Júlio Ferraz - O Soturno Jarro Diamante

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (2 Votos)

Com o produto, ele chega ao seu quinto álbum de estúdio. Somado aos outros três EPs, em 12 anos o pernambucano Júlio Ferraz alcançou a marca de oito materiais cheios produzidos, além de uma série de singles. Gravado entre agosto de 2022 e abril deste ano, O Soturno Jarro Diamante sucede o disco Orbe Onírico.


Uma neblina furta-cor e de aroma hipnótico surge do horizonte a partir de uma melodia blues surpreendentemente formada entre as estridências agudas da gaita de Júlio Ferraz, a doçura suavizante do vox continental de Yargo Feghali e a levada macia e cambaleante da bateria. Curiosamente, porém, essa ambiência surge chorosa e com rompantes de lágrimas dramáticas. De base entorpecida pela acidez quase psicodélica do mellotron, a canção tem seu escopo melódico fechado com a presença de um vocal de timbre sereno. É Ferraz introduzindo uma interpretação tão introspectiva que soa quase como um sussurro sobreposto entre camadas vocais que criam uma ambiência transcendental. Com direito a guitarras que aparecem como um cobertor aquecendo a pele gelada pela noite fria, Corações Solitários é uma canção repleta de metáforas que transitam entre o luto, a solidão e a necessidade de superação do sofrimento. Há também a possibilidade de a faixa retratar o senso de insegurança e a tristeza por perceber o fim de um relacionamento, que significa o encerramento de um ciclo na seara da vida.


De introdução marcante pela união do mellotron com a guitarra, a qual forma um uníssono embriagante e ácido de forma a remeter, assim como aconteceu em Corações Solitários, com a estética sonora de canções de Arnaldo Antunes, o ambiente que se apresenta possui uma veia melancólica inquietante. De estética setentista, Ferraz surge com um vocal ecoante sob o idioma inglês que, curiosamente, consegue se assemelhar àquele de Alex Turner enquanto a canção vai, cada vez mais, amadurecendo como algo propositadamente nauseante. Não à toa que esse incômodo estético casa com o enredo de Tell Me If The City, uma canção que apresenta um personagem vivenciando o momento mais profundo de sua introspecção depreciativa e deprimente. A necessidade de encontrar algo de positivo em meio ao caos emocional é um fator que comove o ouvinte, mas que também mostra o dilema entre o desejo pelo rápido encerramento do sofrimento e o dever de enfrentar a dor para se fortalecer e viver um novo amanhã. No mais, diante da loucura psicodélica e progressiva que se instaura em Tell Me If The City, Maud Evelyne surge com um vocal suavemente gélido que, pronunciando palavras em francês, soa como a voz de um ser além-vida confortando a alma abalada de um indivíduo em pleno sofrimento da mente e da psiquê.


O toque nauseante continua forte na nova introdução. Misturando a acidez do hammond com o riff bojudo da guitarra e o compasso tímido, mas presente do baixo, a canção promove uma maciez que curiosamente desfila uma sensação de ânimo até então inexperienciada em O Soturno Jarro Diamante. Macia e swingada, Autofagia traz uma harmonia melódica enquanto dialoga sobre o tempo, a ansiedade e a euforia perante o amanhã e a necessidade de um senso de liberdade da rotina.


Contagiante, macia e melódica, a introdução surge apresentando uma estética que constrói aquilo que pode ser considerado a primeira balada do álbum. Com protagonismo do agudo choroso da gaita, cuja cenografia é quase como estar na parte de trás do carro observando a paisagem desaparecendo enquanto a velocidade acelera, Canção Pra Despertar, com o veludo melancólico do violão, é como o gosto do adeus e da mudança. Não é por menos que também o piano e a bateria entram em um sincrônico movimento tristonho que dá embasamento a um lirismo belo e tocante cuja intenção é fazer florescer um amor adormecido. É simplesmente uma obra de reconquista.


Com aroma do sertão a partir do movimento macio e fresco do violão, a canção oferece, curiosamente, toques de suspense capazes de causar estranhos calafrios a partir do lap steel e de uma conjuntura sonora embrionariamente dissonante. Amadurecendo com o protagonismo do hipnótico e aveludado sonar do moog, Dissociativo é como a experiência tanto da crise de pânico quanto de ansiedade. Entre o caos do medo e a densidade da escuridão evidenciando a insegurança de teor quase infantil pela sua marca de ingenuidade, o personagem parece batalhar contra seus demônios internos que o puxam para um ambiente regado em depressão e autoflagelo. O turbilhão de pensamentos dissincrônicos e a vontade intensa pela redenção do temor de si mesmo se combinam para, com o passar do tempo, promover a calmaria e a reconquista do controle de sua mente e corpo.


Fresca, floral e suave. Como a combinação de sabores do violão, hammond, piano e guitarra consegue criar uma sutileza tão doce e confortavelmente contagiante. Como a chegada de um novo amanhecer cheio de esperança e possibilidades de um novo recomeço, a melodia vem acalentando o coração, a alma e a aura do ouvinte. Conseguindo soar também como um belo céu litorâneo e poente, Aurora é uma declaração de amor, de planos, de ansiedade e euforia pela chegada de um filho ao mundo. O começo de uma nova vida e a ânsia de poder estar com esse ser puro, ingênuo e imaturo pronto para aprender o que é carinho, amor e a vida. Pelo lirismo, Aurora tem a mesma proposta tocante, emotiva e pura que With Arms Wide Open, single do Creed. Uma bela canção de O Soturno Jarro Diamante.


Macia e melódica com seu indie rock ao estilo Banda do Mar, Laura vem curiosamente cabisbaixa e com pensamentos longínquos como uma mente que não consegue parar de pensar. Com uma cama ácida proporcionada pelo hammond, a canção é embebida em um senso de melancolia que beira o susto, a decepção e a lamentação. Apesar de suave e embriagante, porém, Laura é o recorte do ímpeto da raiva, que surge de maneira inconsciente e inconsequente. Trazendo posteriormente o senso de razão, a consciência e a reflexão dos atos anteriores, Laura percebe suas próprias lacunas em relação a si e à vida como motivadoras para um lapso explosivo que rompeu com parte da normalidade de sua rotina.


De volta ao sabor nauseante por meio da acidez do mellotron que contamina toda a base melódica, Entre Espelhos vem com uma proposta soturna semelhante àquela de Dissociativo enquanto, a partir de uma paisagem escura e chuvosa, apresenta um personagem que novamente experiencia o caos interior. Entre uma crise e ímpetos de uma fúria repentina, esse mesmo indivíduo grita, com seus atos brutos, a necessidade da proteção, do apoio, do carinho e, principalmente, da paz. Entre Espelhos é, mais uma canção de O Soturno Jarro Diamante a trazer a pauta da depressão, mas aqui informando que está apenas nas mãos do sofrente a chave da porta da redenção de tais sofrimentos.


De harmonia melódica a partir da junção do hammond, piano e baixo, a canção traz, na guitarra, o contraponto de sabor que consegue, ao mesmo tempo em que traz maciez, ofertar a acidez. Com um swing entristecido, Sem Saber Que Sou Eu vem embebida em uma base blues enquanto se assemelha em proposta lírica com títulos como A Mais Pedida, single do Raimundos e, menor grau, com Óculos, single de Os Paralamas do Sucesso. Dialogando tanto sobre rejeição quanto autoconhecimento, Sem Saber Que Sou Eu é o relato de um ser puro, ingênuo, bom e sonhador.


O violão surge solitário, mas com um frescor reenergizante e uma delicadeza estonteante. De minimalismo melódico e regida por sobreposições vocais, a canção surge com generosas doses intimistas e profundas a partir de um lirismo que propõe o olhar para dentro de cada ser e identificar quais são as causas dos desamores consigo mesmos. Mesmo na tentativa de criar uma suavidade, o enredo de Hipotimia se mantém o mais visceral, lancinante e dramático de todo O Soturno Jarro Diamante, afinal, mais do que Dissociativo e Entre Espelhos, a depressão aqui retratada atingiu níveis tão fortes que o personagem chegou a cogitar verbalmente o fim do sofrimento que, para ele, era dilacerante. 


Ele pode enganar os ouvidos mais desavisados por ser regido por um corpo melódico suave, delicado e doce. Porém, O Soturno Jarro Diamante é, no fundo, um material que representa as angústias, os ímpetos e as confusões emocionais de indivíduos tão belos e puros que se perdem em si mesmos.


É capaz que ele seja até mesmo difícil de ser apreciado para algumas pessoas, principalmente aquelas de instável saúde emocional. Ainda que isso aconteça, o material pode funcionar para o outro como uma sensação de representatividade e como a descoberta de que o sujeito eu não é o único que sofre.


A partir daí, mesmo que sob uma veia intensamente soturna e melancólica, O Soturno Jarro Diamante pode funcionar como um remédio, uma espécie de consulta terapêutica musicada que ensina o ouvinte a olhar para si, se compreender, se descobrir e conseguir superar as dores que por vezes parecem enigmáticas.


Para Júlio Ferraz, o álbum é um produto autobiográfico na forma tanto de monólogo quanto de autoanálise. Um material que, assim como sua proposta para com os ouvintes que dele se alimentarem, ensina a se conhecer e a entender as causas de seus sofrimentos até perceber como superá-los.


Para criar sonoramente um ambiente que represente desde o desconforto ao êxtase do bem-estar, Ferraz contou com a participação de Feghali para além da instrumentação. O profissional, sob o exercício também da mixagem, construiu melodias transparentes que caminham desde uma MPB de traços psicodélicos de maneira a destacar influências de Jorge Ben e Arnaldo Antunes, ao indie rock e ao blues.


Fechando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Luciana Medeiros, ela é literal. Apresentando um indivíduo na direção do centro de um coração enterrado, mas já com raízes nascentes, ela comunica, de maneira direta, o renascimento. Indiretamente trazendo noções de esperança, o desenho, ao apresentar um diamante preenchendo a maior parte do interior do órgão, denota o mundo ensinamento de que todo o sentimento é puro e merece atenção, pois mesmo que transmitam sofrimento, eles são o caminho do crescimento e fortalecimento emocional.


Lançado em 06 de junho de 2023 via Discobertas, O Soturno Jarro Diamante é um processo intenso de autoanálise que leva o indivíduo a se perceber, a se sentir e a se conhecer. Dramático, soturno e autobiográfico, o material ensina a adquirir calma e resiliência mesmo nos momentos em que a dor da alma surgir dilacerante.


















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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.