NOTA DO CRÍTICO
Minas Gerais é um estado que ganhou fama mundial na primeira metade da década de 80 com o Sepultura e sua ousadia em mergulhar em um universo que, à época, era pouco consumido pelo Brasil. Exatos 37 anos depois, o território ganha um novo produto musical. Chamado Espelhos de Okê, o octeto se anuncia no mercado musical nacional com Vista Sua Armadura Mais Bonita, seu disco de estreia.
Um som grave e sincopado surge por meio do baixo solitário. De repente, uma explosão de tons frios colore o ambiente. Quase como em um transe psicodélico, afrente do ouvinte as tonalidades roxo, violeta, azul e rosa criam uma valsa cintilante por entre os ventos de uma melodia ainda em construção. Esse é o cenário proporcionado pela escaleta, instrumento que inicia de forma mais sólida a emoldurar o desenho da faixa-título. É neste momento que uma voz levemente anasalada e aberta entrega sua contribuição à melodia. Uma mistura de maciez, agudez e força são notáveis através do timbre de Flavy Matos. Por entre rimas perfeitas e uma sonoridade linear, a cantora se destrincha em um lirismo que analisa a extrema racionalidade, a inveja e os diferentes pontos de vista de forma crítica. Neste último ponto há, inclusive, uma nítida alusão às fake news, cenário amplamente difundido por meio da desinformação instaurada durante a pandemia. No quesito rítmico, a canção se inclina, no pré-refrão, para um gênero musical pernambucano cheio de gingado e força. Por meio dos elementos percussivos, a faixa se torna uma expoente do manguebeat, mas não a ele única e exclusivamente. Afinal, é possível encontrar flertes com o folk e, em menor grau, com o progressivo. Essa união rítmica ajuda a reforçar a natureza da fluidez, do imprevisto, do acaso, do destino. Uma visão ampla e, de certa forma, exotérica sobre o presente e a forma como se leva a vida.
Ao contrário da canção anterior, não é o baixo quem puxa a introdução e sim um violão de notas graves cujo samba é unido a um coro ululante formado pelas vozes de Marcella Melgaço, Zé Vitor Braga, Marcello Soares e Gabriel Marchetto. Excluindo a inserção das vozes, a introdução de Yeyê Okê traz grande semelhança melódica com aquela estruturada no despertar de Nothing Ever Changes, single do Ugly Kid Joe. Eis então que, com a entrada completa do instrumental, a canção passa a assumir contornos manguebeats que se misturam em referências com as faixas Infernal e Quando a Maré Encher, ambas de Cássia Eller. De outro lado, essa mesma estrutura desenha alicerces tranquilizantes e hipnotizantes tal como fazem os mantras. Aqui, porém, o mantra possui forte ambiência indígena de maneira que o ouvinte consegue sentir o canto das aves, a textura dos troncos das diversas árvores e o gotejar da água fresca represada na cúpula das folhas após uma chuva tropical.
O sintetizador de Alan Girardeli imprime notas agudas e sincronizadas de maneira a trazer um vocal cadenciado a ponto de proporcionar ao enredo lírico uma atmosfera que beira o lúdico. Com influências de Arnaldo Antunes, a melodia de Bomba Viva ainda oferece, através dos riffs pontuais da guitarra, notas de um azedume embriagante que acompanha Flavy em seu devaneio sobre a fragilidade e a insegurança que as pessoas apresentam. Insegurança em viver consigo mesmas, fragilidade pelo despreparo para o enfrentamento da vida. Ao mesmo tempo, a canção trata dos impulsos adormecidos, mas que no breve estimular, extrapolam o limite do bom-senso ao enganar o superego e dar vazão simplesmente ao id. Bomba Viva é uma canção que, na sua mais íntima entranha, fala de gratidão pela vida e do preconceito do ponto de vista negro. Do saber viver com pouco, mesmo necessitando de mais. Como diz Flavy, “em nada tenho tudo e toda essa vida é cravada em mim fundida”.
Por entre o misto de sonoridade eletrônica e do groove, existem lampejos de sensualidade que curiosamente pairam pelos ventos dessa que é a primeira melodia de base rap de Vista Sua Armadura Mais Bonita. A sonoridade é crua como se fosse gravação caseira, mas traz muito do espírito da cultura hip-hop em sua essência. Nesse ínterim, a guitarra deixa seu riff agudo sobrevoar, como um pedaço de concreto desgrudado, essa paisagem sonora urbana que se completa com a base baixo-bateria com sincronia no compasso e no groove de Desperto. Com direito a um solo metálico de flauta entregue por Ciro Nunes e Giordano Bruno, a canção ganha uma dramaticidade diferente daquela que é comumente entregue pelos metais. Ela é mais densa e ao mesmo tempo, mais visceral e sensitiva. Mais palpável. Uma proposta inteligente para uma canção que aborda a falta de pertencimento, a sensação de exclusão e desamparo. A solidão encrustada na pele de quem vive uma realidade cultural feudal que carece de questionamentos sólidos e embasados por mentes que se posicionam contra o conservadorismo e o extremismo.
O caos emaranhado em uma melodia crua, mas com base no synth-pop. Eis os primeiros tons desenhados em Doce é Manga, uma música cuja mensagem lírica é sobre o palato amargo que a vida deixa na boca quando o desejado não acontece. Mais do que isso, a canção fala do amargo em uma alusão à imprevisibilidade, à incerteza que a fluidez da vida pode proporcionar. Por isso, é possível até encarar Doce é Manga como uma continuação da faixa-título.
O suspense é proporcionado pelas notas do violão soltas ao vento e acompanhadas por uma sonoridade embriagante proporcionada pelo sintetizador. Minimalista em estrutura, mas não em sensações, a canção deixa o ouvinte tenso, desconfortável e receoso com a densidade com que as sonoridades são construídas. A frieza e a crueza da melodia, junto com vocais ululantes e fortes cuja mensagem lírica reivindica a autonomia perante o próprio corpo e repudia práticas abusivas como o estupro, fazem de Deslize a canção ambientalmente mais desconfortável do disco e liricamente aquela que, junto com a faixa-título, a mais crítica.
Não tem para onde fugir. Não tem onde se esconder. Não tem paisagens belas. Não tem um quadro que esconde o passado. O preconceito existe. Não tem como negar. Os negros são os que dele mais sofrem. Dar voz e exortar a cultura negra são grandes trunfos de Vista Sua Armadura Mais Bonita.
A cultura indígena é outro espectro da sociedade brasileira a ser amparada no disco. De maneira mais suave, ela é trazida por entre mantras que exalam tranquilidade e calmaria. Um remédio tal como a morfina para buscar ao menos esquecer dores comumente vivenciadas pelos povos nativos durante a gestão Bolsonaro. Desmatamentos superando a marca dos 8 mil quilômetros quadrados. E como consequência disso, a fauna e a flora são prejudicadas, a qualidade de vida dos povos indígenas é posta em desarmonia e o êxodo rural iniciado em 1532 a partir da produção de açúcar parece estar recebendo ares modernos. Hoje não é a busca de trabalho que move o deslocamento, mas a segurança pela vida.
Nessas duas principais vertentes, o Espelhos de Okê não apenas ousou, mas também colocou o descontentamento, a aflição e o desespero em melodias e letras que ao menos estimulam a reflexão social. O intuito obviamente não é instigar a agressão, mas fazer com que em cada círculo social as ideias prol indígenas e negros sejam difundidas e, aos poucos, mudam a realidade escravocrata-preconceituosa velada que o Brasil vive na atualidade.
A outra vertente trazida pelo octeto mineiro destrincha os sentimentos, as aflições e outras realidades que são repugnantes pela sociedade. Ao mesmo tempo em que busca pela liberdade corporal, existe a crítica pela insegurança e fragilidade exacerbada daqueles que não possuem coragem de enfrentar os degraus que a vida oferece no intuito de trazer evolução.
Tudo isso envolto em melodias que cooperam com a reflexão, a força, o peso, a densidade e a suavidade. Esses antagonismos foram possíveis por algumas razões. A primeira é pela presença dos multi-instrumentistas Flavy e Girardeli que, em união ao time de músicos que se completa com os nomes Alexandre Rosa, Timonha Júnior e Gabriel Faria, traz peso e sensibilidade.
De outro lado, o técnico, está, novamente, a sensibilidade de Girardeli. Afinal, a produção e mixagem por ele executadas captaram não só a sincronia existente entre os músicos do octeto, mas também os sentimentos extravasados pelas notas instrumentais e pelos timbres viscerais. Uma maneira de enfrentar o mundo livre de sentimentos que podem derrubar os mais sensíveis.
Vista Sua Armadura Mais Bonita é exatamente isso: o vestir o melhor de si para poder enfrentar as situações que a vida traz para testar a resiliência e a perseverança. Tal mensagem é inclusive retratada na arte de capa que, feita por Marchetto e Braga, traz um peitoral definido e envolto por adornos folhais.
Lançado em 29 de outubro de 2021 via Alcalina Records, Vista Sua Armadura Mais Bonita é o canto de protesto mantrificado. É a voz dos fortes desenhados como fracos. É o grito da razão mudo pela sociedade do medo, da insegurança. É um disco que, acima de tudo, busca igualdade e liberdade. O levante mais brando.