imprimindo seu timbre azedo e levemente áspero ao passo que a melodia evolui para algo mais agressivo e áspero de maneira a construir um metal alternativo que muito flerta com a sonoridade do Faith No More.
A sutileza do violão é quem puxa a introdução. Leve como a brisa do vento em uma tarde de outono, o bailar do instrumento recebe, tão logo, a companhia de uma racionalidade onipresente vinda do baixo presente na base rítmica. Composta majoritariamente em tal dinâmica em que violão e baixo acompanham juntos o enredo lírico, Tangelo é uma música que mostra a força do amor sob a perspectiva de alguém que se sente fortalecido e empoderado quando na presença de alguém que lhe oferece atenção, apoio e o próprio amor. Ao mesmo tempo, existe uma tensão no enredo ao perceber que o eu-lírico flerta com pensamentos negativos que incitam o fim da vida que é amplificada inclusive pela inserção do órgão de tonalidade fantasmagórica e quase sobrenatural, o qual imputa uma dose extra de dramaticidade. Tangelo é como o superego entrando em confronto com o id do indivíduo.
Ao se ouvir o baixo, já se nota que banda é. Ao se ouvir a bateria, já se sabe que banda é. Ao se ouvir o vocal, já se sabe qual banda é. O Red Hot Chili Peppers é uma das poucas bandas em que todos os instrumentos, sem exceção, formam uma identidade sonora única forte e consistente. Com o retorno de Frusciante ao posto de guitarrista, essa identidade ficou completa e promoveu a construção de Unlimited Love, um álbum que, para os fãs, é nostálgico, mas no geral, é inovador e nada menos que autêntico.
Longe de sua função no Red Hot Chili Peppers desde a turnê de divulgação de Stadium Arcadium, em 2007, Frusciante entregou o ingrediente que há muito faltava na receita do quarteto californiano. Com sua guitarra, o nova-iorquino empregou leveza, maciez e aquela sonoridade imortalizada em canções como Snow, Give It Way e Californication.
Contudo, o seu retorno não é notado somente na sonoridade que extravasa de seus amplificadores. Unlimited Love é um trabalho em que o RHCP faz, constantemente, visitas para os tempos iniciais da carreira com olhares nostálgicos, mas também reflexivos ao notar o lugar que hoje ocupam no mercado musical e fonográfico. Canções como Poster Child, o hino funk rock do álbum, e The Great Apes ilustram bem esse estado de espírito.
Por outro lado, o álbum é também um trabalho em que Kiedis se aventurou em abordar assuntos delicados e autobiográficos como sua angústia frente à síndrome do impostor, notada na faixa Not The One, e sua perspectiva sobre a relação dos colonizadores com os nativos estadunidenses, já que possui ascendência ameríndia. Tal tema pode ser observado em Whatchu Thinkin’.
Para os fãs que gostam da sonoridade mais tradicional do Red Hot Chili Peppers, Unlimited Love é um álbum de cardápio com várias opções que atendem a esse paladar. Até porque, o disco marca o retorno do produtor Rick Rubin, nome por traz de obras icônicas do quarteto californiano, como Blood Sugar Sex Magik, Californication, By The Way e Stadium Arcadium.
Por isso é que músicas como Black Summer, Here Ever After, Aquatic Mouth Dance, Whatchu Tninkin’, White Braids & Pillow Chair e One Way Traffic são pratos de sabores extravagantes para quem quer ter um revival da sonoridade típica do Red Hot Chili Peppers.
Contudo, muito além de tradicionalismos, Unlimited Love é um disco que mostra o grupo se aventurando por campos musicais fora da zona de conforto do funk rock. No disco são percebidos synth-pop, metal alternativo, reggae, hard rock, blues, rock alternativo, post-punk e soft rock. Uma somatória de ambientes rítmicos que foi muito bem sintetizada e equalizada pela mixagem de Ryan Hewitt.
Curiosamente, até a arte de capa parece comemorar a volta de Frusciante e Rubin à família RHCP. Feita por Clara Balzary, ela é repleta por um sentimento nostálgico proporcionado pelo visual, mesmo que escondido, do anoitecer. Como primeiro plano dessa paisagem crepuscular, vem o logo do grupo preenchido pelo nome do álbum como em um letreiro luminoso de uma casa noturna californiana.
Lançado em 01 de abril de 2022 via Warner Music Records, Unlimited Love é mais do que a confirmação de retorno de dois ingredientes-chave para o som do Red Hot Chili Peppers. É a prova de que a sincronia e a química entre os integrantes são sólidas o suficiente para seguir criando vários outros sons clássicos.