NOTA DO CRÍTICO
Quatro anos após sua estreia no cenário musical brasileiro, o quinteto Joe Silhueta retoma as atividades e anuncia um novo material de inéditas. Intitulado Sobre Saltos Y Outras Quedas, o álbum é o sucessor de Trilhas Do Sol e o quarto lançamento do grupo brasiliense.
Uma guitarra macia e ao mesmo tempo cambaleante surge com uma estética alvorecente de um hard rock folkeado. Eis que, na companhia do alegre sonar do trompete de Maxell Costa, uma harmonia de quatro vozes entra conduzindo o ouvinte na introdução de maneira sincrônica. Na superfície dessa valsa está um timbre adocicado e suave que encanta pela sua afinação consistente. Guilherme Cobelo é quem comanda o conteúdo lírico de uma melodia ensolarada com raspas de MPB e samba em seu ânimo contagiante que ganha uma cadência, por meio do exercício de Márlon Tugdual na bateria, que garante ainda mais energia. Quando uma agudeza mais branda aparece tomando espaço na coxia melódica através do teclado de Tarso Jones, a canção acaba desaguando em uma sonoridade que passa a beber, inclusive, do xote em um breve período que conta até mesmo com o tilintar do triângulo e da alegria da sanfona de Léo Airplane. Fresca, nordestina, brasileira e enérgica, a música possui ainda brisas folclóricas e florais que aromatizam o ambiente através da doçura do clarinete de Sombrio da Silva. Com swing contagiante, Feirará conta a história de Manuel, um homem em busca de pertencimento e autoconhecimento.
Com um jazz macio, contagiante e de teor ludicamente literário, surge o amanhecer de uma nova melodia. Guiada pelo conciso e encorpado baixo de Marcelo Moura, ela vai ganhando uma atmosfera imagética através das singelas e hipnóticas notas do teclado que sonorizam paulatinamente a percussão. O uivo do clarinete reforça a sensação de embrionária sensualidade que emana da construção do cenário a partir da sonoridade em exercício, o que dá mais asas à construção de um primeiro e imaginário enredo. Quando o vocal entra em cena, o jazz se mistura com o samba em um rompante sedutor que dá início à verdadeira narrativa da canção. Com uma singela dramatização teatral vinda da união do clarinete e do trompete, Suíte 305 é uma canção que aborda a sociedade como engrenagem, como parte de uma máquina que, para funcionar, precisa de peças selvagens e arredias que não descansam. Por um lado, pode até perceber, em Suíte 305, uma singela crítica ao capitalismo.
Nauseante e embriagante, a sonoridade acaba nascendo com uma espécie de psicodelia propositadamente desajeitada vinda do sintetizador que acaba fluindo para um macio e melódico ritmo que traz aromas florais engrandecidos pelo clarinete e pelo vocal agudo de Gaivota Naves. Ele assume uma consistência anasalada conforme a canção vai tomando uma crescente que firma uma sonoridade blues rock ao estilo Lynyrd Skynyrd. Leve e contagiante, Naco De Nuca traz um lirismo que brinca com versos onomatopeicos enquanto fala de desejo e cria um hipotético cenário libidinoso de fervente paixão por alguém que pecou com todos.
A guitarra puxa uma melodia macia embriagante e confortável em sua plenitude suave como a brisa de um entardecer de inverno. Um aroma bucólico ainda é transportado por tal brisa criando um cenário sertanejo e folk que é embalado por agudas e ondulantes notas do teclado cuja participação oferece pinceladas de torpor. Tal sentimento se mistura à melancolia inebriante proporcionada pelo dueto entre Cobelo e Gaivota, que é formado por uma curiosa combinação de timbres suaves e agridoces. Cidade Palavra traz um enredo que coloca em um mesmo contexto a censura, a insanidade social estimulada pela clausura e o poder da comunicação.
Doce, fresco e inspirador como o alvorecer de um dia de verão. A maciez contagiante e sensível invade a atmosfera a partir de um baixo encorpado e de um amornar reconfortante vindo da guitarra de Carlos Beleza de maneira a promover uma sensação de aconchego tão intensa quanto um longo e saudoso abraço. Envolvendo-se em uma embrionária dramaticidade que nasce com as notas do piano e riffs de guitarra em efeito lap steel salpicados pela melodia, Hoje É Seu Dia é uma balada de positividade, de leveza, de afastamento dos problemas. Com uma estrutura rítmica que flerta com sonoridades vindas de nomes como Raul Seixas, Hoje É Seu Dia é a celebração da vida, do momento presente, do tempo e de uma nostalgia acalentadora difundida pelo solo de metais formado, além do trompete, do trombone de Lili do Trombone, do sax alto de Pedro Castro, do sax tenor de João Oswald, e da clarineta. Uma faixa que emociona, aproxima e aconchega. Um grande produto de Sobre Saltos Y Outras Quedas.
Um ar latino sai do baixo enquanto o violão desdenha certo tom de suspense. Quando o som da distorção aparece de maneira crescente, a melodia mergulha em um instrumental sincrônico entre guitarra e clarineta. Sob cadência acelerada, Gaivota retoma o protagonismo vocal com uma interpretação que soa como um desabafo, um monólogo desesperado e sufocado que lança aos quatro ventos um grito mudo de ajuda. Com uma dramaticidade latente, a melodia traz uma tensão intrigante que casa com o assunto abordado em Sobressaltos, uma canção sobre autoconhecimento, solidão interior, conflitos emocionais e culpas. Sobressaltos é a sonorização da voz da consciência trazendo uma realidade construída em tempos de acúmulo de decepções, de arrependimentos. O autoquestionamento ‘quem sou eu?’, em Sobressaltos, é mais dolorido e profundo do que a perfuração da lâmina mais afiada de uma espada.
A psicodelia aparece tão paulatina e crescente quanto o raiar do Sol em um amanhecer. O sintetizador, com seu vaivém de notas sutilmente ácidas, começa a criar uma atmosfera que mistura sci-fi e um quê de espacial. Depois de aumentar de velocidade, tais notas param de súbito e dão passagem para uma melodia de cadência mais lenta, mas que ainda segue o conceito psicodélico, extrassensorial e ácido. Imergindo em um primeiro verso de estrutura mais amaciada e contagiante, a canção acaba tendo o conceito hipnótico e alucinógeno ampliado com a entrada do vocal sussurrado e agridoce de Dinho. Com maturidade suficiente, Assoviata é uma canção que trata sobre pertencimento, intolerância e liberdade sob uma ótica mais dramática.
Um swing nasce já maduro especialmente pela presença dos batuques vindos do atabaque. Apesar disso, uma dramaturgia teatral eclode a partir dos rompantes da sanfona unida aos instrumentos de sopro, mas que logo se dissipa e dá lugar a um alegre e sedutor samba. Como uma carta de amor, Essa Aranha é uma dedicatória de lirismo romanceado e apaixonado que avalia o presente, o meio e o fim do relacionamento e suas implicâncias emocionais. Assim como o Sol da praia de Salvador ou a pele morena queimada pela claridade carioca, a canção se vê em um swing instigante que exorta a confiança no destino em uma metáfora para descrever um relacionamento duradouro, firme e forte. Definitivamente, Essa Aranha, apesar do título cômico, é uma declaração apaixonada fora da estética padrão de cartas de amor.
De baixo bem marcado e uma bateria levemente repicada, o amanhecer da nova melodia presenteia o ouvinte com uma roupagem até então inexperienciada em Sobre Saltos Y Outras Quedas: o soul ao estilo Amy Winehouse. O vocal aberto, grave e anasalado de Gaivota vem mais firme de maneira a, curiosamente, trazer referências implícitas à Rita Lee com menção especial ao respectivo single Amor E Sexo. Semelhante, mas ao mesmo tempo diferente de Essa Aranha, O Amor aparece com uma mensagem positiva, pacifista e romântica sobre o amor. Não há humor ou declarações românticas. O intuito da faixa é, sem delongas, promover, tal como a cultura hippie dos anos 60, o amor aos quatro cantos do planeta.
O baixo vem solitário, cadenciado e com energia excitante. Acompanhado do compasso do chimbal, é ele que comanda a base rítmica de uma sonoridade inicialmente acústica que acompanha, com swing promovido também pelo teclado e pela guitarra, um novo entra e sai vocal tal como foi em Cidade Palavra. Gaivota e Cobelo se dividem para contar, em meio a um swing ondulante e linear, o amor, o conflito, a harmonia e o caos existente na convivência. Isso é Era Uma Trombeta.
O tilintar do sino. O som do mar ao fundo. O violão cujas notas nascem em um samba contido. Existe aqui uma energia melancólico-nostálgica que se mistura com uma espécie de reflexão sobre o passado. Minimalista em melodia, mas contando com uma harmonia que nasce pelo dueto entre Gaivota e Cobelo, a canção vai se perdendo ao se aprofundar em um drama denso e pensante. Sobre insaciedade, ganância, intolerância. Sobre a necessidade de ser lembrado, sobre a mística que envolve o conceito de personalidades lendárias. Sobre falsidade. Tropicalipse é uma canção que, trazendo comparações e se ambientando ao tempo do descobrimento do Brasil, evidencia o fato de que muitas das atitudes tomadas naquela época ainda hoje, mais de 500 anos depois, ainda são observadas aos montes entre os indivíduos de uma sociedade moderna. É uma canção que expõe os sonhos de uns acima da vida de outros. Que faz a vida de uns valer mais do que a de outros. Que escandaliza o parar no tempo no que tange a evolução social e comunitária. Tropicalipse é o enredo de um Brasil que ainda não possui identidade comunitária própria e que, intimamente, não sabe se de fato se separou de sua pátria colonizadora.
Brasileiro, fresco, contagiante, swingado. Sobre Saltos Y Outras Quedas é um trabalho de ampla construção melódica, mas cujo enredo lírico se deleita quase que exclusivamente a analisar o amor e seus percalços. Um trabalho que exala sensibilidade e harmonia através de sua maturidade e sincronia sonoras.
Não é para muitos conseguir unir instrumentos de diferentes temáticas em um mesmo ambiente e fazê-los entrar em sinergia para a criação de melodias que sejam firmes, impactantes e mesmo contagiantes. Porém, o Joe Silhueta conseguiu fazer o feito com o presente álbum. Com brilhantismo, o quinteto brasiliense mostrou ter consistência, embasamento e, principalmente, musicalidade.
A musicalidade, unida à sensibilidade, fez com que Sobre Saltos Y Outras Quedas conseguisse transitar por faixas de grande alto astral como Feirará e Essa Aranha, psicodélicas como Naco De Nuca e Assoviata, críticas como Tropicalipse e até mesmo baladas de melodias comoventes como Hoje É Seu Dia, por ritmos extremamente distintos uns dos outros.
Entre seus 11 temas líricos poéticos que vão desde uma ampla análise do amor e reflexões sociais a outras questões mais intimistas que tangenciam temáticas como pertencimento e autoconhecimento, o Joe Silhueta presenteia o ouvinte com os gêneros, MPB, samba, jazz, soul, hard rock, folk, xote, psicodelia, blues rock, e até mesmo raspas de progressivo que foram executados também com o auxílio de Ramiro Galas, responsável pelos beats e também pelo sintetizador, e também pelos percussionistas Mariano Tonniatti, Thiago de Lima Cruz e Victor Valentim.
Regimentando essa amplitude estética está Gustavo Halfeld e Jota Dale, dupla responsável tanto pela produção quanto pela mixagem. Com ela, o álbum soou maduro, latino, brasileiro e, o mais importante, seguro. Seguro tanto em mostrar combinações estéticas diferenciadas e seguro em desenhar lirismos que, apesar de já serem bem explorados em âmbito musical, aqui possuem novas óticas.
Fechando o escopo de Sobre Saltos Y Outras Quedas vem a arte de capa. Feita por Alexandre Lindenberg, ela possui um caráter oriental que se mistura com traços hipnóticos, ilusionistas e também serenos. Porém, é verdade que o tom vermelho vivo é o que salta aos olhos e aparece como um elemento de quebra de equilíbrio. Ao mesmo tempo, as finas linhas azuis claras que caminham por todo o desenho funcionam como rios irrigando a vida e mostrando, inclusive, que ela não ter curso certo. Que ela é imprevisível, assim como o amor.
Lançado em 30 de junho de 2022 de maneira independente, Sobre Saltos Y Outras Quedas é um trabalho poético que fala sobre amor, sobre a vida e sobre o viver. É um trabalho de múltiplas melodias que encantam pela sensibilidade, pela consistência e pela brasilidade.