Kelly Clarkson - Chemistry

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Ele foi anunciado no primeiro trimestre com a divulgação de dois singles. Sendo o primeiro material cheio desde When Christmas Comes Around…, Chemistry é o 10º álbum de estúdio da texana quaternária Kelly Clarkson e o terceiro material sob apoio da Atlantic Records.


A ambiência surge como uma dramática canção de ninar, com tilintares reconfortantes imitando o sonar do xilofone vindos do teclado de Jason Halbert e a doce voz de Kelly Clarkson. Sentimental e valsante a partir da inserção de sobrevoos de violinos inseridos pela programação, Skip This Part carrega um desejo doloroso da personagem lírica em pular as cenas e os momentos de turbulência e de caos. Os instantes decisivos que ditam o futuro causam medo e insegurança, sentimentos sofrentes que deixam o indivíduo emocionalmente abalado e inconstante. Skip This Part é como sentir o peito queimar, os olhos incharem e os seios da face umedecerem constantemente em vista dos rios de lágrimas que se formam a partir da memória de um passado remoto, da turbulência de um ontem próximo e do temor do amanhã. E nesse processo, apesar das frases mínimas, Lester Estelle colocou, na bateria, pressão e precisão em sua interpretação simultaneamente intensa das experiências marcantes relatadas no lirismo.


O início é minimalista e intercalado entre diferentes cadências rítmicas. Enquanto Kelly vem sutilmente acelerada, a guitarra de riff azedo de Erick Serna vem unificada, pausada e espaçada de maneira a entregar um misto de drama e suspense à narrativa. Entre falsetes agudos e bem executados, a cantora é percebida entre sobreposições vocais que criam uma grandeza harmônica marcante em meio à dor, às lágrimas e aos intensos sensos de decepção e desolamento. Mine surge, com uma posterior cadência amaciada proposta pela bateria de Garrett Ray, como o questionamento do amor, a interpretação da dor e a aquisição de uma genuína autoestima associada a um quebrável senso de superação. Parafraseando o título do filme Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças como uma metáfora ao desejo pelo esquecimento total de uma vivência negada, Mine é o simples duelo entre a superação e o retrocesso de uma experiência de vida invasiva e abusiva.


É como o acesso ao sono REM ou o retorno de um torpor. Um veludo adocicado e hipnótico surge por meio de sonares agudos vindos do teclado enquanto Kelly divide espaço com uma bateria que, comandada por Jesse Shatkin, é regida por golpes precisos e espaçados que inserem uma generosa noção de dramaticidade. É curioso notar que, pela melodia, o ouvinte consegue tanto sentir as dores quanto estar ausente a elas como se embriagado em morfina, lhe apresentando apenas um mundo belo e colorido. De momentos explosivos e sob uma estrutura curiosamente contagiante auxiliada pelas guitarras abertas e elétricas de Jaco Caraco e Justin Womble, High Road é uma canção que apresenta o peso de uma educação sentimental falha. Ainda assim, ela é uma canção em que a insegurança e o empoderamento caminham juntos até o absoluto trunfo do segundo. E é nesse processo que High Road se mostra uma perfeita lição de assumir a própria essência e de aceitar os próprios desejos, mas principalmente, de não se deixar levar pelo julgamento alheio e por não negar a necessidade de ser querido.


A acidez hipnótica do órgão hammond, em união ao vocal de Kelly, entrega uma ambiência R&B marcante, mas dramática especialmente pelos sobrevoos singelos do violino de Samuel Dent. Ao mesmo tempo, porém, a canção tem um rompante de harmonia a partir de um conjunto de seis backing vocals que fazem de Me um gospel intenso e tocante. Não apenas pelo auxílio das vozes extras, Me tem uma conjuntura melódica com notável nitidez, o que proporciona ao ouvinte a degustação de suas diferentes faixas sonoras. Assim, desde o baixo até o piano, o espectador consegue destrinchar todos os ingredientes que, juntos, criam uma trilha sonora swingada, dramática e repleta de altas e baixas extensões vocais. É dessa forma que Me traz um personagem que vive ainda os mesmos efeitos daquela doutrina emocional apresentada em High Road. Uma personalidade extremamente solícita, mas sem saber o meio-termo entre o se doar e o se respeitar, percebe o tempo de vida que perdeu enquanto privilegiava o outro ante si. Tal como a canção anterior, Me tem seu ápice quando a personagem entende que precisa ser valorizada e que necessita superar os tempos de autoanulação. 


O baixo vem solitário, grave e azedo. Ecoante em um ambiente solitário, ele serve de passagem para um vocal de cadência sutilmente acelerada que já vem como se precisasse desabafar. Entre beats eletrônicos e sintetizadores, Down To You oferece uma roupagem inédita para Chemistry que flerta com a ambiência do rap. Ainda assim, é a bateria orgânica de Devin Collins que funciona como a ponte entre o pré-refrão e o refrão, um momento dramático, mas não lancinante ou choroso. Como um pop de diferentes texturas, Down To You é o recorte do momento em que o personagem lírico percebe que seu par é alimentado pela sua degeneração emocional e pela sua queda de autoestima. Sempre sendo menosprezada, a personagem identifica esses momentos, mas ainda não consegue se desvencilhar dele, o que é bem representado na canção entre os altos e baixos vocais. Ainda assim, como um movimento natural já demonstrado nas canções anteriores, Down To You tem seu ápice quando, além de identificar, o indivíduo tem a força interior e a capacidade de dar um basta nessa prática abusiva. De outro lado, Down To You é uma canção em que o eu-lírico realiza que quem tem baixa autoestima é a outra metade do par e que, para que ambos estejam no mesmo nível, a menospreza. Por essa razão, os versos “can't bring me down”, “you can't bring me down” e “you can't bring me down to you” são os que melhor definem o enredo de Down To You e essa tomada de consciência.


O violão de Randy Runyon surge como se estivesse colocando em uma tela branca uma paisagem cinza, chuvosa e de horizonte embaçado. De guitarras uivantes e de um violão evoluindo para frases chorosas, a faixa-título é a música que melhor traduz a significância da palavra drama e a que melhor representa as lágrimas de desapontamento sentidas pela personagem. Entre sobreposições vocais e uma cadência rítmica felizmente amaciada, Kelly apresenta um duelo entre a saudade e rompantes de uma fraqueza emocional que pedem a volta daquele mesmo ecossistema doentio. E é por isso que a canção é tocante, porque ela mostra as fraquezas, os arrependimentos e a decepção perante uma história que não se sabe se foi vivenciada de forma reciprocamente honesta ou se foi apenas para uma das partes. Ainda assim, a música-título traz apenas uma certeza: a de que o coração se machuca sempre que estiver na presença daquele que um dia amou.


As guitarras de Serna e Jake Sinclair, ao lado da batida fornecida pela bateria, tornam a introdução fresca e de um amanhecer ensolarado. Misturando soft rock com o pop, Favorite Kind Of High tem swing eletrônico característico do eletropop graças à participação de David Guetta na função de remixer. No mesmo clima da faixa-título, Favorite Kind Of High traz a personagem vivendo seus momentos de saudade, se entregando ao amor que um dia existiu. É como uma droga que, enquanto é consumida, dá sentimentos de frenesi, fervor, êxtase e intenso prazer, mas quando o efeito se dissipa, a realidade volta à tona e se percebe que a superação ainda é um longo caminho a ser percorrido.


O sintetizador traz sons eletrônicos que servem como o amanhecer da nova paisagem. Fluindo para um ambiente macio, mas de veia melancólica, o vocal de Kelly surge como se estivesse representando a sensação de se vivenciar uma primeira paixão, com direito a pernas bambas e a calafrios. Com afiadas extensões vocais, a cantora faz de Magic, outra faixa baseada na vertente da electropop, a celebração das boas recordações, o desejo de encerrar um ciclo apenas com um curioso desejo de poder assistir os capítulos apaixonados verdadeiramente vividos por uma antiga história de amor. 


Entre o drama adocicado do teclado e sonares levemente azedos vindos do sintetizador como forma de suavizar a dor, Kelly vem com uma interpretação que exala um nítido cansaço emocional. Entre sobreposições vocais que mesclam o intenso com o torpor, Lighthouse é outra canção tão reveladora quanto Down To You, afinal, aqui a personagem novamente dialoga sobre o menosprezo e o afeito da energia negativa do outro sobre a sua. Ainda assim, Lighthouse, de todo Chemistry, é a canção de fato mais dolorida, pois traz o momento em que a personagem realiza que o relacionamento, tal como existia antes, não vive mais entre o casal. É a memória psicológica do abuso emocional ante a realidade da emancipação. Lighthouse a dramaturgia do sofrer do ontem com o necessário respirar do hoje com sobrevoos extremamente educados, singelos e reconfortantes do baixo de Gabe Noel.


Um sonar grave de fundo ácido puxa o banho de luz do novo horizonte. Minimalista em elementos, mas já capaz de identificar a cadência rítmica, Rock Hudson surpreendentemente rompe toda a camada densa de dor, tristeza e decepção encrustado no sangue de Chemistry e oferece um momento de suavidade, alegria e leveza. Na estética de uma trilha sonora romântica de filmes teens, Rock Hudson, mais do que Favorite Kind Of High, traz uma personagem vivenciando o momento em que o coração bateu mais forte e mais rápido por alguém pela primeira vez. Ainda que Rock Hudson recicle o momento inicial do relacionamento, seu enredo também divide espaço com o fim e com a percepção da falsidade. É a mistura entre o ideal, o sonhado e com a realidade. Não por menos que o verso “oh, reality is never clad as good as the dream” seja aquele que melhor defina a história de Rock Hudson.


Entre melismas de R&B e um ritmo sincopado a partir da levada da bateria, a canção assume um tom sombrio, mas não melancólico ou choroso. É como uma dor intensa que não pode ser sentida, mas capaz de deixar o indivíduo cabisbaixo. Entre o teclado imitando o som do hammond durante o pré-refrão, momento em que a música curiosamente se mostra contagiante mesmo com sua energia sobrecarregada, e o violino dramático e lamentoso de Drew Erikson na base melódica, Kelly dialoga sobre descobertas infelizes sobre a outra metade do relacionamento. A partir daí, My Mistake traz a raiva, o ódio e a decepção dividem espaço com um senso ilegal de culpa perante a realidade enfrentada. As dúvidas se o que foi vivido até o momento foi intenso e recíproco também é outro empecilho que paira na cabeça de um indivíduo atordoado pelo enfrentamento de um presente desagradável. 


É possível sentir o calor e as gotas de suor correndo pelo rosto. O cão, quente, é de terra seca. Ao redor, apenas cactos. Essa paisagem desértica e árida é proporcionada através de um violão que desenha a melodia do huapango. Acompanhada de um assobio marcante, a canção imerge para uma ambiência densa e tensa até que flui para um refrão que retoma o caráter de contágio a partir de uma melodia em 4x4 em que as guitarras de Caraco e Chad Carouthers têm grande importância. Surpreendendo por apresentar uma imersão em outro ritmo mexicano, agora no mariachi através da presença do trompete de Ray Montiero, Red Flag Collector tem uma crescente harmônica perto de seu encerramento com a união coro de cinco backing vocals com o agudo do trompete. O que chama a atenção também é o sonar folk do banjo de Jeff King na base melódica do refrão de Red Flag Collector, uma música que, além de sair da zona de conforto melódica de Kelly, traz, de forma bem humorada, o recorte do momento em que a percepção do divórcio é iminente, a descoberta da traição. Raiva, ódio, vontade de queimar e explodir. Tudo como forma de suavizar a fúria. É por isso que os versos “but sure, you can have the towels” e “finding out what went down as soon as I wasn't around, broke my heart, but hey, I'll be okay”, descrevem bem o histórico de Red Flag Collector, uma canção que, mesmo séria em sua narrativa, consegue ser melodicamente uma música de Chemistry que atende aos requisitos radiofônicos e que conquista as massas.


É com muita graça, suavidade e um aroma interiorano primaveril que o banjo de Steve Martin traz, além das montanhas, a luz de um Sol nascente apresentando um novo amanhã. Acompanhado de um compasso seco trazido pela bateria, a qual comunica a cadência rítmica, o instrumento dá vasão para um lirismo que, curiosamente, vem com uma frase de efeito chocante e até mesmo negativa. I Hate Love, um produto folk popeado e esvoaçante, tem um dulçor ácido setentista vindo do teclado que dá embasamento a um enredo que retrata a decepção e a perda de fé no amor, mas, acima de tudo, traz um vício inconsciente em insistir nas coisas que nada agregam de positivo. 


Uma ambiência swingada e latina surge no horizonte. Suave em sua verve reggaeton, a canção traz rompantes de um céu azul e ensolarado através da combinação sonora do trompete e trombone executados por Daniel Levin e Keyon Harrold. Com direito a elementos percussivos como o atabaque e o bongô inseridos por Sheila E., That’s Right ganha contornos ainda mais sensuais enquanto o lirismo entra em sintonia direta com essa vertente de alegria. Afinal, na faixa a cantora se despe de tudo o que a incomoda e se distancia daquilo que a prejudica. That’s Right é, acima de tudo, uma música que, finalmente, apresenta uma Kelly dando seu mais profundo suspiro de alívio por ter finalmente superado o passado e se libertar dos fantasmas de um relacionamento prejudicial.


É interessante como, da dor, pode sair doçura, suavidade e alegria. É também esperado que, dela, sejam exaladas sensações de raiva, ódio, decepção, lamentação e desolamento. Chemistry é um material que traz os dois campos emocionalmente ambivalentes que um choque sentimental pode trazer.


Curioso ainda é perceber que, de um evento traumático, um grande material surge. Kelly Clarkson soube canalizar sua dor e suas confusões emocionais em um produto que consegue ser doce e sereno, mas também intenso, dramático, lancinante e imponente. De certa forma, a cantora texana trilhou, no presente álbum, caminhos semelhantes de outros nomes da música.


Enquanto ela lamenta e sofre um conturbado fim de relacionamento, But Here We Are é um álbum que traz um Dave Grohl lidando duplamente com o luto e, 72 Seasons, um material que apresenta um James Hetfield lidando com o vício e sua superação. É inegável que Chemistry entre nessa seara por, assim como tais álbuns, apresentar um ápice de qualidade rítmico-melódica e lírica.


No presente álbum, Kelly não foi apenas transparente com suas emoções. Foi visceral, madura e sem medo de mostrar ao mundo suas próprias fraquezas. Até porque, Chemistry é simplesmente ela vivendo um processo de luto pelo término de uma história e o começo de outra.


Entre a solidão e a falsa sensação de companheirismo, a traição foi, para a cantora, um evento que a fez pensar sua insegurança, sua baixa autoestima e sua dose canibal e cavalar de altruísmo. Felizmente, com uma estética narrativa linear, o álbum mescla os altos e baixos, mas se encerra com a texana finalmente se libertando e superando o passado desgastante. Um grande feito da produção de Halbert, Serna, Shatkin, Runyon e Jane Black.


Para dar peso a esse enredo, a batizada Kelly Brianne Clarkson se aliou a Serban Ghenea. O profissional, no exercício da mixagem, fez de Chemistry um álbum rítmico-melódico plural e extraterritorial. Afinal, muito mais do que o pop comercial estadunidense, o álbum explorou veias latinas e da música preta para dar mais peso aos dramas retratados. Por isso, o ouvinte consegue perceber o próprio pop, mas também o R&B, o gospel, o soft rock, o reggaeton, o huapango, o mariachi, o folk e o electrtopop.


Lançado em 23 de junho de 2023 via Atlantic Records, Chemistry traz a superação da dor e a luta pela retomada da liberdade e da autoestima de uma personalidade perdida entre as dicotomias sentimentais de um grande choque emocional. Visceral e transparente, o álbum é um grande material autobiográfico de Kelly Clarkson.






















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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.